tag:blogger.com,1999:blog-98784602024-03-13T19:00:48.072+00:00CacimboA todos os homens com coragem para lutar. A todos os homens com coragem para desertar. A todas as mulheres com coragem para perdoar a ambos.mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.comBlogger173125tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-53755728533463804982024-01-15T19:01:00.002+00:002024-01-15T20:47:22.824+00:00Lonjuras<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSjMPItE2mCLd65YEG9YmYvFhVH9ACbEHKqELP4U9djyZO_i7dJYPyv3u80k6vUyRSrCoI3AwUnbSBbSjQYTATO82CXiaXv2NkZ-L20yJXjEagiWXLeuftbnkcywjJ12IpHq7XoxBigMwCjU8ZBQBTHFGEvksO3TaZpmmp6qPeIELJFMmVE5kw/s1280/Lonjuras.jpeg" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="960" height="427" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjSjMPItE2mCLd65YEG9YmYvFhVH9ACbEHKqELP4U9djyZO_i7dJYPyv3u80k6vUyRSrCoI3AwUnbSBbSjQYTATO82CXiaXv2NkZ-L20yJXjEagiWXLeuftbnkcywjJ12IpHq7XoxBigMwCjU8ZBQBTHFGEvksO3TaZpmmp6qPeIELJFMmVE5kw/w348-h427/Lonjuras.jpeg" width="348" /></a></div><span style="font-family: verdana;">Estás sentado numa pedra olhando o abismo do mar. Sentes a
vertigem de quem pode cair, não por efeito da gravidade, mas da lonjura.
Levantas-te e caminhas um pouco, como se quisesses ir ao encontro de algo
distante.</span><p></p><p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;"><o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Portugal é um país de lonjuras, onde geograficamente tudo
está perto. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"></p><span style="font-family: verdana;">Os portugueses viajaram para longe, atraídos pelo chamamento
do mar, criando grandes distâncias que se opusessem à pequenez de Portugal. E
ser-se de Portugal à distância criou o sentimento da lonjura, a que demos o
nome de saudade. <o:p></o:p></span><p></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Olhas a extensão das águas à tua frente, e sentes a dor da
lonjura, como se alguém te tivesse morrido do outro lado do mar. Tu não sabes,
mas essa dor é a poesia em estado seminal. É isso que ficou guardado na palavra
saudade à espera de que os poetas o dessem à luz.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Caminhas na praia, com um ventinho de fim de outono desagradável
a ferir-te os olhos, e com as narinas dilatadas pela maresia. O mar calmo
parece uma coisa viva a desafiar o que houver nas pessoas de marinheiro. Em ti
há. Há algo que te inquieta, como um ímpeto para uma longa viagem. Soubesses tu
marear e não caminhavas agora, sairias em busca, fosse do que fosse que
estivesse longe, Índia ou Brasil, ou outra longínqua paragem qualquer, como o
objetivo único de uma vida, mas na verdade, apenas para poderes ter saudades de
casa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Quem seguisse, agora, os teus passos, veria nas suas marcas irregulares
na areia uma guerra longínqua que trazes contigo, como um fardo que aumenta todo
o peso do teu ser. Tudo em ti é inquietude e pesar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Os maus pensamentos são traiçoeiros, aguardam momentos como este
para nos assaltarem. Do nada, aparece, quase visível, uma arma na tua
mão. Sentes o metal frio. Sentes o leve cheiro a óleo. E de longe regressou o
sentimento de repulsa por aquele objeto feito com o único propósito de matar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Tu não pegavas na G3 com mãos de soldado. Uma arma transforma
as mãos mais inocentes em mãos de soldado, mas nas tuas mãos uma G3 não parecia
uma coisa de matar. Olhávamos para ti e víamos um camponês de alfaia na mão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">E são essas mãos inocentes que levas ao rosto, como quem o quer
lavar de um mau pensamento, e depois olhas de novo o mar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">O mar repousa, o mar acalma, o mar, no seu contínuo marulhar,
transporta-nos para longe e afasta-nos dos maus pensamentos, e tu deixas-te
levar por essa doce alienação.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Nestes teus momentos de evasão, as boas memórias, porém,
duram pouco, e são as más que perduram. Caminhas na areia da praia da tua
infância, mas é a longa picada de Omar, que sentes a passar agoirenta debaixo
de ti. Ninguém entende porque no meio de uma confraternização deixas de ouvir
as pessoas, como se uma voz distante estivesse a falar contigo, ou então, como
agora, porque caminhas na tua praia de infância com medo que a picada de Omar
te expluda debaixo dos pés.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">A fila de soldados avança como por castigo, com medo do
próprio chão, as Fox atrás deles fazem disparos preventivos como se quisessem
castigar o capim alto, e o sol sobrevoa a cena e castiga tudo e todos indiferenciadamente.
De repente um estrondo. Inesperado, como um trovão a meio de uma tarde calma de
verão. Depois, o silêncio. O silêncio que antecede a consciência da tragédia. É
este o silêncio que desde então te assalta e te interrompe a vida como uma visita
indesejável.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">A que distância ocorreu tudo isto? – Longe, no espaço e no
tempo. Tu sentes essa lonjura — já nem tanto a memória vívida do perigo, do
medo e da morte, mas a distância entre isso tudo e este momento. Sentes em ti a
fundura do tempo, há no teu peito a vertigem de um poço que atrai o suicida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">É que, essa lonjura enorme <a name="_Int_z5aD31T7">separa-te</a>
dum outro que foste. Não sobreviveste. Tu morreste do outro lado do mar. Esse que
voltou é um estranho dentro de ti.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">À medida que o tempo passava, a alfaia que trazias na mão ia-se
transformando numa arma, e as tuas mãos de camponês em mãos de soldado. Bem-vindo
à metamorfose regressiva da guerra: qualquer sublime beleza do mundo é desfigurada
até à réptil fealdade de lagarta.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Trouxeram-te de volta a casa, como se devolve a garrafa
vazia depois de bebido o vinho. Mas tu não regressaste, porque um homem não é
só o que se pode mudar de sítio; muito de cada um de nós vive nas coisas que
fazem o nosso mundo, com as quais estruturamos afetos e caldeamos paixões, no
prazer e na dor, e que nos ancoraram ao sítio onde somos, embora sonhando, possamos
ter a vertigem do longe e do infinito. Somos o rio que é do leito onde corre, embora
corra irredutivelmente para o mar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Mas que longe está o último dia em que os teus sonhos te fizeram
maior que o casulo do teu ser, pois que, um após outro, todos os sonhos que
sonhaste pereceram como nados mortos. Agora, com todos os sonhos sonhados em
vão, restam-te os pesadelos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">E a tua memória, cada vez menos te revive momentos felizes; porém,
quando isso acontece, pousa sobre ti como que um perfume, como que uma música antiga
desfrutada a dois, e que ficou impregnada da felicidade partilhada. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">A memória, não tanto da música, mas do estado de alma que a
música encontrou em ti, resgata-te hoje a felicidade desse dia. A brisa do mar pela
janela entreaberta, refrescando o esbraseamento dos corpos abandonados sobre um
leito em desalinho, como se ali tivesse havido um crime, e não a partilha mais íntima
que a Natureza inventou, mostrando que se podem fazer maus juízos quando olhamos
só para a aparência das coisas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Mas a felicidade é leve e efémera, e o pesar, com maior
densidade, apaga constantemente a luz e a música dos teus dias.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">O Sol atingiu a linha do horizonte e começa a deformar-se
lentamente, logo, logo, as sombras estender-se-ão sobre o areal, e nada nem
ninguém poderá impedir que a noite desça sobre esta parte do mundo, ainda que
isso possa ser um grave problema para muita gente. Tu sabes o que é viver com
um problema que não tem solução, mas tu já nem procuras soluções, basta que te
permitam viver com os teus problemas. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">Contudo, às vezes, nos momentos mais sombrios, o sorriso
dela ainda ilumina a tua noite. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal"><span style="font-family: verdana;">mcbastos</span><o:p></o:p></p>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-87656812987473639582020-07-10T21:54:00.000+01:002020-07-10T22:52:50.019+01:00A minha amante<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Hoje vi um
caçador com uma arma nos braços e lembrei-me de ti.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes
num abraço apertava-te contra o peito. Tínhamos uma relação muito íntima; mas
havia um vago sentimento de perversidade, acho que mútuo, por se tratar de uma história
escaldante. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-OySro9AqCXo/XwjUK65KDRI/AAAAAAAAE3w/l3heGTftFAoYABRJUzuO0QJkHUDnqjEdwCLcBGAsYHQ/s1600/Mueda%2B-%2BQue%2Bfa%25C3%25A7o%2Beu%2Baqui%2B-%2B%2528E%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="1515" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-OySro9AqCXo/XwjUK65KDRI/AAAAAAAAE3w/l3heGTftFAoYABRJUzuO0QJkHUDnqjEdwCLcBGAsYHQ/s400/Mueda%2B-%2BQue%2Bfa%25C3%25A7o%2Beu%2Baqui%2B-%2B%2528E%2529.jpg" width="378" /></a></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Foste de
conquista fácil, peguei-te e entregaste-te logo sem nenhuma resistência, mas
claro, naquela vida, com quantos soldados não ganhaste tu experiência antes de
mim… <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O nosso
primeiro encontro foi logo muito revelador do que esperavas da nossa relação, porque
reparei que trazias lubrificante nas zonas mais íntimas. E claro, na primeira
oportunidade que tive, peguei em ti e fomos sorrateiramente para a mata. Não
sei já quantas vezes disparei, contigo sempre nos meus braços. Estremecias a
cada disparo meu. Parecias querer saltar das minhas mãos. Mas nada disto
admira, pois éramos ambos muito jovens. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Estivemos
juntos cerca de meio ano apenas, mas vivemos coisas que poucos vivem durante
uma vida inteira. À luz do dia fizemos coisas de morrer, mas era à noite que te
sentia mais minha, porque enquanto dormia, tu ficavas encaixada toda a noite
entre as minhas pernas. Às vezes ficavas deitada no chão a servir de almofada,
para eu adormecer com a minha cabeça sobre ti. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sempre que
a guerra o permitia gostava de passar óleo por ti, como todos os homens gostam
de fazer às suas amantes. Depois ficava a olhar-te admirando as tuas formas robustas,
realçadas com o brilho sedoso do óleo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Contigo
junto a mim sentia-me mais homem e mais poderoso. Nenhum inimigo meu estava
seguro num raio de centenas de metros. Ilusões inocentes de juventude. Erros de
formação que levei anos a corrigir. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na verdade
os nossos atos eram reprováveis à luz dos valores mais elementares da moral e
dos costumes, mas em tempos de guerra é comum ignorarem-se esses valores, o que
não me serviu de consolo por muito tempo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É que, na guerra,
mais tarde ou mais cedo, acabamos por perceber que a noção de crime é uma regra
sem exceções. E percebemos ainda que a lei que faz da guerra uma exceção é ela
também um crime. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não quero
ser injusto, mas se te levei por maus caminhos foi porque me tentavas
constantemente. Quando te encostava ao meu ombro e o meu dedo procurava, no
meio do anel do guarda mato, aquela tua protuberância fatal, sentia um
calafrio, porque sabia que logo abrias fogo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É fácil
ser-se casto num convento, como é fácil ser-se pacifista em tempo de paz.
Difícil é caminhar o dia inteiro debaixo de fogo, o terreno minado a escaldar
os pés, e ter uma arma na mão; tanto, quanto seria guardar castidade vivendo
num harém. Desculpa se esta comparação te parecer estúpida, é que eu tenho
dificuldade em desculpar-me de ambas as coisas; de ter sido combatente e de não
ser casto. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É por isso
que quando conheci pessoalmente a Kalashnicova, não resisti. Achei-a mais exótica,
mais ágil, e assim que pude também a levei sorrateiramente para a mata. Devo
confessar que me deu muito gozo, e embora tenha dado alguns tirinhos comigo, não foi com a mesma frequência, nem com o teu
vigor. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Por fim,
como acontece frequentemente na guerra, o caçador virou presa, e a morte quase
me levou. Alguém, também com uma russa nas mãos, armou-me uma armadilha traiçoeira.
Por pouco não morri contigo nos braços.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Prostrado
ainda, na picada do Chindorilho, vi-te desfigurada a meu lado. Não imaginas
como me senti indefeso por te saber incapaz de voltar a fazer fogo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Depois, o helicóptero
afastava-se, e, olhando para baixo, vi-te abandonada na berma da picada. Adeus
Gê. Três vezes me despedi, adeus, adeus. Mas logo te esqueci. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A guerra
uniu-nos e a guerra separou-nos. <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Qual terá
sido o teu destino? Cruel é o coração dos soldados; ainda o som dos tiros não
se tinha calado nos meus ouvidos e já eu te tinha esquecido. Esqueci-te como se
esquecem as paixões escaldantes de verão. Sem mágoa nem saudade. Um orgulho
idiota de macho, uma arrogância de predador saciado.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Será que ainda
te lembrarias do meu nome? Dos quilómetros incontáveis que fizeste pendurada em
mim? Das noites que chegavam cedo e das madrugadas de cacimbo, contigo sempre colada
a mim? Quantas vezes te transportei sobre os ombros, pelas picadas tão longas
que pareciam dividir o mundo ao meio… Os dois braços estendidos sobre ti, a
parecer um Cristo crucificado.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes pedem-me
para contar uma coisa boa da guerra, eu ponho-me a pensar, e custa-me lembrar de
uma que seja, mas depois vêm-me à memória os momentos em que o medo e a coragem
se misturavam de tal maneira, contigo sempre a vibrar bem junto ao meu corpo, que
poucas coisas se lhe comparam. Talvez, Gê, três coisas deste mundo em conjunto,
que me vêm obsessivamente à ideia: o espanto do primeiro dia de tempestade, o
assombro da segunda hora de trovoada e o êxtase do terceiro segundo do orgasmo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">mcbastos </span><o:p></o:p></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<br />mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-79118838796495182702020-01-20T00:23:00.003+00:002020-01-20T00:35:01.126+00:00Uma coisa da memória.<br />
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na minha
memória a imagem obsessiva de um navio deixando o cais. Nunca vai a lado nenhum,
é uma eterna partida. O seu rasto de caracol sobre as águas. O seu rasto brilhando
ao sol. E eu vou lá dentro. Eu a ver o cais cheio de lenços esvoaçando adeuses.
