18.12.09

Mueda, a Palavra do Nosso Destino

TEXTO DE: António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503




Mueda - Edifício do Comando - foto de António Almeida


Mueda, escrita com “u”, transformou-se, com o tempo, numa palavra mítica e/ou mística, para quantos por lá passaram, algures no Norte de Moçambique.
Mas, na realidade, Mueda, para nós, passou a deter uma existência muito real e jamais essa realidade deixou de nos acompanhar pela vida fora.
A primeira vez que ouvi alguém referir-se a Mueda, foi no ano de 1968, na Universidade. Um colega que cumpria já o serviço militar, colocado em Lisboa nos Serviços de Informação do Exército, contou-me que das três frentes de guerra que Portugal mantinha, Angola, Guiné e Moçambique, aquela que causava maior número de baixas era a de Moçambique, devido à luta que se travava na região de Mueda.
E, foi exactamente na universidade que voltei, meses depois, a ouvir referenciar, de novo, a palavra Mueda. Era a época dos exames, em plena Crise de 1968/69, estava eu integrado num piquete de greve, procurando impedir o acesso às instalações onde deveriam decorrer as provas, daqueles que pretendiam furar a greve.
Entre estes havia um estudante, forçando a entrada, empurrando e gritando, juntamente com outros estudantes, quase todos trabalhadores-estudantes, dizendo que vinha de propósito de Mueda, onde exercia funções administrativas, para realizar aquele exame, e iria fazê-lo custasse o que custasse.
Só muito tempo depois haveria de escutar novamente alguém a referir-se a Mueda. Foi em Stª Margarida, já em 1973, onde me encontrava a preparar a minha companhia com destino já conhecido, Omar, em Moçambique. Apresentou-se para passar à disponibilidade um oficial, vindo de Moçambique, que foi alvo da curiosidade de todos os oficiais que se encontravam a formar o Batalhão, que já sabia destinar-se àquela região e, a minha companhia, já sabia que ia para um buraco chamado Omar. Às minhas interrogações disse que nunca havia estado lá, mas havia passado por Mueda, mais, tratava-se de uma zona de “porrada” mais ou menos permanente.
Alguns meses se passaram, a preparação da companhia com destino a Omar lá continuava, até que tive um acidente de automóvel quando me encontrava a gozar a licença de 10 dias de que todos beneficiávamos aquando da mobilização para a guerra. Fui hospitalizado e, de seguida, substituído no comando da companhia. Foi assim que disse adeus a Omar, sem nunca lá ter sequer chegado.
Esses militares partiram para África em Agosto de 1973 e, eu, por cá fiquei a guardar ordens e destino.
Cerca de dois meses depois, chegou a minha vez. Embarquei para Moçambique, também, sem conhecer o destino operacional. Fui em rendição individual.
Somente na cidade da Beira, em Moçambique, é que tomei conhecimento, através da “guia de marcha” respectiva, que o meu destino final era Mueda.
Já no avião, lá bem nos primeiros lugares, como calhava aos oficiais, encontrei alguns que regressavam de férias. Procurei obter alguma informação sobre a zona onde estaria esta Cart 3503. Somente um daqueles oficiais sabia que se tratava de uma companhia que estava sediada algures “lá para cima”.
Fiquei, desde logo, a saber que a referência “lá para cima”, significava zona de “porrada”. Mas, na prática, fiquei a conhecer o mesmo que já sabia, isto é, nada de concreto sobre o meu verdadeiro destino.
A chegada a Nampula aconteceu já de noite. Só no dia seguinte, no bar da messe de oficiais, viria a tomar conhecimento, através de quem bem a conhecia, a zona que me foi atribuída.
Foi aí, em Nampula, que conheci o primeiro militar da 3503, nada mais, nada menos, que o, então, alferes Silvestre, que se encontrava no hospital, a quem ouvi, pela primeira vez, referências sustentadas acerca da companhia que me fora destinada na Beira.
Praticamente ao mesmo tempo, encontrava-se na messe um capitão, também com baixa no hospital, o Franklim. A sua reacção, quando se apercebeu que eu iria para Mueda, e para a Cart 3503, começou, quase gritando, “fuja homem, fuja!”, conheço muito bem o buraco para onde o estão a enviar.
Já de posse de alguns dados, transmitidos pelo Silvestre, lá parti para Porto Amélia, última etapa, antes de rumar a Mueda.
Em Porto Amélia, enquanto aguardava transporte para percorrer a última etapa desta viagem, conheci, na messe, um alferes que estava em Mueda, o Raul Carregoso, responsável pelo material auto do Batalhão. Como é evidente, fiquei a conhecer mais alguns pormenores acerca do local do meu destino.
Passados uns dois dias foi o embarque com destino a Mueda.
Finalmente a chegada à “terra prometida”.

Lisboa, 24.09.2009

TEXTO DE: António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503

7.12.09

O Inconveniente da Inteligência

Leia o texto completo aqui


Sofia é uma mulher feliz. Olha-se ao espelho. O cabelo em desalinho. Deixa cair na cama de novo, o corpo ainda dormente de prazer. O chuveiro na casa de banho imita a chuva de verão na varanda, e Sofia deixa os pensamentos soltos fluírem à toa, como fotografias atiradas à sorte para cima de uma mesa.
O homem que toma banho em silêncio, só o fervilhar do chuveiro a competir com a chuva, penetra na sua vida quase só tangencialmente, como uma flecha de luz que a ilumina e aquece mas que continua o seu percurso deixando-a sempre como estava antes de chegar. As vidas de ambos têm muitos momentos de contacto como este, mas não se fundem uma na outra, são a água e o azeite, eternos símbolos das uniões imperfeitas, mas se isso às vezes lhe deixa um travo de incompletude, outras vezes como agora, dá-lhe um perverso prazer. Ele vai sair primeiro, ela depois, como se não tivessem nada em comum. É esse ludíbrio que faz desta sua relação um segredo delicioso. Apenas uma sombra cúmplice atrás da cortina de renda do segundo esquerdo. Depois a cortina ondula e a sombra desaparece.