As gaivotas paradas no ar, voando contra o vento.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Adeus mãe,
que eu vou salvar o império e volto já. </span><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-P08QbYQENKA/XiT1k-D35xI/AAAAAAAAEls/GwQkSyJtquwsA9D11kxDYBAhn2_WGKH7QCLcBGAsYHQ/s1600/Niassa%2Bpb.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="644" data-original-width="966" height="426" src="https://1.bp.blogspot.com/-P08QbYQENKA/XiT1k-D35xI/AAAAAAAAEls/GwQkSyJtquwsA9D11kxDYBAhn2_WGKH7QCLcBGAsYHQ/s640/Niassa%2Bpb.jpg" width="640" /></a></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Eu levo um barco
na minha memória, e o barco leva-me a mim, que o levo a ele. Eu e o barco no abismo
infinito de dois espelhos frente a frente mutuamente espelhando-se.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Com o tempo,
o barco esbate-se na minha memória, como os sonhos ao acordarmos. A vigília faz
perder lucidez aos sonhos, o tempo apaga as lembranças da memória; o que resta
afinal do que vivemos? </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas se nos lembrássemos
de tudo, não teríamos tempo para viver. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O barco
deixou de navegar e foi já desmantelado. Dele resta agora apenas esta imagem
imprecisa que guardo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O tempo devora
tudo. Dor e gozo, afetos e ódios têm o mesmo valor para a voracidade do tempo. Num
dia acaba o barco, noutro dia apaga-se a sua imagem sobreviva em mim, depois acabo
eu, o planeta… e o universo onde, num pestanejar do tempo, tudo isto aconteceu.
</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas hoje
ainda existe muita coisa na minha memória e, porque a memória dos homens é o lugar
para onde vão os barcos quando morrem, um barco que já não existe navega, navega
em mim, mas nunca desaparece, como se fosse a navegar em vão contra a corrente.
<span style="background: yellow; mso-highlight: yellow;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No convés,
já não soldados, apenas sombras. Talvez as sombras que dantes iam dentro dos
soldados, que tudo o que um soldado leva dentro de si para a guerra são
sombras. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Vão salvar o
império, mãe. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Há coisas
que só existem na memória. Coisas que eram num tempo que já não é. E coisas que
nunca foram como as lembramos. A minha memória guarda só o que quer, e o que
guarda, retoca e corrige. As minhas lembranças são plágios da realidade
interpretados ao gosto da minha memória. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Lembro-me de
ter a certeza de não haver diferença entre o teu corpo e a imagem dele no meu
pensamento. Cabia à justa no meu desejo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando chegavas,
um brilho trémulo nos teus olhos, fazendo lembrar a ansiedade na véspera das grandes
viagens. Logo depois, as nossas mãos aflitas em afagos de brisa fresca sobre o
areal escaldante. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">As pessoas
que não entendem de afetos perguntam às vezes se somos felizes ainda. Coitadas,
não sabem que o amor é uma coisa da memória. O amor é um barco sempre abandonando
o cais, sem ir a lado nenhum, porque amar é um despropósito. O amor com um
propósito é como casamento por conveniência. Além disso, “ainda” e “amor” são duas
palavras que não vão bem juntas, porque amar é um verbo que só se conjuga no
presente mais que perfeito. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">As coisas
todas, antes de serem devoradas pelo tempo, são constantemente transformadas
noutras; constante só o que sentimos por elas, porque o amor é irreversível,
ama-se uma coisa e essa coisa fica amada para sempre. Nunca deixamos de amar
quem amamos, quem amamos é que às vezes deixa de ser quem era, ou esbateu-se em
nós a memória de ter sido. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Muda o
mundo, e muda o mundo dentro de nós, mas acreditamos na coerência da nossa memória,
porque precisamos de uma narrativa que dê sentido à vida. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não sei já
muito bem como foi quando o Niassa partiu. O rasto de espuma sobre as águas do
Tejo, os lenços em Alcântara como asas de gaivotas sentadas no vento e a sombra
dentro do peito a ouvir a morte ao longe a chamar por nós. Volto já mãe. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E depois, quando
voltamos, somos apenas uma lembrança incompleta de nós, porque os sonhos são
sempre maiores que a realidade, e os pesadelos também. Pobres daqueles que
realizam os seus sonhos; concretizar um sonho é cortar as asas a uma ave. Há
coisas que não se podem apear porque pertencem aos céus. Porém, os pesadelos, concretizamo-los
muitas vezes, porque os pesadelos não voam, são do chão. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O som do
helicóptero a bater no ar. Os ouvidos ainda a apitar da explosão. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E numa vertigem,
o regresso a casa. A insuportável dolência da paz. Só a silhueta em forma de
seio de mulher da serra do Buçaco a despertar-me os sentidos. O eco dos tiros a
desaparecerem a pouco e pouco. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Depois do último
tiro há sempre alguém que pergunta quem ganhou a guerra. Mas quem ganha uma
guerra, ganha o quê, se só resta destruição? Só quem nunca combateu é que quer
saber quem ganhou a guerra. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">De todos os
erros humanos, a guerra é aquele que mais viola impunemente todas as conquistas
da humanidade, e só é possível porque criámos deus para arcar com as responsabilidades.
Deus é o perfeito bode expiatório dos erros humanos porque é uma invenção
humana, e, assim, a absoluta inocência perante os crimes que cometemos.<a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O barco navegando
miragens, a despropósito como o amor, é o esforço da minha memória para corrigir
a História. Há barcos que nunca deveriam largar do cais, porque há viagens cujos
destinos nunca permitem regresso digno.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Fui, mãe,
salvar o império, e fiquei lá. Eu, que voltei, sou outro.</span></div>
<br />mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-36228983225101315922018-11-23T01:25:00.003+00:002018-11-23T01:26:36.426+00:00A história desconhecida do meu pé esquerdo<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span lang="PT-BR"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Esqueci-me do meu pé esquerdo. Sei
que era como o direito mas ao contrário. Não me lembro muito bem, mas acho que
não era um pé muito especial, porque para além de andar e correr não me servia
de mais grande coisa. Bem vistas as coisas, para o futebol eu tinha até dois
pés esquerdos, era, por assim dizer, ambissinistro. Mas dava-me muito jeito
para nadar. O meu amigo Vasco acompanhava-me de barbatanas na dobragem do
paredão Sul da barra de Aveiro e ria-se do meu estilo pouco ortodoxo, um misto
de crawl e bruços, mas não me levava vantagem por muito tempo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<a href="https://4.bp.blogspot.com/-qth1jDApaWA/W_dW1koRzmI/AAAAAAAADdI/CtvFz0HkpPQ0eQSK1iYv7WhXY-z5Z2cDgCLcBGAs/s1600/Alemanha_Hospital%2BMilitar%2B-%2BMini-golf.jpg" imageanchor="1" style="clear: left; float: left; margin-bottom: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1054" data-original-width="1600" height="262" src="https://4.bp.blogspot.com/-qth1jDApaWA/W_dW1koRzmI/AAAAAAAADdI/CtvFz0HkpPQ0eQSK1iYv7WhXY-z5Z2cDgCLcBGAs/s400/Alemanha_Hospital%2BMilitar%2B-%2BMini-golf.jpg" width="400" /></a><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na verdade,
só me esqueci da imagem do meu pé esquerdo – se teria um sinal particular, ou
alguma cicatriz que o tornasse especial – pois sinto-o agora melhor do que
quando o podia ver. Chame-se “sensação do membro presente” esta sensação de ter
um pé… que está ausente. É diferente da “dor fantasma” porque simplesmente não
dói, e faz com que o ProFlex Foot XC fabricado na Islândia pareça mais real.
Este cérebro humano acha estranho que dali não venha nenhum sinal de vida e
aumenta a sua própria sensibilidade para ver o que acontece. E o que acontece é
que se sente um pé onde apenas está uma engenhoca de duralumínio, titânio e
fibra de carbono.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Para um
espírito otimista, alguma coisa de bom haveria de ter um pé de metal, mas eu
ainda não descobri nenhuma, mesmo quando o cão de um vizinho me tentou ferrar.
Eu ofereci-lhe a prótese, mas o faro do bicho tramou-me.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No dia de
Páscoa de 1972 tiraram-me uma fotografia em Mueda, onde ele aparece pela última
vez, muito sossegado ao lado do seu irmão direito. Alguns meses depois pisou o
chão de África pela última vez, despedindo-se deste mundo com muito estrondo,
tanto quanto seria possível com o quarto de quilo de trotil de uma mina antipessoal,
tendo acabado aí a sua missão de me transportar a meias com o seu irmão simétrico.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Para ser
justo, não poderei subestimar as suas qualidades, tanto mais que as várias
tentativas para o substituir condignamente falharam redondamente, a começar
pelo trambolho tosco e mal-amanhado que rematava a perna de pau desequilibrada
e rudimentar com que os nossos parceiros alemães da NATO queriam que eu
voltasse a caminhar. Vim da Alemanha com um objeto de tortura medieval que deve
ter chegado para espiar os meus mais escabrosos pecados. Tanto os já cometidos
como os que eu venha a cometer até ao dia do juízo final. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os meus
netos parecem achar interessante que o avô se pareça com o cyborg dos seus
jogos de vídeo quando anda de calções, e pensam que deve ter sido um ato de
guerra heroico que esteve na origem da minha amputação. Aqui nasceu uma dificuldade
didática, porque na verdade eu dei o que dão os heróis quando combati na guerra
colonial, só que uma guerra é talvez o lugar menos provável para se praticar atos
heroicos, e numa guerra criminosa como esta, se não tivermos muito cuidado arriscamo-nos
até a cometer crimes. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Como se
explica a uma criança da geração do Google que isso foi possível apenas por desinformação?
E que o país onde a chateiam para aprender imensas coisas, é o mesmo país onde
um dia a ignorância era obrigatória, onde as escolas tinham um livro único e os
jornais um lápis azul para os ignorantes riscarem as coisas ditas por pessoas inteligentes.
</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É tão
difícil explicar uma coisa estúpida a uma criança inteligente como uma coisa inteligente
a um adulto estúpido. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Antes de eu
partir para a guerra a minha mãe parece que fez um contrato com a Nossa Senhora
de Fátima para garantir que eu vinha de lá são e salvo, cujo compromisso da sua
parte era ir a pé de Aguim até à Cova da Iria todos os anos. Nunca percebi o
que ganhava a santa com aquilo, mas desconfiei sempre que se tratava de uma
tara originada pela vida sensaborona de uma virgindade eterna. Além disso, pareceu-me
que tendo vindo eu sem um pé, a minha mãe não deveria pagar a promessa por
inteiro, mas não consegui convencê-la a ir a pé, digamos, até Coimbra apenas.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um dia, no
verão de 1965, na praia da Costa Nova, a Marisa sentou-se mesmo em cima do meu
pé esquerdo. Com o peso da Marisa o meu pé esquerdo enterrou-se na areia e ela
esteve bem meia hora naquela posição sem dar por nada. Passado um quarto de
hora sem me mexer, para sentir todas as delícias da região sagrada da anatomia
da Marisa, o meu pé esquerdo ficou dormente, depois acabou por ficar totalmente
insensível. Foi a primeira vez que o meu pé esquerdo sofreu uma amputação,
ainda que virtual, mas aquele primeiro quarto de hora teve os melhores 15 minutos
que o meu pé esquerdo viveu. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No inverno
de 1971, na casa de banho comunitária do quartel das Caldas da Rainha, o meu pé
esquerdo, e apenas o meu pé esquerdo, desenvolveu uma infeção fúngica. O Capitão
médico do quartel, num relance, garantiu com ar categórico - É pé de atleta! Soou-me,
assim de repente, mais a uma distinção desportiva do que a um diagnóstico
médico. O pior é que durante o resto da minha vida de militar vi-me obrigado a
introduzir um gesto extra em todos os exercícios físicos: coçar o pé de atleta.
</span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Esse martírio
só terminou na picada do Chindorilho, na província de Cabo Delgado da colónia
de Moçambique, exatamente às 14 horas e 12 minutos do dia 4 de Junho de 1972. Nem
o antifúngico do capitão médico, nem as pomadas de todos os enfermeiros do meu batalhão
resolveram o problema, só a mina antipessoal da FRELIMO lhe pôs fim. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Este
desfecho fatal aconteceu ao meu pé esquerdo porque eu acreditei que era um
dever humanitário ir matar terroristas para África e salvar o império. Pelo
menos foi assim que eu entendi as coisas. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sempre que precisam
de mandar soldados matar alguém, convém convencê-los que são terroristas; e quando
os professores, os livros e a imprensa dizem em coro que são terroristas, a
gente acredita, não é verdade? O pior é quando se descobre que os terroristas são
demasiado parecidos connosco, ou que estamos a rematar para a baliza errada. Cria-se-nos
a confusão mental típica de quem aparece por engano num funeral vestido com uma
fantasia de carnaval. Alguém se aproveitou da nossa ignorância, e o pior é que também
nos mantiveram ignorantes compulsivamente desde início para melhor se aproveitarem
de nós. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin-bottom: .0001pt; margin-bottom: 0cm;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Se isto não
é abuso moral por parte do Estado é de certo escravatura intelectual.