[...]
– Mas tu lutaste pela sobrevivência, mataste para não morrer.
– Não percebes nada do que estás a falar. Sabes… o melhor soldado não é aquele que luta por um ideal, nem o que luta para sobreviver, o melhor soldado é aquele que luta sabendo que vai morrer. Não é a esperança que faz um soldado matar, é o desespero.
As guerras não têm estética possível, porque só têm um lado: o lado abjecto da chacina.
A cor quente do sangue a destoar na frescura verde da paisagem. O terror a desequilibrar a excessiva harmonia do rosto dos inocentes que nos olham antes de morrer à procura de um resíduo de humanidade.
Tragicamente belo não é? No fim da ópera o público abandona a sala e regressa ao ócio dos salões; no fim do romance fecha-se o livro e regressa-se ao conforto do sofá; no fim do filme desliga-se a televisão e toda a tragédia vai para onde foram os nossos pesadelos de infância ao acordarmos em conforto e segurança na cama dos nossos pais; mas, e se não tivermos como desligar os nossos pesadelos? E se a nossa história for o monstro que temos fechado na cave da nossa própria casa, enquanto tentamos dormir em paz no quarto por cima dele? Pior: esse monstro é a parte de nós que já morreu, à espera que abram o alçapão, para vir tomar posse do que resta de nós.
Procurou de novo o tabaco nos bolsos, como se não tivessem passado dez anos desde que deixara de fumar, como se uma parte de si que tivesse morrido numa guerra antiga tivesse vindo tomar posse do seu corpo.
[...]

Leia o texto completo aqui

16.11.09

DOR FANTASMA - PORTO


Dor Fantasma - 20 e 21 de Novembro - Estúdio Zero – Porto
Cedofeita R Vanzeleres 146,

PRODUÇÃO
Teatromosca - Teatro Focus

ACTORES
Susana Gaspar
Filipe Araújo


ENCENADOR
Mário Trigo

Fundador e Director Artístico da Associação Cultural Teatro Focus.
As suas encenações têm merecido a aclamação da crítica, pelo rigor, coerência e qualidade.

Levou à cena um ciclo sobre a Guerra Colonial composto pelos seguintes espectáculos:

2002 - Infa 72 - Teatro Taborda
2004 - Violeta - Puta de Guerra - Sala-Estúdio do Teatro da Trindade
2006 - Companhia de Caçadores - Casa dos Dias da Água, em Lisboa



AUTOR
Manuel Bastos


Um livro só está terminado quando é lido. Quem escreve deixa apenas que as palavras passem por si, e anota-as evitando que sejam perdidas, mas é o leitor que faz acontecer o livro e, de entre todos os leitores, os actores que têm o especial sortilégio de lhe dar vida.
Palavras com vida. Palavras com voz, rosto e gesto, onde os sentimentos voltam a ser desfrutados e sofridos.

O gesto, o rosto e a voz são do actor Filipe Araújo e da actriz Susana Gaspar, que voltam a sentir a dor: a dor da ferida para além do golpe, a dor da amputação para além do corpo, a dor do trauma para além da memória. A dor fantasma.





7.10.09

Aniversário - 6 anos

Aniversário do Cacimbo (2-11-2003 – 2-11-2009) 6 anos

Parabéns para mim… Nesta data querida…




Em Novembro o Cacimbo faz 6 anos (vide primeiro post >aqui<). Merece parabéns e já está em idade de frequentar a primária para aprender a escrever.


Em Novembro o seu autor vai ser "presenteado" pela CGA com o Suplemento Especial de Pensão atribuído aos antigos combatentes, que por motivos pessoais se recusa a usufruir e que decidiu entregar a uma ONG até descobrir uma forma de o fazer chegar seguramente a quem gostaria que dele usufruísse: as crianças de Mueda onde combateu.

Exorto daqui todos os meus irmãos de armas a fazerem o mesmo, nem que para isso tenhamos que criar uma associação.


A todos os visitantes deste blog, continuo a oferecer palavras apenas.


Mas é isto que sou aqui: palavras apenas; as imagens e sons apanham apenas boleia com as palavras. Mas não vos dou nada meu, que as palavras não têm dono. Eu sou apenas um apanhador de palavras. Apanho-as por aí e depois junto-as, tentando desenhar com elas o imponderável corpo dos sentimentos.


Mas não se iludam, nada do que digo é verdade. A Verdade é uma palavra prostituída; juntamente com o Amor, vendem-se por aí a quem prometer mais. O que digo é apenas o que ficou dentro de mim depois de excluídos todos os dados concretos que aproximariam demasiado as minhas palavras dos factos ocorridos e das pessoas envolvidas. É a recriação possível, depois de eu ter esquecido a verdade. São palavras. Palavras mentirosas, que inventam sentimentos e paixões, dores e alegrias, situações e atmosferas; mas, porque não são dirigidas à razão do leitor mas à sua emoção, são um convite à sua cumplicidade para o honesto embuste da ficção literária.


Sei porém, que não fui bem sucedido; às vezes a verdade espreita por entre a invenção que são as minhas palavras. Traz com ela, nomes, lugares e factos que e eu não tenho coragem de expulsar. É a prova que ainda não superei completamente as experiências que vivi, e não criei a distanciação que o cronista deve manter da ocorrência histórica, para ser isento. Mas, isento porquê, se assumidamente falo de mim? Assim, inventando, reinventando, cedendo à crueza dos factos, mais não faço do que a catarse de um paciente na poltrona de um psicoterapeuta, a que acrescento a ingénua ilusão de que isso pode divertir alguém.


Alguém há-de ter divertido, a julgar pelo número de visitantes que diariamente procuram este blog, muitas vezes ultrapassando a meia centena, mesmo excluindo os chamados blammers que buscam apenas o clique de retorno que nos leve a visitar os seus próprios espaços na Internet. Tendo em conta que aqui encontram apenas palavras escritas, é verdadeiramente surpreendente e encorajador, tanto mais que o texto escrito e o monitor de um PC ainda não são um casamento feliz.



Convido-vos a um pequeno passeio por este blog para visitarem algumas das emoções feitas de palavras:


- Stress de Guerra - A Visita
-------------------- Saudades de Azul
- Homenagem às Enf. Paras - A Enfermeira que Vinha do Céu
- O prazer da palavra escrita - A Carta
- Tentar a poesia - 100 Versos do Mato
- Memórias de Aguim - O Voo da Calhandra
------------------------ O Último Verão da Minha Inocência
- O Mov. Nac. Feminino - Os Sapatos do Major
- O 25 de Abril - Tão Tarde Pela Madrugada


e ainda...

- Compre o livro - Cacimbados
- Assista ao espectáculo - A Dor Fantasma

29.9.09

A Persistência da Dor

Ler o texto completo >Aqui<

No chão da gare da Curia a minha sombra imita um flamingo enquanto eu me equilibro pondo a perna amputada sobre a canadiana, de modo a usar ambas as mãos para acender o cigarro.
As pessoas passam por mim e abrandam a voz como se faz quando somos surpreendidos a meio de uma conversa por uma visão inesperada.
Algumas a olharem para trás, depois de passarem.
Uma folha d' O Século que o vento não consegue descolar do chão. Levanta-lhe uma ponta, fá-la ondular mas ela não sai dali. E, vinda não sei de onde, uma canção dos Procol Harum: Saltitávamos o alegre fandango, Fazíamos cabriolas pelo chão; Eu sentia-me um pouco enjoado Mas as pessoas pediam mais…
O vento a brincar com o jornal. Uma velhinha a descer da carruagem. As pessoas impacientes à espera que ela desimpeça o caminho. E a canção com sonoridades barrocas e letra psicadélica: Quando a moleira contou a sua história O rosto dela, a princípio só assombrado, Ficou branco como a cal da parede…
A velhinha a aproximar-se de mim olhando para a minha mochila no chão como quem vem em meu auxílio, e eu, num movimento que lhe deve ter parecido acrobático, rodo sobre o único pé, pego com ambas as mãos na mochila, as canadianas presas aos braços pelos apoios, volto a rodar em sentido contrário, e depois de encaixar a mochila às costas passo por ela sem pudor, ignorando a crueldade da minha exibição. Olho para trás e vejo-a tristíssima a ver-me a afastar, andando duas vezes mais rápido do que ela. Daria decerto uma perna para ter a minha idade e o meu vigor. Abrandei a marcha envergonhado, como se por andar mais lentamente agora, eu pudesse diminuir o meu sentimento de culpa.

[...]
Que longas que são as viagens que têm uma guerra pelo meio. A torre da capela de Aguim apareceu ao longe na paisagem como um embuçado em pleno dia, e ao fundo o dorso da Serra do Buçaco tão esbatido que mal se distinguia do céu. Se fosse eu a pintar aquele quadro, punha um pouco mais de terra-de-sena para que um tom quase imperceptível de púrpura criasse a ilusão da distância; assim parecia que estava tudo no mesmo plano, e a torre branca da capela da N.ª Sr.ª do Ó parecia pintada sobre um papel de cenário.
Agora estamos finalmente sós na gare da estação da Curia: eu à espera que venha um táxi, e a folha de jornal que o vento não consegue tirar dali.
[...]

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14.9.09

A Carta

Ler o texto colpleto aqui ou aqui

Não tenho nada para fazer hoje. Não tenho nenhum livro para ler, nenhuma música para ouvir. Apetecia-me escrever uma carta a alguém. Alguém que vivesse do outro lado do mar. Alguém que já se tivesse esquecido de mim há muito, e que ao receber a carta parasse num leve sorriso de surpresa. O envelope com a minha caligrafia e a carta lá dentro. – De quem é? – Nada, não; uma carta de um primo meu de Portugal.

[...]
Já escrevi cartas de todas as maneiras, até sobre o carregador de uma arma, só pela urgência de dar a saber que estava vivo. É muito diferente escrever de casa para alguém que está longe, não sabemos bem onde, e escrever de longe, de onde não sabem de nós. Onde nós também não sabemos bem de nós. A mata misteriosa a separar-nos de tudo o que nos é familiar, e o apelo para comunicar com quem nos tem no pensamento. A vontade de responder a perguntas que não ouvimos, mas que sabemos terem-nos sido formuladas. Perguntas de que nos chega o significado mais profundo, mas não as palavras que o transportam. E o apelo para responder, justamente as palavras, as palavras que faltam, porque o significado é sobejamente conhecido. Depois o prazer de desenhar as palavras no papel. O conforto das palavras escritas, físicas, quase tangíveis, a darem densidade à imaterialidade dos sentimentos.
Mas agora, nesta noite em que o computador me avisa que recebi mais um e-mail ou alguém me chama no Messenger, queria sentar-me na pequena mesa tosca e acanhada de onde via os fogos-fátuos no cemitério de Aguim num fim de tarde de verão, e escrever uma carta para uma pessoa que mal me conhecesse, e que ficasse surpresa por eu ter mandado notícias, não por mim, não por ela, não pelo que dissesse; apenas porque isso implicaria uma certa dedicação, uma certa humanidade numa cadeia de esforços de várias pessoas para que a carta chegasse ao destino.
O cabo de dia a ler em voz alta o nome de um soldado, e um braço alegre a pegar no aerograma. Os olhos sem conseguirem ler devido à ansiedade. As palavras escritas por todo o papel amarelo do aerograma e depois a apertarem para o fim, para caberem mais, e nas margens também, porque as despedidas são sempre difíceis, mesmo quando são feitas de tinta sobre papel. Agora os olhos sem conseguirem ler devido às lágrimas desfocarem tudo. Aquelas palavras sempre tão iguais, sempre tão previsíveis, mas a despertarem sempre a emoção da surpresa.
Outro e-mail a chegar. Um contacto a chamar-me no Messenger. Este falso dom de ubiquidade que temos ao contactar em simultâneo para vários lugares do mundo. Todos em contacto com todos, para todo o lado, a toda a hora, sem aparente intermediação.
O cabo de dia a ler para si o nome do soldado Lourenço. Um soluço a calar a voz. Boas notícias e nenhum braço alegre. Os soldados calados a guardarem luto. O cabo de dia passa para baixo o aerograma que era para o Lourenço e continua a chamar os soldados um a um.
A pior coisa que se pode escrever é uma carta para um soldado já morto. Quando o aerograma chegar devolvido por não ter encontrado o soldado Lourenço haverá alguém como o Sr. Luís da Loja que fará soar uma corneta? Alguém como o médico de família da saudade a dizer: "Uma carta do seu filho"?
[...]