Impediram-me o acesso ao conhecimento para poderem usar a minha ignorância. </span></div>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 107%;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Do Estado
não exijo muito mais para mim, na reparação material da minha lesão física de
guerra, ao contrário de muitos camaradas<a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a> meus
verdadeiramente injustiçados, mas exijo um condigno e honorável pedido de
desculpas pela lesão moral, se não a mim pessoalmente, pelo menos, a título póstumo,
ao meu pé esquerdo. </span></span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-80146884867844962602018-08-11T19:56:00.000+01:002018-08-11T19:56:25.152+01:00Golpe de mão<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ao abrir os olhos, os rebentos ainda tenros do capim, vistos
ao acordar, assim rente ao chão, parecem plantas enormes e o vulto em decúbito do
Nunes é uma montanha distante - as manchas do camuflado em cores vegetais e a sujidade
de dias ajudam à ilusão.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O planalto dos Macondes acorda sempre em hipotermia, com os
suores frios do cacimbo, mas a capacidade humana de habituação permite que estes
vinte soldados tenham achado conforto suficiente para dormir toda a noite, e
alguns ainda dormem, apesar da humidade e do frio; as fardas com o lustro das
gotículas do cacimbo sobre a capa impermeável da sujidade.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Rodo o corpo para ficar de costas e fico a olhar o cinzento
ceroso da atmosfera sobre mim, um enorme borrão em vez de céu.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A floresta começa a acordar num torpor de ressaca, as
árvores estremunhadas de pássaros inquietos com a luz da manhã, os ramos derreados
de preguiça que o ar pesado não sacode, as folhas deslavadas pelos suores do
cacimbo matinal e os troncos hirtos entorpecidos pela prostração noturna, ou,
afinal, apenas a eterna imobilidade das árvores, como é de sua condição vegetal.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O Nunes acordou numa série de espasmos, como se fosse
difícil sacudir o sono. Depois ficou imóvel, também de barriga para cima, a
olhar a nódoa gordurosa do céu. Um a um os homens vão despertando a custo, como
se dormir ao cacimbo da manhã fosse a coisa mais confortável do mundo, ou não
estivesse a guerra à sua espera.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O alferes já está sentado, consultando o mapa. Faz sinal a
alguém para se aproximar. Agora estão dois vultos esbatidos pela nódoa translúcida
do cacimbo a consultarem o mapa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">As silhuetas dos soldados de cócoras, arrumando os seus
parcos utensílios, parecem sacos de lixo abandonados na manhã embaciada.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Como se obedecessem a um mecanismo coordenador vão agora escoando
por uma fila para dentro da mata densa. Olhando de perto, os seus lugares mais
secos ficam marcados na humidade do capim derrubado onde dormiram, como se
tivessem sido almas do outro mundo que evaporaram. E eram.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mas não evaporaram. Uma longa fila de almas do outro mundo
caminha agora floresta adentro, mas vão com uma missão deveras humana e deste
mundo, vão com a missão de matar. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A partir do momento em que um ser humano aceita que a sua
missão inclua a forte probabilidade de ter de matar, o valor da vida deixa de
ser uma referência suprema para passar a valer como moeda corrente, cuja cotação
depende de muitas variáveis. Agora o valor da vida desce a cada metro
percorrido pela fila de por aquela fila de combatentes que se embrenha na mata
densa do planalto dos Macondes.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Olhando a muralha vegetal da floresta a limitar a clareira
de onde se escoaram os elementos da 3503, parecia impossível que alguém em seu
perfeito juízo decidisse escolher justamente esse lugar para enfiar vinte soldados,
e que estes aceitassem fazê-lo com o mesmo à-vontade com que dariam um passeio num
jardim público. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mas os estrategas militares não são caraterizados por
escolherem as soluções mais simples, e os soldados não são reconhecidos por
questionarem as ordens que recebem. Basta convencê-los de que a sua missão letal
é moralmente justificável e que o sangue que lhes suja as mãos é o preço mínimo
a pagar por uma causa maior. Não raras vezes vêm a descobrir mais tarde que
foram vítimas de abuso moral; de exploração da sua genuína voluntariedade e coragem
e de profanação do seu verdadeiro espírito de sacrifício. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O farfalho vegetal da floresta virgem do planalto dos Macondes
deixou-se penetrar pela bicha de pirilau dos soldados do primeiro grupo de combate
da CART 3503 numa convulsão orgástica de vários minutos, e depois de envaginar
os vinte soldados, sossegou complacente e reconfortada. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quem quisesse assegurar uma esperança de vida de pelo menos
mais um dia, não deveria passar daqui, mas os homens da CART 3503 já aprenderam
há muito a viver com uma curta esperança de vida. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O cacimbo aliviou e o sol apressa-se a evaporar a humidade residual,
mas uma ténue neblina, como um hálito de fauce de predador abocanhando a presa,
envolve a coluna de combatentes. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na clareira tudo regressou à normalidade após a saída da
3503, o próprio capim tombado à sua passagem reergueu-se um pouco, penteado
pela brisa já quente.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Daqui não se adivinha o que se passa com aquele grupo de combate,
uma simples coluna apeada de militares, as armas abraçadas junto ao corpo e a
enorme corcunda das mochilas a transfigurarem os seus corpos. Uma fila silenciosa
e sinistra de vultos que caminham curvados para se protegerem da fustigação do
capim. De certo modo, simples na aparência, uma lagarta coleando no capinzal,
mas deveras complicada na realidade, se conhecermos toda a azáfama interior na cabeça
de um soldado caminhando em direção ao local onde se definirá a cotação do dia
para a vida. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Desapareceu o último combatente, o camuflado a confundir-se
cada vez mais com a vegetação, até se tornar invisível. Ficou a imagem caótica da
floresta eterna e a sinfonia polifónica dos animais, eles também invisíveis no
meio da folhagem. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Os animais da floresta nunca permitem um momento de silêncio.
Uma tal quantidade de sons de todas as intensidades e frequências, que se
misturam de tal forma, que não é possível a identificação de nenhum. Para
contrariar isto um enorme inseto voa perto, fazendo lembrar o som de um motor, mas
logo mergulha na polifonia circundante desaparecendo, como desaparece a voz de
uma pessoa ao misturar-se numa multidão em alvoroço. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Cria uma certa serenidade este tumulto. A variedade de sons funciona
como um lenitivo sonoro, como acontece com o “ruído branco”, <a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a>composto
pela mistura de todas as frequências audíveis. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O ar apenas povoado pela miríade de vozes dos animais da
floresta é subitamente estremecido pelos estampidos secos de uma vintena de G3,
entrecortados pelos estalidos metálicos de algumas Kalashs, a que se sobrepõem
os rugidos cavos de uma MG42. Não se ouvem vozes humanas em pânico, não se
ouvem gritos de criança, não se ouve o
sopro do fogo que varre o que resistiu às balas; não se ouvem os sons do
desespero, do terror e da devastação, porque as vozes das armas que destroem e
matam, falam mais alto e calam também as vítimas inocentes. E quando se deixam
de ouvir, fica um silêncio aterrador, até os animais emudecem; não é silêncio,
é surdez, a surdez total da morte. Para alguns a cotação da vida acabou de
atingir o valor zero da escala. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Depois de um intervalo em que a vida se suspendeu, em estado
de choque, na floresta do planalto dos Macondes, ouve-se ao longe o padejar de helicópteros
a aproximarem-se. São dois, e por isso não vêm transportar os soldados, ou
seriam mais, vem evacuar feridos. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um dos helicópteros desceu e o outro descreve círculos em
torno do primeiro, como uma ave de rapina, depois, partiram tossindo e arfando,
em direção a Mueda. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O som dos helicópteros já não se ouve, e o som dos animais
em crescendo, traz de novo o bulício à floresta. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E a vida prevalece, mesmo onde a morte teve o seu momento de
glória. A Natureza parece querer apagar com a sua infinita capacidade de
regeneração o tremendo erro na evolução das espécies, que permitiu o
aparecimento da crueldade humana. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sem a pérfida inteligência humana, todos os seres inocentes
da floresta retomam o equilíbrio da vida selvagem, regidos apenas pelos
instintos. E as árvores, acima de todos, imperturbáveis e monumentais. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A monumentalidade das árvores da floresta africana causa o
mesmo efeito em nós que as grandes obras arquitetónicas, sentimo-nos sempre
pequenos na sua presença. Mas somos tão insignificantes como perigosos. Não
somos deste mundo, viemos aqui só para o destruir.</span></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-46724929935615535212018-07-26T20:09:00.000+01:002018-07-26T20:09:01.549+01:00Canção para Yana<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Do romance “Uma história
de amor com guerra ao fundo”. <o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Corpo de bronze, beijo de água , sexo de fogo. Todo o sol de
África no teu colo. Morro e ressuscito em ti. Tanto ódio em teu redor e tanto
amor à minha espera. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Que faço eu de arma na mão? </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Olhar de orvalho pela manhã, quando parto; corpo esbraseado
ao sol pela tarde, quando regresso selvagem, torpe e sujo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sob a bênção do Cruzeiro do Sul glorificas-me a todos os
deuses de todas as Religiões, agora, que todos os demónios me possuem, e ainda
assim mantive-me <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>ignorante. Queria ao
menos poder louvar a terra quente que te gerou, mas como eu não sei rezar contemplo-a
em puro silêncio, que o meu silêncio é a única coisa pura que resta em mim. <span style="background: yellow; mso-highlight: yellow;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Não tenho perdão, a minha maior culpa é a de tentar
sobreviver; os corajosos fogem e os inocentes morrem, e eu caminho desafiando as
balas, para que o medo me faça sentir humano.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mantenho-me acordado à noite para poder sonhar, eu que vivo
em pesadelo. A floresta mágica aguarda por que amanheça para me atrair. No seu
ventre rumina-se a guerra e eu participo da matança, mas não sei se sou
predador ou presa. No fim da digestão a floresta regurgita os sobreviventes e
eu venho procurar-te, carregado de culpa, derreado de guerra, coberto de
sombras, vestido de nojo. E tu recebes-me sempre. Lavo-me em ti,
desentristeço-me, destraumatizo-me e reinocento-me a cada manhã. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Que faço eu de arma na mão?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Que guerra é esta, em que somos inimigos dos homens e
amantes das mulheres? Que fizeram os nossos antepassados que nós temos que
desfazer? Porque lutamos, se parece não termos objetivo nenhum? </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Talvez porque durante gerações e gerações o teu povo sempre tenha
sido humilhado pelo meu; talvez porque a humilhação humilha o humilhador; talvez
porque à minha reles lascívia tu respondes com a nobreza do teu amor, é que me
sinto morrer a cada tiro que dou. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O meu maior crime é saber-me culpado e manter-me criminoso. Dia
após dia sinto maior o abismo dos vãos e desvãos do teu corpo e maior a vertigem que me faz
mergulhar. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ávido, quero embebedar-me de ti; faminto, quero cevar-me;
adicto quero drogar-me – e a ressaca é ainda mais inebriante que a bebedeira,
quando de manhã fico a vigiar o teu corpo extenuado, abandonado ao sono sobre a
enxerga, como seara ondulante cansada de se entregar ao vento toda a noite. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Já luz o janelo da palhota. A floresta já acordou estremunhada
num breve instante de silêncio — os animais da noite foram dormir e os do dia ainda
não despertaram. É a mudança de turno da Natureza, o momento que me traz mais aflição,
porque, vá-se lá saber, Deus pode existir e aproveitar este momento de descontração
da Natureza para se deixar de brincadeiras e começar a escrever por linhas
direitas, e o que será de nós se ele se lembra de fazer justiça? </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Deixa-me, Yana, adormecer e acordar dentro de ti. Enquanto
estou no teu corpo todas as coisas boas são verdade. Fora de ti a realidade dói,
como a luz crua do sol nos olhos. Doce é o luz mansa do teu corpo. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span style="mso-ascii-font-family: Calibri; mso-hansi-font-family: Calibri;">Por um momento só, deixa que eu próprio não dê ouvidos à minha
consciência, porque às vezes a verdade é a última coisa que queremos ouvir.</span>
Não quero acordar, não quero acordar, deixa-me ser criança mais um pouco, que
enquanto durmo sou inocente. E enquanto for inocente posso ser amado por ti sem
vergonha. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Fantasmas pairam sobre o aldeamento; espíritos dos teus
antepassados ofendidos pela rendição do teu corpo ao domínio canalha dos meus
instintos predatórios. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Cevo-me, alarve, em ti; alarvo-me, besta, no teu corpo;
bestializo-me, fauno, no teu sexo. E tu, ninfa, e tu deusa, sublimas-te sobre a
escória da minha luxúria. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quanto mais turva a minha corrupção mais alva a tua pureza. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ó doce, ó cândida, ó inocente, sinto em ti<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>a pureza <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>inexplorada da floresta virgem, a calma
hipnótica da savana, a miragem <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>onírica
dos desertos. Sinto em ti o ventre desflorado da África, mãe de toda a
humanidade, que a Europa toda viola e sangra. E eu o explorador que rumou de
regresso às origens como um filho pródigo trazendo com ele a ingratidão, a
arrogância e o fracasso das aventuras inúteis.<span style="background: yellow; mso-highlight: yellow;"> <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">É à luz mais forte que as sombras são mais escura, <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>e na doçura do teu afeto é que se gera a maior
agrura do meu remorso.<span style="background: yellow; mso-highlight: yellow;"> <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ah, que pesam sobre mim todos os crimes da expansão marítima.