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24.8.09

Carta a Mueda - Silvestre

Texto de António Silvestre

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[...]
Já sonhei contigo mil vezes, Mueda, já contei tantas histórias sobre ti e ainda tenho tantas para contar. Como eu, centenas, milhares de homens têm saudades de ti, contam histórias e sonham contigo. Sonham com o teu cacimbo de madrugada, com as colunas a sair para a picada ainda noite escura, com as tuas manhãs enevoadas. Acordam de noite, ouvindo as saídas dos morteiros, o ruído dos helicópteros ou o rebentar de uma mina.
Que fascínio tinhas tu Mueda, que mistérios encerravas, para que homens que aí enfrentaram a morte, ainda hoje, passados tantos anos, falem de ti com tanta saudade, com tanto entusiasmo, com tanto carinho.
Tuas histórias são contadas à lareira, nos cafés, nas tabernas das aldeias, nos restaurantes mais finos das grandes cidades, todos os dias és falada por tantos homens que por lá passaram e nunca mais te esqueceram, o teu céu, as tuas estrelas, o teu amanhecer, os teus dias enormes, os teus ruídos, as tuas ruas esburacadas, as tuas amizades com um copo ao lado, tudo isso está guardado na nossa memória como um tesouro, que de vez em quando visitamos para matar saudades. Saudades enormes Mueda, da chegada do correio, do içar da bandeira, duma visita ao aldeamento, dum salto até ao AM para ver chegar os aviões ou simplesmente de uma conversa noite dentro com os amigos, sem sabermos se seria a última.
[...]


Texto de António Silvestre

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21.7.09

A Enfermeira que Vinha do Céu

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Se o comboio avança em direcção à Gare do Oriente porque me dá a ideia que recuo no tempo? Daqui a pouco uma mulher por entre a multidão avançará para mim empunhando a boina verde de uma farda há muito desmobilizada, distintivo, noutro tempo, de uma tropa de elite, identificação hoje para um encontro agendado.
[...]

Quem nos vir daqui a pouco, frente a frente, eu e a enfermeira pára-quedista à mesa de um restaurante, jamais imaginará que o que nos separa não será o tampo da mesa, serão 37 anos de vida e uma guerra. A mesma guerra que fez com que as trajectórias das nossas duas vidas se encontrassem.
Há, evidentemente, alguns factores que reduzem o grau de imprevisibilidade desse nosso primeiro encontro; mas neste momento, quando o comboio já está quase parado na plataforma de embarque da Gare do Oriente, só consigo pensar que foram precisos largos séculos de história colonial e duas trajectórias erráticas, como erráticas são sempre as trajectórias dos seres humanos, para nos encontrarmos no preciso lugar onde uma mina anti-pessoal terrestre aguardava há alguns dias pela minha bota esquerda. E isso é algo que transcende o meu poder de cálculo de probabilidades.
E onde aconteceu tudo isso? Numa picada perdida do norte de Moçambique ou num lugar recôndito da minha imaginação?
Eu com frio e o sorriso cálido da enfermeira. Eu na solidão absoluta perante a Morte e um sorriso que me garantia mais do que a certeza de que o Universo era habitado. A certeza que, mesmo quando tudo parece ter descido ao mais baixo patamar da humanidade, a esperança pode ser-nos trazida por um cândido sorriso de mulher.
E o Alfa parou.
Não sei em que ano parou. Não sei em que mundo.
Vou sair por aquela porta para a plataforma de embarque com a convicção de que a realidade não me será suficiente. Mas a realidade nunca é suficiente: é para isso que há sonho, música e poesia.
[...]


A Grande Prostituta pairava sempre sobre nós, e quando tombávamos ajoelhava-se para nos invaginar. Às vezes o enfermeiro Costa tentando a ternura: - Não me morras filho da puta! E quando a vida não era mais do que um fio, ansiávamos que a salvação viesse do céu.
E vinha!
Vinha de T-shirt branca e levava com ela os nossos camaradas feridos, e durante uns breves minutos o terror dava lugar a uma leve sensação de doçura.
E era então que me apetecia chorar; que um homem até aguenta a dor e o medo da morte mas não resiste à generosidade de uma mulher.
Levou o Lemos, levou o Raimundo, levou-me a mim. E um dia, quando parecia que tudo o que passei na guerra se tinha desvanecido para sempre, dei por mim a desenhá-la com palavras, como personagem de um livro. Com palavras que trouxe a vida inteira comigo.
Hoje a mulher por detrás da personagem ocupará o seu lugar aferindo a ficção pela realidade, deixará de ser uma silhueta desvanecida de uma foto antiga no heliporto de Mueda, a personagem construída a partir da fantasia literária e das memórias difusas de um velho soldado, a personagem que um leitor do livro levou a sério e procurou no labirinto do mundo até a encontrar.
Sairá hoje das páginas do livro para falar com o autor.
E o Alfa parou.
- Olá Piedade!
- Olá Manuel!

15.7.09

Como se compram os livros?

- Compram-se como todas as coisas.

Um livro é um bem de consumo, e quem compra livros passa pelo mesmo processo que qualquer outro consumidor, seja o que for que compra.