Pesa-me o promontório fálico de Sagres e a água desvirgada pelos
descobrimentos, pesam-me as caravelas seminais que espalharam a ganância pelo
mundo e toda a ignorância dos exploradores a procurarem em África o ouro que
foram encontrar no Brasil. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ah, que pesam sobre mim quinhentos anos de escravidão. Todas
as mulheres violadas e todas as crianças renegadas. E mais do que isso ainda,
muito mais, pesa sobre mim tudo o que eu sei e o que eu não sei;<a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a> e o que eu não sei é mar e vastidão dos desertos, é a rota
tenebrosa dos negreiros e as grilhetas dos escravos a sangrar. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Salva me da minha autorepulsa e rejeita-me. Eu vim para odiar
e matar e recebi o teu amor em troca, é humilhante ser amado com dignidade. Odeia-me
se realmente gostas um pouco de mim. Exorciza-me de ti. Põe fim à minha farsa
humana. Salva-me da impunidade. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Que faço eu, meu Deus, de arma na mão? </span></div>
<br />mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-90519651101495827852018-05-15T22:56:00.000+01:002018-05-15T22:56:12.093+01:00Saudades de Mueda<br />
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a><br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt;">São
frias as noites em Mueda. São curtas e frias. São húmidas. E tristes.</span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A
manhã chega depressa e traz a guerra. Logo sentiremos os tiros que já não nos
assustam, antes nos lembram que estamos vivos. Mas estar vivo num lugar onde o
objetivo é matar, não augura nada de bom.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Todos
os dias se sofre em Mueda. Todos os dias se sofre e faz sofrer. Morre-se. E
mata-se. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Há
uma monotonia trágica em Mueda, como se Deus se tivesse esquecido da máquina da
guerra a trabalhar enquanto se entretinha com outra coisa. Deus esqueceu-se de
Mueda e deixou os homens enlouquecer à vontade; e aqui, a loucura parece ser a
maior virtude dos homens. <o:p></o:p></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-cztfEjQyhyY/WvtXFQB9eWI/AAAAAAAADCs/hw96QuUK9DkwEBtZFDmRfYkaouUpA0c1wCLcBGAs/s1600/Mueda%2B-%2BHelic%25C3%25B3petro.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1050" data-original-width="1600" height="210" src="https://2.bp.blogspot.com/-cztfEjQyhyY/WvtXFQB9eWI/AAAAAAAADCs/hw96QuUK9DkwEBtZFDmRfYkaouUpA0c1wCLcBGAs/s320/Mueda%2B-%2BHelic%25C3%25B3petro.JPG" width="320" /></a></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Calibri, sans-serif; font-size: 11pt;">Todos
os dias há alguém que pensa em Deus. Todos os dias há alguém que para
desconcertado com a maldade humana e com o alheamento divino, e que depois tem
que seguir em frente, invariavelmente na direção em que vai encontrar mais
sofrimento e morte, e maior ausência de Deus.</span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">De
Mueda sai-se seguindo sempre em frente, só se volta para trás quando se fizer
suficiente mal a alguém. Dezenas de soldados, uns atrás dos outros, ordenados,
coordenados, alinhados; de helicóptero, de Berliet, ou a pé; sempre sem que
Deus pareça interferir na sua determinação de irem em busca da morte.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Tão
diferentes, os soldados que saem de Mueda, dos que regressam. Algo no meio da
mata misteriosa modifica os soldados, algo lhes tira brilho e cor, lhes assombra
o olhar, lhes suja o rosto. Algo os envelhece. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Ver
um camarada cair habitua-nos à ideia de que somos perecíveis e a ideia da morte
torna-se-nos familiar, não como algo que nos espera adiante, mas como algo que
nos acompanha a cada passo que damos. E a cada passo envelhecemos com a ideia
da morte.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A
coragem às vezes é a única solução. Podemos nunca saber o que é a coragem até
não nos restar mais nada para garantir a sobrevivência. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Há
quem esteja morto em vida por nunca ter chegado à beira do abismo e nunca ter
conhecido o fim do caminho; nunca ter conhecido o rosto de quem caminhou todo o
dia à nossa procura para nos matar, porque, na aritmética da guerra um de nós
tem que ser subtraído à existência. E estarmos nós à sua espera de arma na mão coloca
as coisas em termos simples, em termos fáceis de perceber: somos peças de um
jogo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mas
não podemos fugir de Mueda, porque de Mueda não se vai para lado nenhum, senão
em direção à guerra; o mundo acaba aqui. Mueda é uma ilha rodeada de morte por
todos os lados. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Há
um cheiro de morte em cada cheiro que se nos cola ao corpo. O bedum do óleo e da
pólvora queimada da G3, o bafo do escape das Berliets, a catinga da floresta, o
nosso ininterrupto odor corporal.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Às
vezes tornamo-nos um pouco mais humanos, quando recordamos as coisas que
constituíram a vida antes de Mueda. Eu tenho saudade de acordar e sentir logo
vontade de correr. Saudade da frescura do café pela manhã, da boroa acabada de
cozer, da fragância da relva orvalhada nas manhãs de Inverno . Fazem-me falta
os cheiros dos campos, desde a essência doce do pólen até ao fedor bom do
estrume.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Agora
acordo com a exsudação húmida do cacimbo e adormeço com o hálito metálico da trovoada.
<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Quando
isto acabar e outra geração se suceder à nossa, vai parecer impossível que nos
tenhamos sujeitado à escravidão e que não tenha havido forma de lhe escapar.
Vai parecer irrisório que apenas a ignorância tenha sido suficiente para nos
impedir de refratar, como faz a luz ao encontrar um meio que lhe dificulta o
caminho. E a ignorância é o meio mais eficaz para dificultar a propagação de
toda a luz. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mas
não se julgue que a guerra consegue apagar toda a luz de um homem; às vezes é
preciso até um pouco de escuridão para descobrirmos se brilha ou não algo
dentro de nós.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">É de
sonho e pesadelo o destino de um soldado, como eu agora aqui, perdido em
pensamentos, enquanto voo em direção ao inferno. É de coragem e de medo esta
vida cumprida a ferro e fogo. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Com
o braço, aperto a máquina fotográfica contra as costelas e seguro a G3 entre as
pernas, porque o helicóptero adornou um pouco para a direita. Afasto mais os
pés para aumentar a base de apoio e percebo que estamos perto do objetivo.
Sinto uma serenidade muito grande, todo o meu ser se prepara para a violência
que se vai seguir, não tenho tempo agora para sentir medo, algo em mim se
suspende, nada me pode distrair a partir de agora.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Da fundura
do tempo venho à superfície como uma rolha<span style="mso-spacerun: yes;">
</span>de cortiça que não aguenta muito tempo imersa.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sei
que o helicóptero pairou a três metros do solo, sei que saltámos e que seguimos
pela mata dentro como se algo de lá nos atraísse a todos. Sei que se seguiram
momentos de perigo e sei que não morri lá, o resto parece apenas um pesadelo difuso
que o tempo foi esbatendo a pouco e pouco. Sei também que alguns de nós não
regressaram e que a maioria dos que regressaram trouxeram a guerra gravada a
fogo na memória, como uma tatuagem na alma, ou sei lá onde, entre a pele e essa
luz que encontrámos a brilhar dentro de nós nos momentos de maior negrume no
inferno tenebroso da guerra.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sei
que havia um cemitério em Mueda, onde se dissolviam na terra alaranjada de
Moçambique os corpos dos que deram tudo a troco de nada, e que nenhuma luz de
humanidade devolveu à terra mãe de onde partiram, porque a pátria madrasta que
nos obrigou a combater se envergonhava dos mortos sacrificados em seu nome. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Agora
dissolvem-se na terra onde foram esquecidos e talvez lá devam ficar para sempre,
porque os seus corpos já se confundem com a terra que os acolheu, e ninguém
merece que o seu regresso venha a apagar a ignomínia de os lá terem deixado. Que
a vergonha dure para sempre. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Estive
lá. A guerra não se fez sem mim. Acreditei em oitocentos anos de História, mas
a realidade incumbiu-se de me mostrar em poucos meses que quase tudo o que me
ensinaram era mentira, não sem antes aprender que não é difícil matar um homem,
difícil</span><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">
é viver depois disso; difícil é passar o resto da vida a tentar fazer com que os
nossos mortos façam sentido.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mas
o que é estranho, é o nascimento da saudade desses tempos, como se a superação
da tragédia fosse glória bastante. É esta a fútil glória do sobrevivente.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Durante
imenso tempo, vivi uma vida que não era a minha, uma vida postiça, e fui uma
personagem de uma história mal engendrada. Como diabo posso eu ter saudades
disso? Poderemos nós ter saudades dos pesadelos de um tempo em que a única
coisa boa era sermos jovens?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">É de
mim que tenho saudades, e olhando para trás confundo a história com a
personagem e confundo a personagem com o cenário, ou, de certo, é a humana
capacidade de perdoar que procura algo de bom para redimir o passado.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mueda
revisitada e perdoada, nós, os que sobrevivemos, precisamos de perdoar para
continuar a viver.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Que
os mortos nos perdoem também.</span></div>
<br />mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-64014484840992627462018-03-13T23:11:00.000+00:002018-03-13T23:11:06.226+00:00Roubam-me deus, outros o diabo <br />
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A
minha cabeça é uma casa assombrada.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Dentro
de mim, um tumulto de almas penadas espiando culpas de que estão inocentes.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Caminho
por entre pessoas que não entendo, como se o riso fosse uma alucinação e a
alegria uma obscenidade.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">As
minhas memórias são fantasmas que me acompanham para onde for. Amigos que
tombaram pelo caminho, que me recuso a esquecer. Juntos, rimos e lutámos, e
agora falamos em segredo, para não acordar a indiferença do mundo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Querem
que a gente volte da guerra como se nada tivesse acontecido, porque não querem
ser assombrados com os pormenores. Nós falamos dos tiros e dos furos das balas
na pele. Das minas e do interior dos corpos que fica à vista. Dos sons da
guerra próximos do limite da frequência sonora audível, e que às vezes
ultrapassam esse limite e deixam de se ouvir, como se estivéssemos num filme
mudo. Falamos do cheiro do sangue fresco e da carne ainda pulsante. O osso
limpo, os tendões cortados e as fibras dos músculos rasgadas. Durante meses não
se pode ver uma coxa de frango; depois acabamos por falar disso como se fala de
um ofício a que nos dedicámos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O
Manel até tirava fotografias. Eu: Ó furriel, essas fotos são pra não se
esquecer disto? E ele para mim: Ó Zé, nós nunca nos vamos esquecer disto até
morrer.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Acho
que ele, com o tempo, foi criando uma raiva contra aquilo tudo, enquanto eu ia
aceitando as coisas para poder aguentar, para poder sobreviver. Andámos ao
contrário para obter a mesma coisa. Depois, de repente, disseram-nos que tudo o
que dantes era inevitável, tinha de acabar, e deixámos de ser precisos. Só
servíamos para alimentar a guerra, como lenha para a fogueira, e decidiram
apagar a fogueira e deitar a lenha fora. Regressámos a um país diferente
daquele que nos enviou para lá, e tudo o que fizemos passou a estar errado, do
dia para a noite. Num país em que a ignorância é obrigatória por lei, podemos
ser apanhados com uma arma na mão como um bombeiro de mangueira em punho para
apagar um fogo onde há uma inundação.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O
Manel a tirar fotografias, como se quisesse reunir provas para demonstrar que a
estupidez humana realmente existe. E eu via-o como um turista que não levava
aquilo a sério para não ficar louco. Se não tivesse lerpado com uma mina,
estava agora pior do que eu, tenho a certeza.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Mas
eu não estou traumatizado, não, eu tenho é saudades da guerra. Deram-nos uma
missão importante para cumprir e nós demos a nossa vida por essa missão.
Ensinaram-nos desde sempre que isso era o nosso dever e ensinaram-nos também a
sentir orgulho por ele nos ter sido confiado. Há alguma coisa pior do que
descobrir que nos enganaram? Que a nossa missão era um crime e que o nosso
dever era uma maldição?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Que
fazer agora com os mortos? Como resgatar os inocentes sacrificados? Como
reverter a dor depois de sentida?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Tenho
saudades de me sentir do lado certo da História, de me sentir um soldado a
servir uma causa justa.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Anseio
por uma causa justa por que lutar.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Só
que me roubaram a fé. Roubaram-me Deus. Fiquei de mãos vazias e sujas de
guerra. Não se pode rezar com as mãos sujas de guerra e não se pode ser herói
numa ato criminoso.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Roubaram-me
Deus e roubaram-me o Diabo, por quem lutarei?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Esfrego
a pele para limpar a tatuagem do meu patriotismo e a tatuagem não sai. Amei o
meu país com um amor impúbere e fui abandonado por ele, prenhe de pesadelos. A
tatuagem das minhas memórias é um ferro em brasa que me não saí do pensamento.
Ninguém regressa do inferno inocente, ninguém regressa vivo do calvário.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O
que vês, Zulmira, quando fechas os olhos? Será que vês o que eu vejo? <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sou
uma homem-bomba pronto a explodir de memórias. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sou
um comboio em chamas rasgando a noite escura, exorcizando os fantasmas no meio
das trevas da indiferença dos que nunca fazendo perguntas estão sempre de bem
com Deus e com o Diabo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Se
ao menos ainda te amasse, Zulmira, deitava-me ao teu lado e adormecia
ignorante, que o conhecimento incomoda, mas alguém me roubou também o meu amor
por ti. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Deixa,
ainda assim, meu amor passado, que me deite ao teu lado, deixa que arrefeça
esta acha ainda em chamas, tirada da fogueira em que arderam os meus sonhos de
criança. Eu, de mim dei o que dão os heróis, mas coube-me o papel errado. Sou
um personagem criado por uma história escrita por criminosos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Esta
noite sonhei que era uma criança inocente brincando. Será que acordei para a
realidade ou agora sou um velho soldado com que uma criança inocente está a ter
um pesadelo?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Tanta
coisa acontece na vida de um homem e tanta coisa é esquecida, lembramo-nos
apenas de meia dúzia de coisas boas, mas das tragédias lembramo-nos bem.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sei
que passei horas de convívio caloroso e camarada como nunca se consegue passar
em tempo de paz, porque as coisas escassas são mais preciosas, mas não me
recordo de quase nenhuma. E os amigos que fiz e que esqueci? É como se não
tivesse vivido esses momentos, porque o que ficou na memória foram sobretudo as
experiências dolorosas.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">A
felicidade é o luxo da mente, e o luxo é uma fraude. Não é real, é um cenário
montado para exibir a opulência de uma minoria que ofusque o ruído e o
desconforto de que é feita a imperfeição da vida para a maioria. Resta o amor.