Um vegetariano dificilmente comprará um Big Mac, o meu tio Artur jamais compraria uma Coca-cola, não apenas porque já morreu, mas sobretudo porque para ele a frase de Salazar sobre o consumo do vinho era mais do que um slogan, mas um verdadeiro credo, ao qual ele acrescentava um tom poético: Desgraçados portugueses, filhos de um país vinícola, se se haviam de embebedar todos os dias, ainda censuram aqueles que cumprem patrioticamente o seu dever.

Bem… com um livro passa-se o mesmo. Quando um leitor passa pelas estantes de uma destas enormes catedrais de vendas que livro escolhe? Um enólogo comprará um livro sobre refrigerantes? O padre Melícias comprará o último livro de Catherine Millet? Não digo que não, poderão querer aferir o nível zero das suas preferências, ou, o que é muito mais interessante, talvez queiram dar uma espreitadela pelo buraco da fechadura da porta do inferno.

Se eu passasse num desses espaços não me sentiria atraído pelo título do livro de José Vale Ovelha "As Razões de Salazar", sobretudo porque o texto que o acompanha me remete para uma dieta alimentar que me anuncia más digestões; não que eu seja vegetariano, e me assuste com a trash-food da receita luso-colonialista, e das suas razões, sejam elas quais forem, ou se me contraiam os esfíncteres que nem um pároco sem a menor sombra de malícia perante o despudor pecaminoso de uma erecção serôdia do salazarismo, para não dizer de um rigor mortis.

Mas… podemos comprar um livro só para ver como nos explicam a quadratura do círculo ou desmentem o teorema de Pitágoras. A verdade é esta, pelo menos para mim: o exercício da escrita é como o sexo, o prazer do acto é que justifica o esforço. É por isso que vou comprar o livro que um amigo e seu autor me pede que aqui anuncie.

Uma boa leitura.



3.6.09

100 Versos do Mato

Órfão

Que faço
nos intestinos da selva
sem uma causa
que me proteja do medo
Eu não sou daqui
sou de uma terra
onde as árvores gostam de mim
e os meus inimigos me conhecem.


Porta dos fundos

Coitados dos ditadores
para parecerem deuses
fazem das soluções fáceis
difíceis problemas
Encolhem a dignidade humana
para parecerem grandiosos
eles que têm medo do escuro
E aqui estamos nós
no fundo das escadas
do Império moribundo
por lhes faltar a coragem
para fecharem a porta
e apagarem a luz.


A constância da morte

Os sons da noite
são o eco
dos sons do dia
Tudo é inverso
neste espelho
em que a luz adormece
Só a Morte é igual
porque é sempre negra
no coração dos homens.


Ciúme

Uma asa de ave
corta a planura do lago
enquanto plácida a Lua sonha
Tu
meu amor a haver
és a dor no peito
de suspeitar que morrerei
sem ser feliz.


O coice da arma

Tenho uma palavra dentro de mim
a querer ser dita
Cada vez que dou um tiro
ela morde-me as tripas
Que palavra será esta
entre o meu dedo
e a Morte.


Mueda de troca

Matei-te
Com a desculpa
de que me querias matar
Que ganhei eu
Se fui assassino no teu lugar.


A rosa da morte

A Grande Prostituta
ama-nos como a fome ama o fruto
Quer invaginar-nos a cada passo
E nós caminhamos sobre a alma
sentindo o coração nos pés
Quando tombamos
ajoelha ao nosso lado
O enfermeiro tentando a ternura
Não me morras filho da puta
Mas nada pára a rosa
no peito do radiotelegrafista
A desfolhar-se
a desfolhar-se
Há pouco alguém puxou um gatilho
E ele ficou parado no meio da picada
como uma torre de igreja
em que os sinos se calaram.


Pietá

Vem do céu
e pousa de helicóptero
com subtilezas de anjo
Ultrapassa a Morte
e leva-nos nos braços
Ama-nos sem saber
a enfermeira da T-shirt branca.


O semeador

O soldado lança a granada
como outrora o pão
Semeia dor
E alguém morre
onde aquele gesto macho
esteriliza em vez de fecundar.


O Cancioneiro do Niassa

Morremos tantas vezes em Mueda
Morremos sempre que uma voz se cala
por estarmos aqui
Às vezes até acordamos já mortos
Por isso à noite
os soldados bebem e cantam
para adormecerem vivos.


Inspiração divina

Uma borboleta pousou na minha arma
Como se Deus me tivesse escolhido
para dizer alguma coisa
Com a sua mania de falar por linhas tortas
não entendi nada
Logo depois a borboleta foi-se embora
cansada de ser uma metáfora.


Excelsis Deo

A guerra é a negação de Deus
Que obra imperfeita
faz perfeito o seu criador
Nós
ao menos
temos a desculpa da estupidez.

---
Mueda, 1972

100 Versos do Mato - 00

Reitero o desafio feito há dias a todos os visitantes deste blog que tenham tentado dizer a guerra em verso para que tenham coragem de mostrar as suas palavras.
Aqui deixo as minhas, as que sobreviveram depois de tantos anos, depois de tantas décadas. Palavras em arremedo de poesia. Um pouco mais e seriam música, um pouco menos e seriam preces.
100 versos. Tantas palavras e tão poucas, se comparadas com todas as palavras nunca ditas, essas outras palavras que morreram antes de serem escritas; palavras caladas, rejeitadas, dizendo o silêncio, o silêncio indecifrável da ausência das palavras.
Estas palavras, quase todas, nasceram apenas e pouco mais lhes aconteceu. Palavras simples, recém‑nascidas; palavras tentadas, esboçadas, inocentes; tentativas de palavras em busca da forma, guardadas assim à espera de crescerem, de ganharem sentido. Palavras casuais, soltas, inconscientes, gestuais; como folhas caídas ao acaso sobre a relva, encontradas e apanhadas apenas, sem outro intuito que salvá-las de serem para sempre esquecidas.100 versos, dos quais, todos os dias aqui virei trazer alguns.

2.6.09

Convite aos visitantes

Conferência do autor deste blog
na Biblioteca - Museu República e Resistência/Grandella
no dia 18 de Junho às 19h

Desolação

Estou cansado. Não sei de onde me vem este cansaço.
O largo da Capela está vazio. Fazem-me falta os velhos sentados no banco corrido à frente da loja do Sr. Boanerges. Eles, cansados também, fitando a fachada da capela da Nossa Senhora do Ó como se estivessem a ver um filme enquanto falavam entre si.
Ia a caminho de Águeda e deu-me para subir o Barreiro e ficar aqui um bocado. E aqui estou eu como se estivesse a ver um filme projectado na fachada da capela. Está mais nova a capela, mas o largo está vazio, e eu senti-me cansado de repente. Sinto-me como um marido arrependido, regressando a casa depois de um serão de orgias. Tudo parece olhar-me com uma falsa distracção, não me dando atenção para me fazer sentir insignificante.
Pode trazer-se a fisionomia de um rosto, as estrofes de um poema, os compassos de uma música dentro de nós; eu trago a torre de uma capela.
Sinto-a nitidamente, erecta sobre a colina de Aguim, sobreposta a um céu de cetim quase limpo.

Uma pessoa vem ainda longe e a sua silhueta já nos faz sentir em casa, como se sentirão os mareantes ao verem ao longe o farol da Barra.
Desculpa ter chegado tarde, desculpa ter-me distraído com as horas. Saí para tomar um copo e quando dei por ela tinham passado trinta e tal anos.
Eu sei, eu sei. Foi a aventura que me levou, a viagem, a pior das vertigens: a guerra. Saí daqui para ir matar e morri por lá… nunca mais voltei de verdade porque entretanto já era outro.
Já nem sei se sou daqui, mas ao passar lá em baixo algo me chamou, como que a meter conversa sem ter assunto, e eu a fazer pisca para a direita… e agora deu-me para falar sozinho como um bêbado abandonado por lhe terem fechado a porta de casa.
Trago uma torre comigo.
Sei a textura das pedras dos degraus em caracol. Sei o silêncio das pedras. A quietude das pedras. A temperatura das pedras. Testemunhas pacientes do Tempo. Eu a subi-las enquanto lá em baixo na nave da capela se rezava a missa. E eu a tentar ver o mar do patamar superior… Era bom, reconfortante, olhar o horizonte e saber que para lá do horizonte existia o mar, mesmo que não o visse dali; e ter essa certeza, como todas as outras certezas que eu tinha então, parece-me agora uma garantia de ter sido feliz.
Um dia fiz ali um pecado e não houve uma única daquelas pedras que me denunciasse; e Deus, não o que alguns homens criaram à sua imagem e semelhança, mas o impossível Pai que todos gostaríamos de ter, a rir-se cúmplice, enquanto no Largo da Capela as bandas tocavam ao desafio.
Mas hoje o Largo da Capela está vazio, vazio como quando eu saía do meu quarto para ir brincar no Sobreirinho e os meus amigos já tinham ido todos embora. Para onde foram todos? Porque não me chamaram? O Faria, o Zé, o Rolo; que amigos são estes que me deixaram a brincar sozinho?
Hoje o Largo da Capela e o Sobreirinho parecem uma parede vazia onde sempre esteve um quadro,
um escaparate sem um único livro, uma cómoda de gavetas abertas de onde levaram a roupa. Uma estação de caminho de ferro deserta, depois de ter partido o último comboio. E eu com o desalento que só um filho único conhece, quando os seus amigos foram embora sem o terem chamado.
Eu amo uma torre que me pede de longe que pare. Que não siga viagem, que suba o Barreiro e entre na minha casa mesmo que essa casa seja um templo de adoração a um deus em que não acredito.
Um farol que teima em dizer-me que eu sou daqui, que afinal os meus amigos estão todos à minha espera, que é apenas uma questão de tempo e logo nos sentaremos à mesma mesa com a desculpa de nos apetecer beber uns copos por causa do inocente pudor masculino de assumirmos os afectos.
Se fosse possível, quando for a minha vez de me juntar a eles, gostaria que me rezassem ali uma missa de corpo presente, mesmo que o meu corpo esteja noutro lado qualquer, que pedissem por mim a Deus mesmo sabendo toda a gente que eu fora ateu, ou, se não fosse pedir muito, que se reunissem ali cantando. Só para eu consumar este amor antigo.
E por favor… que alguém se esgueire pelas escadas da torre e vá praticar o seu primeiro pecado enquanto na nave os meus amigos que ainda fiquem por cá se despeçam de mim.