O amor é sempre possível, mas deveria haver mais do que uma palavra para dizer
amor. Há amor que mata e amor que salva, há amor que castiga e amor que redime,
há amor que revigora e amor por que se morre. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Dizem
que se o amor acaba, é porque não era amor de verdade, então quando um homem
morre é porque nunca viveu de verdade também? Que pensa um homem olhando o cano
da arma com que vai matar-se? Que nada na sua história merece mais um dia de
vida, ou que a sua história é tão preciosa que o futuro previsível não merece
ser vivido?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"> O
inflexível arco do tempo não sai nunca do mesmo lugar, nós é que somos
perecíveis. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Tudo
o que acontece é passado. O que fizemos no passado é que faz de nós o que somos
hoje, e o que somos hoje é que dá forma ao passado, que o passado só é passado
quando o vemos do presente. Igualmente, o que fazemos agora será passado
amanha; não preparamos o futuro, preparamos um passado que mereça os dias de
vida que temos para viver.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Sem
ti, Zulmira, para recuperar a ignorância original, recosto-me no sofá, vítima
do conhecimento do inferno imposto à minha juventude perdida.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">O LP
no gira-discos entre estalidos. O cantor cantando o poeta. As lágrimas que não
seguro. E as palavras do poeta na voz do cantor, como facas:<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Roubam-me
Deus, outros o Diabo.</span></i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Quem
cantarei?</span></i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Roubam-me
a pátria e a humanidade, outros ma roubam.</span></i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Quem
cantarei?</span></i><span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";"><o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt; mso-bidi-font-family: "Times New Roman";">Um
dia cantarás a revolução. Nesse dia, cantor, as lágrimas serão de esperança. <o:p></o:p></span></div>
<br />mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-24768079156513175732018-02-16T23:24:00.000+00:002018-02-16T23:24:03.926+00:00As primeiras chuvas<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<a href="https://www.blogger.com/null" name="_GoBack"></a><br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11pt;"><i>(In</i> História de amor com guerra ao fundo)</span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11pt;"><br /></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11pt;">Cansados
de Verão, respiramos melhor no ar purificado pelos primeiros frios,
confortáveis no aconchego da roupa mais pesada, depois da lassidão transpirada
dos corpos sob panos leves.</span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A
todo o momento a chuva ameaça surpreender os otimistas que saíram à rua de
corpinho bem feito. Olho-os do carro, certo de que a chuva apenas aguarda que
eu ponha o pé na estrada para repentinamente desabar sobre mim numa carga de
água.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sei
que ela passará por aqui. Sairá daquela porta e entrará no carro para ir ao meu
encontro. Quero antecipar o prazer de a ter, olhando-a. Quero ver-lhe os
gestos, ou menos que os gestos, apenas o movimento. O movimento é o que a
conduzirá a mim, e, posso senti-lo como certo, o movimento dela será o que me
dará o maior prazer.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O
seu movimento é apenas de garça pousando, quando chega e graciosamente alarga a
saia para se sentar na cama. E depois o seu movimento é de gazela quando se ergue,
e já de felina quando se levanta. O seu movimento, todo ele de caça e de
caçadora, adivinha-se e surpreende, como tudo o que é belo para o olhar e tentador
para o espírito. Uma beleza que faz do cérebro a principal zona erógena. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A
chuva cai de um odre rasgado, sem dó nem piedade, sobre os desafortunados
otimistas, ensopando-os imediatamente. Os pessimistas, esses, repentinamente
transfigurados, os guarda-chuvas a transformá-los em cogumelos animados, sempre
têm a ilusão de se protegerem um pouco.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Há uma
certa perversidade no prazer que sentimos com o conforto de um abrigo como o
meu, aqui no carro, enquanto vemos os transeuntes encharcados a correrem na
rua.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">No
carro ao lado, sem, afinal, eu ter dado por ela, e ela sem ter dado por mim, vejo-a
como uma inesperada aparição.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Deve
ter escapado à torrente da chuva. Parece tão serena, tão disponível. Parada,
como se estivesse a dar tempo à transição do ritmo expedito do trabalho que
terminou, para o ritmo lânguido do prazer que antecipa.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sente
o corpo no conforto da roupa. Um prazer sexual. Quando tem assim consciência do
corpo, sente-se nua. A estranha sensação de estar nua por debaixo da roupa. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na
verdade, somos animais nus, mais nus que os outros animais. Nascemos pelados,
sem nada a cobrir a nossa pele, e continuaremos nus até morrer. Só impedimos
que os outros vejam a nossa nudez, cobrindo-a com a roupa.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ela
sente-se nua, numa hiperconsciência de si, na reversão do pecado original, na
inversão da alegoria do paraíso, na transformação do castigo divino do pudor
numa graça de libidinosa impudência.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A
chuva, repentinamente, em rajadas, a querer furar o tejadilho do carro; os
transeuntes encurvados para a frente, a quererem empurrar a chuva; as árvores
furiosas, a quererem enxotar o vento e ela dentro do carro a querer sentir o
corpo todo nu no conforto do invólucro erógeno da roupa.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">De
súbito, um desejo tentador de sair para a chuva, de deixar que a água lhe cole
a roupa à pele, de sentir os fios da água a percorrer todas as reentrâncias
anatómicas numa escorrência orgástica.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vê-se
a si própria exposta ao mundo, nessa hiperconsciência de si.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sente
algo de excessivo no seu corpo, algo de hiperbólico; algo de flor
desabrochando, algo de fruto protuberando a oferecer-se, pronto a ser colhido
por um predador incauto que venha mergulhar na sua liquidez suculenta até ser
consumido.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sente
a força animal de fêmea no cio, o poder divino da transcendência, a perfídia
diabólica da devassidão, numa disrupção inconciliável do seu ser. O Símbolo que
une e o Diábolo que separa, o Mal que corrompe e o Bem que redime, o fogo que
consome e a água que regenera; e tudo isto junto e simultâneo numa erupção que
transborda.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sente
claramente que não deve ir para casa ao encontro do seu marido, do seu homem
que faz de si sua mulher, como um direito adquirido; precisa de evadir-se, de
rebelar-se, de correr perigo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Arranca
violentamente e acelera o carro como se se masturbasse. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Sente
a conjugação do seu corpo com a máquina, o domínio da sua vontade sobre a
máquina; sente a potência do motor, a voracidade do motor; sente o frémito da
velocidade, a vertigem da velocidade, o delírio da velocidade. E a estrada a
ser absorvida numa invaginação de presa devorando o pregador.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">À
frente só céu e mar. A chuva de fim de Verão vencida, por um momento, pelo sol.
E o carro finalmente em roda livre até parar junto à areia, como besta cansada,
como macho em extenuação orgástica. Abriu a porta do carro sem sair para sentir
a maresia que inundava tudo em redor, em vagas de odor seminal da rebentação
convulsa do mar sobre a avidez feminina da praia.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E o
mundo todo, que até agora era um vago esboço em torno de si, ganhou densidade,
e a pouco e pouco, resolveu-se a paisagem e todo o som circundante, enquanto o
corpo serena, como terra escaldante que o Sol esbraseou numa tarde de Verão
tardio, e que começou a despertar com a frescura das primeiras chuvas.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um
homem jamais saberá o que é ser mulher, jamais entenderá a força contida na delicadeza
de um só gesto feminil. Bendita a abissal diferença dos géneros que gera o
mistério mais virtuosa da natureza. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Vejo-a
ali, ao fundo, junto ao mar, como uma amante saciada em leito de luxúria; mas
sinto-a tão intocada e íntegra para o mundo; enquanto eu, a sua antípoda
abominação, congemino desejos secretos, fraquezas carnais, e desço ao estado de
predador impotente perante a sua nobre condição de fêmea superior.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Abre
a porta do carro e sai. Livra-se dos sapatos, mal chega à areia molhada da
praia, e caminha em direção ao mar. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O
vestido leve esvoaça ao ritmo da espuma, que a ressaca das ondas deixa ao sabor
do vento, e oferece a beleza das pernas nuas.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Desejo-a,
não como presa, não como fruto; desejo-a como algo que jamais se poderá possuir
completamente, e que assim, não se esgote nunca esta tentação de sabê-la; mais
que possuí-la ou tê-la.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um
bando disperso de gaivotas a estridular, a água quase a chegar-lhe aos pés, num
toca e foge provocatório, e o vento impudico a levantar-lhe o vestido. E ela
numa imobilidade de esfinge.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Deus,
a Natureza - ou a simples conjugação do desejo que o instinto molda, com a
forma da coisa humana que vem ao encontro do instinto - fazem dum momento assim
o pináculo da beleza imaginada. A única beleza afinal, aquela que o cérebro
humano formula; o único sítio do mundo onde se formulam coisas apenas pelo
prazer de as formular.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Estar
ela ali, entregue toda ela aos elementos, como que protelando o encontro, e
estar eu aqui a vê-la, antecipando o encontro é um jogo de predador e presa, e a
clandestinidade e o improviso fazem que cada jogo seja sempre o primeiro. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A
chuva recomeça, vencendo agora o Sol. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ela
abandona o corpo às primeiras gotas de água, que se confundem com o aerossol da
rebentação, como oferecem os ferreiros, o ferro em brasa saído da forja, á água
fria, para o temperar. Quem tivesse o rosto colado à superfície afogueada do
seu corpo, sentiria a evaporação da água destas primeiras chuvas.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">É a
sede dessa água que atrai toda masculinidade do meu ser. Sem essa líquida
feminilidade nenhum prazer seria possível na aridez do mundo. <o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">De
repente, a urgência de a sentir perto.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Escrevo
uma SMS para lhe mandar: "Estou a caminho", mas não carreguei na
setinha para enviar, fiquei a olhar ora para a SMS ora para ela a dirigir-se
para o carro, mas sem fugir da chuva que ia engrossando.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ela agora
dentro do carro, recostada no banco, com o motor <i>au ralenti, </i>a chuva
forte e o mar revolto, e no peito, imagino, a serenidade que se segue às
grandes aventuras. No meu telemóvel a SMS aguardando o toque de envio, mas o
dedo pasmado e eu de olhos encandeados, como os olhos da cobra à espera que a
ave se mexa para a abocanhar.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Passou
uma eternidade de dois minutos e o telemóvel, já esquecido na mão, cantarolou.
Acordo do encantamento e leio a mensagem.<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">ZULMIRA<o:p></o:p></span></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Hoje
não dá. To na escola pra levar o puto p causa da chuva. Bjs</span><span style="font-family: Calibri, sans-serif;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-80024318509176114142018-01-23T20:42:00.000+00:002018-01-23T20:42:25.577+00:00Lucubrações da minha varanda<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-ZF7azF6sHHc/Wmed0qaHRGI/AAAAAAAACJc/fjwUXJW_pLE_OIUecgEgNxNJOReQTN2pgCLcBGAs/s1600/Aguim%2B-%2BCapelinha%2Bde%2BS.%2BJos%25C3%25A9%2B-%2Bassombra%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bkitsh.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1061" data-original-width="1600" height="212" src="https://3.bp.blogspot.com/-ZF7azF6sHHc/Wmed0qaHRGI/AAAAAAAACJc/fjwUXJW_pLE_OIUecgEgNxNJOReQTN2pgCLcBGAs/s320/Aguim%2B-%2BCapelinha%2Bde%2BS.%2BJos%25C3%25A9%2B-%2Bassombra%25C3%25A7%25C3%25A3o%2Bkitsh.jpg" width="320" /></a></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Muita gente no meu lugar preferia ser
feliz, eu quero apenas sentir. A felicidade deve encontrar-se, no máximo, a
cinco segundos de acontecer.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Três dioptrias separam-me da felicidade de
gozar da beleza da mulher que passa na estrada, 15,5 Khertz de um acufeno
impedem-me a felicidade de gozar o silêncio circundante e falta o teu metro e
67 para eu gozar da tua companhia nesta varanda.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Sou apenas quase feliz, não corro o risco
de um clímax castrador.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Não acredito em muita coisa mas as poucas
coisas que tenho como certas, aprendi-as por acreditar em alguém, porém, soam
todos os alarmes do meu ceticismo quando uma pessoa diz despudoradamente que é
muito feliz. Estando eu em conformidade com o lugar onde estou, estando eu de
acordo com o que me rodeia, sinto esse equilíbrio como a coisa mais
gratificante que se pode ter.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Os ambientes são para mim como um vestuário
que se vai fazendo ao corpo. Há sítios à minha medida e sítios que me não
assentam bem. Este lugar no meio da serra ainda não me assenta bem. Ainda não
sou daqui, sou de Coimbra, mas foram precisos 31 anos e 17 dias para eu ser de
Coimbra e deixar de ser de Aguim. Deixei de ser de Aguim no exato momento em
que vi a nova capela de S. José. Eram cinco e vinte e três da tarde. Nesse
momento fiquei sem referências. Os amantes precisam de referências comuns. Os
familiares também. E os amigos. De que falaríamos, sem referências comuns?
Agora, eu e Aguim ainda temos uma relação afetiva forte, mas não temos assunto
para grandes conversas.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Aquilo a que chamam o "espírito do
lugar" é a modelação do nosso sentimento às coisas que nos rodeiam. Se nos
ausentarmos e voltarmos anos mais tarde nunca encontramos o que deixámos, o
tempo profana a relação de familiaridade com o cenário; a ausência torna-nos
estranhos àquilo que apenas existe na nossa memória. A nossa terra não é aquela
em que vivemos, mas a que vive em nós.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Se ser feliz é estar plenamente satisfeito,
viver plenamente é estar constantemente insatisfeito; qualquer bêbado sabe
isso.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Pouco depois de acabar o beijo, acaba o
prazer; o segundo já não dá o mesmo prazer que o primeiro; e ainda bem, porque
a humanidade há muito se teria extinguido se o prazer do beijo fosse cem por
cento saciante.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Cultivo a insaciedade como um sádico que
leva a tortura a noventa e nove por cento, para poder continuar a fazer sofrer
sem matar a vítima.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">É por isso que o livro repousa espalmado,
com as páginas 76 e 77 sobre a tua cadeira, aguardando, para que se me não
esgote o prazer da leitura, e também porque gosto de estar sem fazer nada,
quase tanto como de ler.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Fazer coisas entretém; mata-se o tempo. Só
a ociosidade não mata o tempo, cada segundo é um segundo de vida. Estou vivendo
intensamente agora mesmo, aqui nesta varanda, ociosamente tiquetaqueando o
tempo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O pecado da preguiça é um pecado virtuoso.