26.5.09

O MEU PAI

Texto de José Caseiro

Ano de1972, Janeiro. O Natal tinha ficado para trás, a passagem para o novo Ano também. Natal triste, com a minha mãe a chorar constantemente, as minhas irmãs a não conterem as lágrimas, o meu pai em silêncio e eu sem saber o que fazer ao bacalhau.
Eu ia para a guerra em África. E o meu pai em silêncio. Habituado a sofrer em silêncio.
Emigrante no Brasil desde muito novo, homem do mar, tantas vezes largado sozinho num bote desde o nascer do dia até ao anoitecer, à mercê das inclemências do clima, a sós com os seus pensamentos, com as saudades da família. Sofrendo sempre em silêncio.
Foi no dia 5 de Janeiro, dia do meu aniversário pelo registo. O dia do meu nascimento foi a 29 de Dezembro, mas o meu Pai registou-me nessa data, para eu ir para a tropa dos 20 para os 21 anos. "Assim irias mais homem", dizia-me ele. Embora a diferença de tempo fosse apenas de uma semana.
Madrugada fresca, rua vazia e triste como o coração do meu pai, porque estava a assistir à partida para o Ultramar de um dos seus meninos que ajudou a crescer e agora estava um homem feito para a tropa e para a guerra, como diziam aqueles que viviam bem á custa dos milicianos e dos soldados, que quando embarcávamos até pensávamos que era para defender o nome de Portugal, mas infelizmente era para defender os seus interesses.
Paragem do autocarro ali abandonada à espera de passageiros para o 76 com destino à Avenida dos Aliados. Autocarro verde de dois andares. Fomos os únicos a entrar naquela paragem tão abandonada e tão gelada como os nossos corações. E o meu pai a sofrer em silêncio. Habituado a sofrer em silêncio desde muito novo.Habituado a chorar para dentro. Em vez de sangue corriam-lhe lágrimas nas veias, já que no rosto nunca lhas vi.
Malas carregadas de esperança de regressar são e salvo transportadas por mim e por meu pai até á estação de São Bento, para depois ir no comboio com destino a Viana do Castelo, cidade onde se encontrava o batalhão 3876 que iria embarcar para Moçambique no dia 9 de Janeiro de 1972.
- Hora da despedida. Pai, tenho que ir. Um forte abraço e adeus meu pai.
Só aqui ele quebrou o silêncio: - Deus te proteja e tem cuidado contigo.
Será que este homem, com todo o seu sofrimento em silêncio, foi atendido por Deus quando quebrou esse silêncio para lhe pedir por mim? Penso que sim! Porque os dedos das duas mãos são suficientes para contarem os operacionais da CART 3503 que não foram feridos na guerra em Moçambique, e eu sou um deles. Onde os senhores da guerra não tiveram em conta o número de feridos e mortos que a nossa companhia teve no princípio da comissão, tanto, que em qualquer lado a CART 3503 era reconhecida por todos como a companhia mais sacrificada pela actividade operacional e das que melhores resultados tinha conseguido em Cabo Delgado.
Já dentro do comboio, quando este começou a andar e quando pela janela lhe fiz o sinal de adeus, aquele homem mais uma vez ficou em silêncio a sofrer.
Provavelmente, quem andava naquela hora na estação de são Bento, não se apercebeu que ali estava um homem sofrendo em silêncio pela partida do seu filho para guerra do Ultramar. Esse homem era o meu pai.
Ano de 1988. O meu pai adoeceu gravemente e teve que ser internado no hospital de São João, no Porto, para ser operado. Domingo, véspera da operação. Fui visitá-lo pela manhã. Estava sozinho. Encontrei-o a vir da capela do hospital, e como sempre em silêncio. A sofrer em silêncio como era seu hábito. Muitas palavras de carinho e amor lhe transmiti, e em silêncio me respondeu. Na hora da despedida dei-lhe um forte abraço e disse-lhe: - Pai, até à próxima e que tudo corra bem.
O meu pai morreu no dia seguinte, na sala de operações.
Hoje ainda pergunto a mim mesmo: será que eu na despedida ao meu pai, em vez de lhe ter dito "até á próxima" lhe deveria ter dito "Adeus meu pai e que Deus o proteja"? Quem sabe Deus me tivesse ouvido e o meu pai não tivesse morrido naquele dia, naquela operação.
Ou então, talvez Deus tivesse decidido que naquele dia, naquela sala de operações, aquele homem que em silêncio tinha por hábito sofrer, deveria ficar definitivamente em silêncio, mas em paz.
Aquele homem era o meu pai. E em silêncio ficou para sempre.

(c) José Caseiro

15.5.09

POESIA DA GUERRA COLONIAL

- UMA ONTOLOGIA DO "EU" ESTILHAÇADO -

Manda os teus poemas para os contactos indicados no fim deste artigo ou para este blog.

A experiência de Portugal na guerra colonial (1961-74) teve o seu registo estético na narrativa, dando origem a mais de uma centena de romances sobre o tema e na poesia com uma vasta e ainda não delimitada produção. Esta poesia, de autores directa e indirectamente envolvidos na guerra, e elaborada, ou no momento da vivência do evento bélico, ou em seguida, enquanto espaço de memória e de elaboração pós-traumática, carece de atenção, reflexão e divulgação.

Este projecto visa realizar uma primeira e exaustiva recolha crítica do material poético acessível, não só enquanto poesia de guerra no panorama literário ocidental e português em particular, mas também enquanto valioso testemunho subjectivo de um episódio marcante do século XX português, que modificou a própria identidade histórica de Portugal. O projecto propõe-se reunir um banco de dados amplo do arquivo poético da memória da guerra colonial e combiná-lo com uma organização de uma antologia de poemas de guerra. Trata-se de um projecto aberto à colaboração.

Este projecto compreende três fases que se desenvolvem em paralelo: a pesquisa na web, a recolha de poemas em arquivos e bibliotecas pelo país e a publicação de uma antologia.
O projecto propõe-se ainda construir um arquivo on-line da poesia da Guerra Colonial, o qual estará permanentemente activo e aberto à colaboração, e será gerido pela equipa de investigação.

Contactos
CES – Centro de Estudos Sociais
Universidade de Coimbra
Colégio S. Jerónimo
Apartado 3087
3001-401 Coimbra

Tel.: +351 239855570

Fax: +351 239855589

E-mail: cristinanery@ces.uc.pt

http://www.ces.uc.pt/projectos/poesiadaguerracolonial/pages/intro.php

http://www.ces.uc.pt/

28.4.09

A Estrada

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A vida é uma estrada como esta, parada entre o vale e a montanha e nós é que vamos caminhando de curva em curva até nos consumirmos e ficarmos assim a olhar para a última curva lá atrás, como se pudéssemos viajar no próprio olhar para o passado.
Há quanto tempo ela o fizera seu, ali naquela mata? Há uma eternidade. Há quanto tempo, algum tempo depois, o vira partir de farda verde sujo e mochila às costas para uma guerra que ela nem sabia que existia? Ontem? Porque será que as coisas más que recorda lhe parecem próximas, e as boas distantes?
Nenhum homem sabe a guerra que uma mulher trava sozinha sem armas nem defesas, enquanto os homens, que nunca deixam totalmente de ser crianças, se entregam estupidamente à mais infantil e cruel das brincadeiras, que é a de se tentarem matar uns aos outros por motivos que julgam elevados e por objectivos que consideram honrosos.