Na verdade, é um pecado que quando praticado com grande frequência chega a
impedir que tenhamos força de vontade suficiente para praticar os restantes.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">É preciso ter a paciência das árvores. É
preciso deixar que os frutos aconteçam ao ritmo das estações do ano. Dividir o
tempo em frações mais pequenas foi o maior disparate da humanidade. Cada vez
dividimos em parcelas mais pequenas a nossa vida. Os nossos relógios marcam
tarefas ao segundo. A precisão é a escravidão do século XXI. Eu quero a
velocidade de uma árvore a gerar um fruto, eu quero a maravilhosa imprecisão da
Natureza.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Ver a Natureza a acontecer é das coisas
mais emocionantes que há.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">De Aguim via a serra do Bussaco, de Coimbra
via o Vale de Canas, daqui vejo um laranjal e uma plantação de abóboras. Uma
mulher cava na plantação de abóboras a 686 metros e oitenta centímetros de mim,
porque o som está atrasado exatamente dois segundos em relação ao golpe da
enxada e estão 20 ° de temperatura. E porque é de desprezar a velocidade da
luz. É pena não saber a humidade do ar, para ser mais preciso.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">A mulher cava a terra fazendo lembrar um
filme com a banda sonora dessincronizada. E o Sol começa a esboçar um poente.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Não existe nem ordem nem estética na
natureza, só no espírito e na obra humana. O “Campo de Trigo sob Nuvens de
Tempestade” de Van Gogh é belo, a paisagem que lhe serviu de modelo, no
entanto, era apenas o resultado aleatório dos acidentes naturais, da interação
ecológica e das condições atmosféricas.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Pensar que uma paisagem é bela dá sentido à
paisagem. O nosso cérebro não está tão preocupado com a ordem das coisas como
com o seu significado, só tende a por as coisas em ordem para as perceber
melhor. Damos ordem às coisas que não têm ordem nenhuma, porque não concebemos
que elas não tenham um propósito, que estejam ali por mero acaso e que sejam
absolutamente inúteis. Não concebemos que não estejam lá por nós.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Para além de ser um exercício de estética,
a arte não serve para nada, é um luxo do intelecto. Exceto, é claro, que uma
vez recriadas por nós, as coisas passam a ter significado; são finalmente o
resultado de um propósito. É essa transfiguração que eu acho bela.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Calcular esse propósito primeiro, para
executar uma obra depois, isto é, criar segundo uma fórmula, é inverter o
processo; é por isso que a arte Kitsch desagrada a algumas pessoas. É como
fazer sexo com um manual de instruções na mão. É fazer batota para conseguir
uma performance medíocre.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">São dezanove e vinte e oito, e passou um
pássaro. Agrada-me que os pássaros não passem a horas certas. Gosto de ser
surpreendido. Ser surpreendido é ser privado das referências; de certo modo,
portanto, agrada-me que tenham substituído a velha capelinha de S. José por um
exemplo particularmente orgulhoso de arquitetura kitsch. A arte kitsch tem essa
virtude; surpreende-nos sempre pelo orgulho da própria mediocridade.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Daqui a pouco o Sol vai transformar o céu,
e um número de pessoas que me é impossível calcular vai maravilhar-se se olhar
para Poente, embora um pôr-do-sol não seja lindo nem feio, é como é porque a
luz azul é mais refratável que a vermelha.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Gosto disso, porque a beleza que existe
neste mundo está cem por cento dentro de nós. Os mais exigentes e
perfeccionistas, portanto, têm menos beleza dentro de si. Segundo este cálculo,
a nova capela de S. José é mais bonita que a anterior porque tem mais gente que
gosta dela e com um conceito de beleza mais abrangente.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Existe um muito maior consenso quanto a
referir a beleza de uma paisagem ou de um corpo de mulher do que de uma obra de
arte, porque chamamos belo ao que nos agrada e dispõe bem, e a beleza de uma
obra de arte pouco tem a ver com a boa disposição com que ficamos depois de a
apreciarmos, ou só por masoquismo assistiríamos a uma peça trágica ou
apreciaríamos o fresco de Goya “Saturno Devorando um Filho”. É isso que explica
o consenso em torno da penalização da pedofilia e simultaneamente a aceitação
de obras como "Lolita" e "Morte em Veneza".<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Uma obra de arte tem uma beleza intrínseca.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O rosto tosco e enrugado da Madre Teresa de
Calcutá, enquanto modelo de um retrato, é esteticamente mais rico e
interessante do que o rosto sensual e viçoso da Marilyn Monroe.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">É arte uma bela execução de algo que pode
ser feio, mas nunca uma feia execução seja do que for. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Mas ter exigências de beleza mais
abrangentes e tolerantes, ou, portanto, ter mais beleza dentro de nós, de modo
a gostar de mais coisas é só promiscuidade estética. Para gostar de uma coisa é
preciso ter educação; quase ninguém gosta da primeira cerveja que experimenta,
é preciso educar o palato. É como gostar de alguém; porque gostar de alguém é
eleger quem tem merecimento. Trata-se portanto de saber fazer seleções.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Escolher entre uma zurrapa e um bom vinho
exige educação; quase nenhum bêbado sabe isso mas um escanção sabe. A arte é
elitista, o gosto popular como a justiça popular, sem educação, são dois
grandes equívocos civilizacionais, e não podem ser desculpados com a
democracia, porque não há democracia sem informação.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">A tarde ficou húmida e se calhar vai
chover. O tempo que o som da enxada demora a chegar até mim deve por isso ter
diminuído. Um número indeterminado de pássaros passou por aqui. Uma incerteza
muito grande domina tudo em redor.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "Calibri","sans-serif"; font-size: 11.0pt;">As coisas precisas e previsíveis podem dar
um falso sentido de segurança; eu prefiro pensar que tudo pode acontecer e que
tenho uma grande margem de manobra. Posso ter um plano de ação, mas assim que
parto para a ação esqueço o plano. Ou não seja eu um velho soldado português
que na guerra tinha sempre à mão uma arma e uma máquina fotográfica, e que
disparava a máquina fotográfica nos momentos de maior perigo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-42687585529285926752018-01-04T14:02:00.000+00:002018-01-05T03:51:10.121+00:00O Sorriso do Santos<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://4.bp.blogspot.com/-UeAcwroX94g/Wk4zMI8XsCI/AAAAAAAAA9Q/TYJhBAPuRyIZo_g0NKZkrWSph1dXNbkTwCLcBGAs/s1600/Mueda%2B-%2BQue%2Bfa%25C3%25A7o%2Beu%2Baqui.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1118" data-original-width="1600" height="223" src="https://4.bp.blogspot.com/-UeAcwroX94g/Wk4zMI8XsCI/AAAAAAAAA9Q/TYJhBAPuRyIZo_g0NKZkrWSph1dXNbkTwCLcBGAs/s320/Mueda%2B-%2BQue%2Bfa%25C3%25A7o%2Beu%2Baqui.jpg" width="320" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Que faço eu aqui?</td></tr>
</tbody></table>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O céu está estranho hoje. À minha frente os
soldados caminham como sonâmbulos. Olho para trás. Sonâmbulos também.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Atrás das duas filas de soldados a longa
coluna de viaturas, todas em péssimo estado. Sonâmbulas.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O ronronar dos motores, o gemido metálico
das carroçarias meias destroçadas, o som áspero das picas a furarem a areia em
busca das minas, o ranger da areia debaixo das botas, o respirar do soldado à
minha frente; e por cima destes sons todos, um silêncio de funeral. A natureza
parece demonstrar uma clara hostilidade contra nós.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Um Fiat passa rasante por cima da coluna.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O soldado à minha frente olha para trás. É
o Santos. Eu encolho os ombros. Ele sorriu. Porque nos rimos nós, no meio da
guerra? Deve ser por estarmos cansados de caminhar vendo as costas uns dos
outros, e termos sido feitos para nos olharmos assim, cara a cara.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">À frente de todos, os soldados do ancinho
que vão esgravatando a picada. O da esquerda parou. Baixou-se para ver o que o
ancinho detetou. Parámos todos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O Santos aproveitou a paragem para urinar,
sem sair do lugar onde estava. O soldado à frente dele rodou a cabeça para
trás, sem correr o risco de mudar a posição do corpo, para se certificar de que
estava fora do alcance do jato de urina.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O soldado do ancinho levantou-se e
continuou a esgravatar o trilho. A fila recomeçou a andar atrás dele, cada
soldado um bocadinho depois do soldado da frente, como se fossemos carruagens
de um comboio a iniciar a viagem.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O céu está estranho, porque é céu de
trovoada. Um trovão ao longe imitando penedos a rolar num sobrado de madeira.
Alguns soldados a olharem para o céu em busca de chuva.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O Fiat regressa rasante de novo, deixando
um pequeno risco no ar atrás da ponta de cada asa. Vi nitidamente o piloto
olhando para nós.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Quando o som do avião desaparece, fica a
ouvir-se melhor a trovoada distante, que parece afastar-se.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Avançamos a passo muito lento, e cada um de
nós tenta por os pés nas pegadas deixadas pelos soldados da frente, o que
obriga a estar a olhar constantemente para o chão. Eu ando a aprender a fazer
isso sem olhar para o chão, o que tem duas vantagens: prestar mais atenção ao
meu flanco e não ficar cego se pisar uma mina.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">De um lado e do outro da picada o capim
altíssimo encobre a floresta. Às vezes o Lemos, que leva a MG42, dispara uma
rajada preventiva para algum lugar suspeito.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O soldado de trás chama-me e faz-me sinal
para parar. Eu passo a palavra, e em breve toda a gente para de novo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Todos olham para trás para tentar perceber
o que se passa.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Estou farto disto.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Sem aviso, a imagem de um corpo nu de
mulher ocupa-me a imaginação por algum tempo. A mulher caminha à minha frente
de saltos altos e completamente nua. Os glúteos balançam-se e os joelhos
afastam-se um pouco quando as pernas avançam, devido aos saltos altos. Tento
focar esta imagem o mais tempo possível, mas a dada altura a imagem na minha
imaginação começa a desvanecer-se, e acaba por desaparecer, e o que vejo agora
são duas filas de soldados de costas para mim, imóveis, como se tivessem parado
o filme da guerra.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O suor junta-se ao pó e começa a desenhar
riscos nas nossas caras e a pintar manchas escuras onde o pano do camuflado
toca no corpo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Os turras devem detetar-nos pelo cheiro, a
quilómetros de distância. Felizmente que a natureza nos dotou de um mecanismo
que desliga o sentido do olfato quando estamos muito tempo sujeitos a um odor.
É conhecido como “fadiga olfativa” e parece que servia para evitar que os
nossos ancestrais não ficassem inibidos de detetar o cheiro dos predadores por
causa do seu próprio odor. Agora serve para não desmaiarmos com o cheiro uns
dos outros.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">A imagem do corpo nu de uma mulher volta a
atravessar-me por momentos o pensamento. Mas por pouco tempo; parece que a
realidade torpe é mais importante agora, para o meu cérebro, do que a graciosa
fantasia.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Não há sinais de podermos recomeçar a
progressão e a imobilidade aumenta a temperatura do corpo. O sol marra. O ar
sufoca. Os mosquitos divertem-se em torno dos meus olhos. A tensão faz apitar
os ouvidos. A G3 aumentou de peso. A própria farda parece de chumbo. É óbvio
que um ser humano normal não foi feito para isto.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Olho para trás e giro o indicador junto à
cabeça e abro a mão em sinal de pedido de esclarecimento. Em resposta o capitão
estica o mínimo e o polegar e encosta a mão ao rosto imitando um telefone e
depois bate com o dedo no relógio. Entendo que aguardamos instruções para
prosseguir.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">A coluna auto que vem de Omar ao nosso
encontro deve estar com problemas.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O Fiat volta a aparecer, rasante de novo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Os soldados torcem o corpo para olhar para
trás, sem mover os pés, assim que o ouvem ao longe, e destorcem-no para o
seguir com o olhar até ele desaparecer onde a picada se afunila em vértice na
linha do horizonte, á nossa frente.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Não entendo o que se passa. Começo a ficar
em stress. Na guerra não gostamos de surpresas nem de grandes mistérios.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Agora houve-se a tosse convulsa
caraterística do Alouette III. São dois. À medida que se aproximam, a tosse
vê-se que é acompanhada da pieira habitual. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Houve merda! Diz o Santos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Desta vez não sorriu.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Não aguento este silêncio e esta incerteza.
Estou a meio da fila de soldados, e ir até à Berliet do capitão para saber o
que se passa, constitui um perigo muito grande para mim e para os soldados por
quem passar.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Está quase a escurecer. Dentro de pouco
tempo não poderemos prosseguir com a coluna porque se fará tarde demais para ir
e voltar para um lugar seguro, dado que o local de encontro seria o pior
possível para pernoitar.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Baixo-me e esgravato a areia em torno de
mim com cuidado para me certificar que será seguro sentar-me. Marco no chão o
local perscrutado por mim, para saber onde posso colocar as mãos e os pés. O
Santos imita-me.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Pelo canto do olho, vejo, de cima da
Berliet, o capitão a fazer um enquadramento sobre mim com a zoom da sua máquina
fotográfica, e eu aperfeiçoou disfarçadamente a minha pose. Mais tarde quando
me der a foto vou escrever a legenda:<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Que faço eu aqui?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O céu estranho foi-se tornando normal à
medida que a trovoada distante se desvaneceu. O calor baixou um pouco.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O capitão faz-me sinal para regressar às
Berliets e eu passo a palavra para a frente e para trás.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Regressamos agora, pisando as nossas
próprias pegadas. Certifico-me que o Lemos e o soldado do ancinho trocam de
posição e que ele e o outro apontador de MG42 são agora os últimos, caminhando
de marcha atrás com estremo cuidado, de metralhadora apontada para o longo
funil da picada.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Lá ao longe, onde a picada parece terminar
no lombo de uma colina, o céu prepara as coisas para se fazer noite. Do lado de
lá houve merda.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Apesar da humidade perto da saturação,
tenho a boca seca. Daqui a pouco o abaixamento da temperatura provocará a
condensação da humidade do ar em pequenas gotículas, a que chamamos cacimbo, e
o efeito de estufa atingirá o limite. Depois, a temperatura vai descendo até
tornar as nossas fardas em farrapos encharcados de água fria sobre o corpo, e
pela madrugada a baixa temperatura far-nos-á bater o dente. Adormecemos no
verão e acordaremos no inverno.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">O Fiat faz longos volteios, como uma ave de
rapina sobre uma presa ferida, e depois abala em direção a Mueda. Pouco depois
regressam os Alouett III.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Foi um ataque de abelhas. Diz-me o capitão
quando subo para a Berliet. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Sei bem o que um simples enxame de abelhas
africanas pode fazer a uma companhia inteira, e diz-se que os turras nos atiram sacos com colmeias sobre as colunas para nos atacarem enquanto
estamos no meio da confusão.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Será que nada nesta terra nos tolera?<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Mas a nós, hoje, ninguém nos fez mal. Hoje,
não fizemos mal a ninguém.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Fico a admirar o por do sol em busca de um
sinal de reconciliação da Natureza.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Uma paleta de vermelhos, rosas e violetas
dão cor a um céu pintado por mão infantil e a floresta luxuriante e o capim
alto são um plágio ao traço naïf de Henri Rousseau. Preparo-me para descansar,
experimentando um pouco de alívio finalmente. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Penso que daqui alguns anos, estes momentos
de serenidade serão o que de melhor teremos para recordar, e não os intensos
momentos de ação onde a adrenalina não deixa lugar para o pensamento.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Ponho-me a pensar que haverá algum escritor
futuro, que não tendo saído da segurança dos quarteis ou do aconchego dos
hospitais; nem tendo disparado uma arma sobre ninguém, nem sentido que a sua
cabeça era a muche do alvo de uma kalash, falará de horrores que de facto não
sofreu nem fez sofrer, só para dar autenticidade aos seus escritos, e sinto
antecipadamente um desrespeito enorme por ele. Não conheço maior indignidade do
que plagiar o sofrimento alheio para ter uma boa história para contar. <o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">Preparo-me para dormir.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;">No meio daqueles soldados todos, o olhar do
Santos cruza-se com o meu. Eu ajeito a mochila para me servir de almofada, ele
ajeita o poncho de borracha como se fosse uma manta. É preciso tão pouco para
dar conforto a um soldado.<o:p></o:p></span></div>
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt; line-height: 115%;">Eu encolho os ombros, o
Santos sorriu.</span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-4299864185896578452017-12-10T15:52:00.002+00:002017-12-10T19:40:00.124+00:00O Formidável Lica<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;"><i>(In: Aguim Em Mim - Western Ginato)</i></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: "calibri" , "sans-serif"; font-size: 11.0pt;"><br /></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">O sino da torre da capela da Nossa Senhora
do Ó de Aguim bateu três vezes, e o som das horas cobriu em três ondas
sucessivas o casario prolixo, até se desvanecer em silêncio nos pinhais e
olivais derredor. Bateu três vezes e calou-se. Dentro em breve repetirá as três
badaladas, entretanto, tanta coisa se passará, mas o sino ignorará tudo, porque
para ele serão ainda três horas da madrugada.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-size: 11.0pt;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um vulto na noite. Um vulto mal distinto na
noite lúgubre que deixava a palidez da lua iluminar a rua da Portela, ou
escurecer, porque ainda não nasceu quem saiba ao certo quando é pouca a luz ou
muita a escuridão, ou vice-versa.</span><span style="font-family: calibri, sans-serif;"><o:p></o:p></span></span><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://2.bp.blogspot.com/-64qb5a3utd0/Wi1b64ycVcI/AAAAAAAAA84/8_aZ8hnlB3cpsA01XOL2ohqIKEZ7Che1ACLcBGAs/s1600/Aguim%2B-%2BCapela%2Bzoom%2Bdo%2BSobreirinho%252Blua%2Bcopy.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1172" data-original-width="1351" height="277" src="https://2.bp.blogspot.com/-64qb5a3utd0/Wi1b64ycVcI/AAAAAAAAA84/8_aZ8hnlB3cpsA01XOL2ohqIKEZ7Che1ACLcBGAs/s320/Aguim%2B-%2BCapela%2Bzoom%2Bdo%2BSobreirinho%252Blua%2Bcopy.jpg" width="320" /></a></div>
</div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">O vulto é de um homem que espera alguma
coisa ou alguém, com ar ameaçador, ou assustado; que a coragem e o medo distinguem-se
tão bem uma do outro como vimos que acontece com a luz e a escuridão.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">A pequenos espaços de tempo, vão aparecendo
outros vultos, estes sobressaindo da escuridão como fantasmas, devido ao manto
branco com que se cobrem, que esvoaçaria ao vento, se houvesse vento, mas
naquela noite iluminada, ou escurecida, pela palidez da lua não bulia a menor
aragem para que desse modo a cena de um crime que estava prestes a acontecer
tivesse a maior carga dramática possível.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Um a um, os embuçados vão saindo dos becos
e ruelas adjacentes, empunhando varapaus e cercando o vulto no meio da rua da
Portela. Só depois aparece uma figura formidável, de rosto descoberto, apenas
envergando um barino e com uma enorme moca na mão, de onde nascia um verdadeiro
espinheiro de pregos. Era o temível e tão admirado como odiado Lica.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Esta é a história fantástica e lendária do
rei dos embuçados de Aguim. Passou de ancião para jovem e depois esperou que o
jovem se tornasse ancião e passou para outro jovem, de geração em geração até
chegar a minha vez de a contar aos jovens de hoje.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">E embora não bulisse a menor aragem, quem
conta esta história jura que a aba do seu varino ondulava ao vento.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">De tudo quanto se sabe sobre ele, poucos
são os que acreditam em metade do que se conta, como sempre acontece com as
figuras que superam os seus pares. A imaginação dos espíritos mais criativos
fantasia o que não se sabe de fonte segura e a inveja dos medíocres e dos
covardes tenta diminuir a importância dos feitos que temem ser verdadeiros porque
os menorizam a eles.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Diz-se que, quando uma junta de bois não
conseguiu tirar de um atoleiro o carro que puxava, o Lica desatascou o carro;
empurrando o carro, a carrada e os bois. Diz-se que um dia fez uma aposta com
um lavrador abastado, prometendo que levaria às costas para sua casa uma pipa
cheia de vinho se o lavrador lha oferecesse, e o lavrador incrédulo aceitou o
desafio e perdeu assim uma pipa do seu melhor vinho.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Dizem-se do Lica mil e uma coisas em que
não acreditamos, porque a maior parte de nós são pessoas medíocres que usam a
incredulidade para esconder a sua mediocridade, a sua cobardia, a sua falta de
aceitação das coisas, pessoas e fenómenos que transcendem a insignificância das
suas vidas desinteressantes.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Era essa figura temível e fantástica que
saiu da rua do Chães de S. Miguel e caminhou a passadas calmas mas seguras até
ao meio da rua da Portela e que depois se virou para olhar de frente o vulto
que há pouco poderia parecer assustador mas que repentinamente se tornou na
silhueta insignificante de um homenzinho assustado.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">O Lica era um homem olhando outro homem,
mas o Lica era maior do que o homem que era, porque, na verdade todos os homens
têm um valor diferente daquilo que são e que aparentam, todos os homens ganham
valor, ou perdem, pela história que vão construindo de si e que os acompanha
pela vida fora, e até para além da vida, como se vê por este relato.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">De um lado, um vulto de homem mediano, que
a palidez da lua não deixava reconhecer, que tremia de medo, rodeado por quatro
embuçados que lhe impediriam a fuga. Do outro lado o colosso de moca ornada de
pregos, de cujo rosto se via apenas o branco dos olhos, mas que qualquer
habitante de Aguim reconheceria como sendo o lendário Lica.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">A coragem do homem acossado, afinal, seria
digna da maior admiração, não fora o peso no bolso que lhe fazia descair um
pouco o casaco para a direita, o peso do revólver de cão recuado que sobre a
coxa lhe dava a garantia de aqui, hoje, nesta noite lúgubre, lhe saldar a
dívida pela humilhação de que fora vítima ao ter-lhe sido furtada a pureza da
mulher prometida, decerto à força, por aquele brutamontes que agora enfrentava.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Os quatro embuçados que o rodeavam,
imobilizados pela consternação de um massacre já inevitável, encostavam-se às
paredes das casas que ladeavam a cena, com remorsos antecipados por
participarem no confronto desigual entre aquele algoz e tão débil criatura.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">O Lica deu o primeiro passo devagar, deu o
segundo passo mais rapidamente e prestes a lançar-se sobre a sua presa, ergueu
a moca cheia de pregos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">O sino da torre da capela da Nossa Senhora
do Ó de Aguim, que dá as horas sempre em duplicado, bateu de novo três vezes,
fazendo vibrar o seu bronze vigoroso e lançando por três vezes de novo as ondas
sonoras sobre o casario prolixo da velha vila, até que o som e o eco do som se
venha a perder, agora definitivamente nos pinhais e olivais derredor.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Que não se estranhe que tanta coisa se
tenha passado entre as duas vezes que o sino deu as três horas, como se
quisesse apagar tudo o que se passou entrementes, tal qual acontece tanta vez
com a indiferença dos homens a respeito das coisas que não entendem ou não são
capazes de valorizar. Não se estranhe, porque, contrariamente, a nossa memória
das coisas tende a dilatar os acontecimentos dramáticos que vivemos, e a
memória de muitas pessoas, como as que transmitiram estes acontecimentos no
decurso de mais de um século, tende a dilatá-los proporcionalmente.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Na verdade, tudo o que aconteceu, aconteceu
entre as duas vezes que o sino deu as horas, e é de estranhar que tanta coisa
se saiba.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Aquele vulto, depois de consumar a sua
vingança, há de fugir para o Brasil, mas antes esconder-se-á das autoridades
num tonel vazio de postigo trancado, aonde a sua irmã fará chegar pelo batoque
a comida e a bebida para ele sobreviver durante um mês. O que ele fez ao que o
corpo não aproveitou e sempre tem de expelir, não sabemos; são pormenores que
agora também não deixaremos que venham estragar a nossa história.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">O sino deu a terceira badalada, o Lica já
se lança sobre a vítima desgraçada, a última onda sonora ainda não se perdeu
pelos pinhais e olivais derredor e já outro som desassossega o ar desta noite
lúgubre, em ondas mais rápidas, por se tratar do inconfundível estampido de um
tiro que atravessou o coração de touro do embuçado mais temível de sempre. Mas
isso não o fez parar. O Lica morreu correndo atrás do seu miserável matador por
mais de dez ou vinte metros, conforme a credulidade de cada narrador.<o:p></o:p></span></div>
<div style="margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt;">Esta história acabou, já há muito que não
vive ninguém que tenha conhecido os seus personagens, já são muito poucos os
que ouviram falar dela. De ancião para jovem, de geração em geração esta
história chegou até aqui, e entretanto, este povo, a quem alguém atribuiu
brandos costumes, viu assassinar um rei, o seu sucessor, um presidente, um
primeiro-ministro e o seu ministro da defesa, além disso, manteve uma guerra em
três frentes do outro lado do mundo durante mais de uma década e por fim, não
contente com estas reviravoltas que deu à História, fez uma revolução para começar
tudo de novo. Agora luta arduamente para sair de uma crise económica e
civilizacional em que nos colocaram os medíocres e covardes. Porém, este povo
pode não descender de homens como o Lica, mas descende seguramente de homens
capazes de dar reviravoltas à História.<o:p></o:p></span></div>
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: 11.0pt; line-height: 115%;">Cuidado ó medíocres e
covardes!</span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-77343730263485786382016-07-18T00:23:00.000+01:002016-09-04T16:03:53.175+01:00O último olhar do Dentinho<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Pouco mais do que o seu olhar regressou com ele de África.
Nem um gesto completo. O olhar, o movimento do rosto, um único dedo que
obedecia à sua vontade e dentro do pesado escafandro do corpo que o
aprisionava, um teimoso sopro de vida que aguentou 45 anos, e que ontem,
cansado de lutar, se apeou dessa viagem.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quanto de um homem se pode tirar para que, ainda assim, o
sofrimento continue a ser possível? E quanto precisamos para valer a pena
viver? O Dentinho vivia nessa fronteira entre o sofrimento inútil e a vida possível,
mas acredito que se lhe tivessem feito essas perguntas, antes do seu ténue
sopro de vida se ter esgotado, ele não teria uma resposta categórica para dar.
Responderia com o seu último olhar, antes de partir; entre a revolta e a
resignação, entre a coragem e a desilusão, entre uma ténue mas persistente
vontade de continuar e a avassaladora impotência – esse seu olhar vindo desse
centro geométrico onde se gera a dúvida, que é a habitual reação dos sábios às
perguntas retóricas dos tolos. Esse olhar sobrevivente, que trouxe de África,
com que dizia o que as palavras não dizem. E quando regressávamos a casa depois
de o visitarmos, parecia que nos tinha dado uma lição sobre algo tão difícil de
entender que nem sabíamos bem o que era, mas que nos tinha modificado para
melhor, ou fosse lá o que fosse, que sentíamos no peito, como, às vezes, em
dias de chuva, quando um pouco de sol rompe as nuvens e nos faz sentir um ténue
afago de luz. Era o olhar do Dentinho. Um olhar de gratidão, de camaradagem,
tão genuíno que o afago de luz que sentíamos era a nossa gratidão por nos
sentirmos importantes na sua vida. Ontem esse olhar foi-lhe tirado também.</span><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://3.bp.blogspot.com/-bkVrudl2WYw/V8w3dP-cHnI/AAAAAAAAA7k/YJKio6nz__ASZphIXdyYu4gH3K_0f5bAwCLcB/s1600/Visita%2Bao%2BJos%25C3%25A9%2BDentinho%2B2010%2B%25282%2529.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="240" src="https://3.bp.blogspot.com/-bkVrudl2WYw/V8w3dP-cHnI/AAAAAAAAA7k/YJKio6nz__ASZphIXdyYu4gH3K_0f5bAwCLcB/s320/Visita%2Bao%2BJos%25C3%25A9%2BDentinho%2B2010%2B%25282%2529.JPG" width="320" /></a></div>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-justify: inter-ideograph;">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">45 anos.