O pior que acontece com os nossos sentimentos é não sabermos se devemos amar ou odiar. O pior ainda, é quando sentimos o amor e o ódio pela mesma pessoa. Jamais o amor se lhe apagaria da alma por aquele que um dia ali se atirou a ela como predador e acabou prostrado no seu corpo como presa. Jamais o ódio, por ter sido duas vezes traída por ele, se desvaneceu. Uma primeira vez, na distante tarde de Outono em que se foi afastando por aquela estrada até ter desaparecido naquela mesma curva ao fundo, com aquele ar de guerreiro garboso que parte à aventura pelo mundo fora e a deixava a ela ali, como uma sombra no meio da estrada, como uma peça de roupa de todos os dias que se despe para envergar a sinistra roupagem de matar, aquela farda da hedionda cor do esterco. Agora, olhando a mesma curva da estrada lá longe, parece que nunca saiu daqui onde está, durante estes anos todos, como um envelhecido Narciso a mirar a ilusão de uma juventude irremediavelmente perdida. Mas a pior traição foi a segunda, a traição de ter-se ele deixado morrer por lá.
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9.3.09

O Voo da Calhandra

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O Tempo não é apenas o que tudo domina, o Tempo é o verdadeiro protagonista de todas as histórias. Mesmo uma fotografia tem tempo, não o que levamos a olhá-la, mas o que a separa do nosso olhar. Num momento algures no tempo, uma árvore foi observada, ou um rosto, ou um sorriso, ou uma cotovia levantando voo sobre um vinhedo. O olhar de um pintor prende esse momento numa tela, o olhar de um fotógrafo congela essa efemeridade num instantâneo, na vã ilusão de lhe conferirem perenidade. Noutro momento o nosso olhar cai sobre essa imagem, e cria-se uma nova realidade, mas é no intervalo entre os dois olhares que a história acontece. É esse intervalo que me fascina: a fermentação do mosto em vinho, a sublimação da paixão em amor, a transcrição do evento em História. Os factos têm apenas um interesse meramente nutritivo porque são exteriores à mente humana; o Tempo, e dentro do Tempo a imaginação, são a realidade possível, porque nos dão a ilusão de vivermos a vida. Na verdade, são a vida dentro de nós.

Não sei já onde soa o violino, se na vastidão dos vinhedos se dentro de mim, onde há-de ficar para sempre, até que, caldeado pelo tempo, me seja devolvido como uma memória, despoletada não sei por que efémera realidade.

O Vale d'Aveia descendo até Vale de Cide numa vertigem de voo planado. O Vale d'Aveia subindo até à forma erógena do Buçaco. A tarde de Outono cheia de preguiça. O sol oblíquo a desenhar longas sombras sobre o vale e a pintar tudo de cobre e ouro. A alegria da ave. A melancolia do violino. Uma e outra, dentro de mim para sempre. Uma e outra como se as tivesse testemunhado ontem. O virtuosismo do Sr. Manuel da Leonarda ensinando uma cotovia a voar. Uma cotovia levantando voo para dar título à música. Há sem dúvida mundos maiores que a mera realidade.

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16.2.09

Cacimbo encenado

MUSCARIUM - Leituras encenadas a partir de 22 de Fevereiro, às 18:30 pelo Teatromosca na Casa da Cultura de Mira Cintra

"Dor Fantasma" do autor deste blog a levar à cena em 27 de Dezembro, às 18:30

9.2.09

Como eu me enganei

Texto de José Caseiro
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A recruta foi feita, deram-me a categoria profissional de atirador de infantaria, e fui destacado para Tavira, para o velhinho quartel da Atalaia CISMI; aí reparei que além de outros rapazes da minha idade, havia um que estava a fazer justamente o mesmo percurso que eu, era o Camões, isso veio a confirmar-se porque dali fomos para Aveiro dar recruta, embora ele tenha ficado cá em cima no R.I.10 e eu lá para baixo para o 5 onde não havia chicalhada, e por isso mesmo, andávamos mais á vontade.
Foi ali, numa tarde de um belo dia de sol que tive conhecimento que estava mobilizado para o ultramar, para província de Moçambique. Um dia de sol que nesse momento ficou negro, mais negro que o negro do luto.
E foi nesse instante também que pensei: - Bem, deve ser melhor que ir para Angola ou Guiné, porque não se fala tanto. Mal eu sabia o que me esperava.
Após a instrução, e com a ordem do dia cá fora, fui procurar os outros companheiros para saber qual a situação deles, que não era melhor que a minha, pois estávamos todos mobilizados para as províncias ultramarinas. E mais uma vez o Camões iria fazer o mesmo percurso que eu pois íamos apresentar-nos no mesmo quartel em Penafiel, com destino a Moçambique, pertencendo ao mesmo batalhão, embora não à mesma companhia.

Mais tarde fomos para Viana do Castelo, ou seja para o velhinho quartel da Barra, e foi o que se passou aí que deu origem a esta minha recordação e a este texto.

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(c) José Caseiro

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23.1.09

A Doença da Memória

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O farol da Barra, agora, já noite, parece querer desenhar uma circunferência de luz em redor de si mesmo, mas o foco perde-se na noite infinita. A verdade é que tudo sem excepção se perderá na noite infinita; é uma questão de tempo. Caminhamos todos em direcção à escuridão, à escuridão sideral ou à simples escuridão do corpo, a qual é cada vez mais difícil de iluminar de prazer. Como um mar nocturno. À excepção talvez, de algumas praias de ternura, alheias, inocentes, às escarpas cruéis da nossa memória. Como seria bom, ao menos, o riso senil do esquecimento tão próximo da inocência que nos permitisse aceitar a decadência sem luta. Uma tarde soalheira debaixo da sombra maternal de um castanheiro sem idade e ao longe a família feliz no caleidoscópio do sol. Talvez então, sem remorso nem raiva aceitássemos a doce prepotência divina, como uma mentira piedosa.

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