O corpo inerte, inútil, insensível sobre a cama, a não ser por uma dor permanente
que o atormentava. Um cérebro que guardava a cartografia íntegra do corpo que
já morrera há muito e que lho ressuscitava em forma de dor. Esse maravilhoso
cérebro humano que nos recria o mundo numa representação virtual cheia de
beleza, dando-nos a ilusão de que é o mundo real que conhecemos. O cérebro
teimoso a sobreviver ao próprio corpo e a dizer-lhe perversamente que o corpo
ainda estava lá, não para as coisas boas que um corpo nos pode dar mas apenas
para a dor. A dor fantasma dos amputados, em que o cérebro nem precisa do corpo
para gerar dor, a fazer crer que a dor é a derradeira consciência que temos de
nós.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Choraram na sua partida, mais porque as partidas fazem
sempre chorar, do que por esse desfecho ter constituído uma enorme tragédia para
alguém. De que nos apetecia chorar a todos? Do pesadelo que foi a sua vida ou
da morte que o libertou? Uma jovem ao meu lado perguntava não sei a quem,
talvez a Deus, o que teria feito ele para merecer a vida que viveu, depois deu
um suspiro, que deve ter sido a melhor resposta que conseguiu encontrar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Perguntar ao Deus omnipotente uma coisa destas é quase uma
acusação. Se um cidadão pudesse e não tivesse salvo o Dentinho, poderia ter
sido acusado de omissão de auxílio à vítima. Se um pai negligenciasse os seus
deveres que estivessem assim ao seu alcance para acudir a um filho em
sofrimento atroz, seria decerto acusado de violência doméstica e a Segurança
Social retirar-lhe-ia o poder paternal.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É impossível resistir a esta filosofia barata quando nos
sentimos impotentes perante estes mistérios existenciais sem solução, mas
inventar um deus psicopata para os explicar é ainda o mais estúpido que podemos
fazer.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O seu funeral atrapalhava o trânsito na rua estreita do
Casal Novo de Meãs do Campo, o último incómodo que o Dentinho provocou a este
mundo, ele que, condenado à vida confinada a um corpo morto, teve o amor de uma
mulher prometido para o resto da sua vida vazia, e recusou. Pode oferecer-se
amor recusando-o, ensinou-nos assim o Dentinho, ao libertar a sua namorada da
prisão de que ninguém o libertou a ele. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Hoje, descansou finalmente o Dentinho, se o sono que dele se
apossou não for, ele também, um sono povoado de pesadelos. Se a dor persiste
num corpo insensível, se persiste mesmo para além do corpo, será que sobrevive
algum tempo à própria morte?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que um Deus piedoso exista, ao menos só por hoje, para ti,
camarada; e que seja um deus à altura da tua lição de amor, e que te liberte
definitivamente da vida de dor em que te manteve preso, ou então que se cumpra
a Natureza e que regresses ao lugar de onde vieste, a esse lugar nenhum de onde
viemos todos, e para onde inevitavelmente regressaremos todos um dia, e que a
vida não passe de um dramático pestanejar do infinito onde, por um maravilhoso
acaso se gerou a consciência humana, esta consciência que nos faz delirar de
prazer e horrorizar de dor.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nós, os teus pares, cobrimos a cabeceira do teu caixão com a
bandeira do teu país, para termos uma última ilusão da sua gratidão por ti.
Quando um soldado morre não deviam chorar apenas os que dele terão saudades; alguém
devia, em nome do seu país, prestar-lhe homenagem pela dádiva de sangue que lhe
exigiram. Se se medisse a importância de um soldado pelo seu sofrimento, terias
honras de general, porque não conhecemos ninguém a quem a dor tivesse condecorado
com tão grande distinção.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas, não fosse a bandeira verde-rubra que te levámos e
ninguém se lembraria que um dia acreditaste que valia a pena lutar por este
país.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Lembrámo-lo nós que combatemos contigo. Na guerra, e depois
da guerra pela dignidade possível; e levámos-te também a nossa bandeira, que
criámos para esse combate do pós-guerra, para cobrir-te modestamente os pés e,
claro, a faixa rubra do teu clube, que ao menos na despedida é preciso
respeitar as paixões mais irracionais de um homem.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">À noite, reparei na lua enorme e fui olhá-la do terraço.
Ali, sobre o Tovim, onde as ondas eletromagnéticas do Sol, a que chamamos luz,
traduzidas pelo meu cérebro, me faziam ver, não o enorme calhau redondo que
regula as marés e o ciclo menstrual das fêmeas dos mamíferos, mas sim a face
iluminada da deusa da noite aprisionada pelo abraço gravitacional da Terra, que
inspira os poetas e maravilha os tolos como eu. </span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É difícil conceber tudo isto sem um motivo transcendente, é
difícil aceitar este mundo – que hoje o nosso irmão de armas abandonou, vítima
de uma guerra já distante, por nada nem ninguém lhe merecer o seu sofrimento – é
difícil aceitar este mundo sem propósito nem poesia nenhuma, não fora o
maravilhoso cérebro humano que no-lo recria pleno de beleza para que a vida não
seja apenas um erro inútil do cosmos.</span><br />
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span>
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><i style="font-size: small;">Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/music/2016-07%20_O_ultimo_olhar_do_Dentinho.mp3">aqui</a>.</i></span></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-53586459419287109252016-06-23T18:09:00.000+01:002016-06-23T18:09:11.646+01:00Enquanto o comboio não parte<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na
Estação Velha de Coimbra, a esta hora, há sempre meia dúzia de pessoas a
dormirem nos bancos. Passageiros com a viagem interrompida por algum motivo.
Como se a noite os tivesse encontrado a meio da sua rota por mero acaso e eles
sentissem que o relógio do corpo começara a ficar sem corda e que os membros,
como ponteiros flácidos, começassem a perder toda a tenacidade, e a consciência
se volatilizasse num prazer fluído pelo corpo todo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O
prazer de ir na corrente, de deixar que a gravidade nos puxe para o fundo até
sermos apenas uma sombra de nós mesmos, apenas uma sombra difusa. Lá em cima,
acima da linha de água, alguém às vezes chamando por nós, e a tentação de ir ao
fundo, a vertigem da queda no abismo, a preguiça de lutar pela consciência… ou
o medo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Acordar
para quê? A voz a chamar por nós, e uma parte de nós a querer responder e a
outra a querer deixar-se ir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A
realidade pode ser intolerável. Nunca sabemos, ao acordar, onde estamos a acordar.
Será que ao nosso lado vamos encontrar o rosto que chama por nós de sorriso
cúmplice, por entender muito bem o motivo da nossa preguiça matinal, ou será
que ao ouvirmos a voz que chama por nós, não vamos sentir coragem nenhuma de
abrir os olhos porque o pesadelo que tivemos pode ser a realidade que nos
espera? – Acorda! Acorda! Dão-me palmadas no rosto. Soldados a gritar à minha
volta e o pó ainda quente da explosão da mina a descer devagar sobre mim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ou
será que vamos acordar numa cama imunda de hospital? O cheiro nauseante da
creolina e do éter, e a ilusão de que afinal o corpo está todo ali, porque todo
ele dói. A dor em cada dedo do pé que vi desaparecer na picada ressuscitado
inexplicavelmente. A reconfortante, a maravilhosa, a miraculosa dor!
Excruciante, como se uma turquês estivesse a esmagar cada osso, cada tendão,
cada nervo, mas ao mesmo tempo tão redentora, a devolver-me o pé perdido na explosão da
mina. Será? Ou
mais um pouquinho de lucidez e ao fundo, na cama, apenas um alto sob o lençol?
E o cabo enfermeiro a explicar: "São dores fantasmas, furriel, <i>pecebe</i>?" Enquanto na cama ao meu
lado o Lemos delira sob o efeito da morfina: "Sou um pirata da perna de
pau, olho de vidro e cara de mau".<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Perante
o meu olhar atónito o enfermeiro tenta uma comparação: “Se cortarmos esse fio e
mudarmos o interruptor para o corredor, lá dentro a luz acende à mesma na cama
6, <i>pecebe</i>?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Acordar
apenas para a dor. A dor inútil. A dor sem corpo. A dor fora do corpo. A dor no
local onde deveria estar a coisa que dói, mas que não está lá. Só lá está a
dor. Uma dor em cada dedo, onde não há dedo nenhum. A dor ali, no ar, a dois
palmos do coto. A dor por cima do lençol sem nenhum relevo sobre a cama, a dor mesmo
no local onde se lê "Hospital Militar". <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O
comboio está aqui parado há imenso tempo, e pelos altifalantes somos avisados de
que se encontra uma composição avariada a obstruir a linha. Imagino-me a
caminhar na gare. Recordo as inúmeras vezes que caminhei na gare de uma estação
aguardando por um comboio que tardava, sem pressa de partir, sem urgência para
chegar a lado algum, apenas esperando que o comboio viesse, parasse e me levasse,
e, enquanto isso, caminhando maquinalmente para um lado e para o outro só para
não estar parado, sem dar conta que era feliz por não me preocupar com o tempo
que perdia, porque, afinal, a solidão não é tempo perdido, dado que é tempo que
passamos a sós com a pessoa que conhecemos melhor. Às vezes puxava de mais um
cigarro para fazer um parágrafo nos meus pensamentos. Para abrir um parêntesis,
para mudar de página.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um
vulto composto por uma enorme mochila com uma pessoa por baixo passa à frente
da janela caminhando na gare. Como estou de costas para a frente do comboio
tenho que me virar para trás para seguir o vulto e vê-lo a transformar-se numa jovem
de cabelos cor de palha, à medida que se vai desfazendo de tudo quanto trazia
às costas e pendurado à cinta. Senta-se no chão, na posição de Buda, e desdobra
um mapa que fica a estudar calmamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Poucas
pessoas entenderão como pode parecer absurda a paz no rosto de uma jovem
sentada no chão, debruçada sobre um mapa. Temo pela sua segurança, assim despreocupada
sem arma nem proteção, enquanto uma saudade incompreensível se apodera de mim
como se aquele ato me tivesse sido subtraído, como se fosse um papel que me coubesse
desempenhar a mim e que dele tivesse sido excluído. Acho que poucas pessoas
entenderão que podemos sentir falta de desdobrar um mapa sobre a G3 a servir de
mesa, pousada nas pernas cruzadas, e puxar da bússola azimutal, com o único
propósito de descobrirmos onde estamos, enquanto árvores centenárias construíam
a nave verdejante de uma catedral viva por cima de nós.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Quase
me levanto para caminhar ao longo da carruagem, só para não estar parado e
fazer um parágrafo nos meus pensamentos sem a ajuda do cigarro, enquanto o
comboio não parte, mas o pé que me dói não está lá para me apoiar, só a dor a
desenhar a sua forma precisa; agora apenas um formigueiro como se apenas
tivesse estado dormente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">De
vez em quando olho pela janela e, de cada vez que olho, vejo a jovem cada vez
mais recostada na mochila, prestes a adormecer. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Na
Estação Velha a esta hora há sempre meia dúzia de pessoas a dormirem nos
bancos. Pessoas, quero crer, que apenas adormeceram de cansaço e que vão acordar
serenamente para continuarem as suas vidas. Um intervalo apenas para
continuarem viagem. Pessoas que despertarão do sono sem medo de que a voz que
as chama, acima da linha de água da inconsciência, as faça acordar para um
pesadelo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Pessoas
para quem essa voz apenas despertará nelas, dos abismos do subconsciente, desejo
vivamente, a doce memória da voz maternal a sobrepor-se aos ruídos do mundo
ainda desconhecido, quando dormiam o sono intra-uterino e primordial.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Muitas
horas depois de ter parado aqui, o comboio dá um grande estremeção, um enorme
despertar metálico que faz estalar toda a composição, depois começa lentamente
a mover-se, e reparo que o dia já nasceu e sinto que me vou afastando para
sempre do que me ligava às histórias das pessoas que ficaram na gare da Estação
de Coimbra. Cada vez que um comboio parte, ficam muitas histórias por contar.
Fica também algo da nossa vida para trás. Uma parte de mim também não embarcou,
ficou sentada na gare da Estação de Coimbra a consultar um mapa, uma última
evocação de um tempo passado, dela já nada se liga a mim, agora que desapareceu.
Outra parte de mim ficou nesse tempo, em África, dela trago apenas a sua forma
nítida desenhada a dor. Nunca levamos tudo quando partimos de viagem.<o:p></o:p></span></div>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O comboio
ganha velocidade e eu vou-me afastando irreversivelmente da vida que vivi, e
aproximo-me de quê, eu que viajo de costas para o destino?</span></span><br />
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-25045614877483958442016-06-23T17:56:00.000+01:002016-06-23T18:10:51.473+01:00Ponto de não retorno<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i>(In Cacimbados)</i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">O
Primeiro Maia é um gajo normal. Tirando o facto de já ter morto mais gente
nesta guerra do que eu alguma vez consiga imaginar. Está sentado à minha frente
no bar do aeródromo de Mueda. Ele vai falando e eu vou-me convencendo que o que
nos separa é muito mais que esta mesa tosca de madeira. Hei de</span><span style="font-size: 10.6667px;"> </span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">ouvir falar muito dele ainda,
e dirão sempre: “Um gajo normal”.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">Fala-me
com o tom autoindulgente</span><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt;"> </span></span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"> e paternalista, típico de
quem está mais inclinado a justificar os seus pecados do que a confessá-los.
Mas nunca há palavras suficientes para nos redimirem dos nossos pecados, nunca
há palavras que nos ajudem a mentir a nós próprios.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">–
Todos temos os nossos limites, Bastos. Limites, percebes?<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Perante
os meus olhos tontos do whisky ele insiste:<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">– Não
sabes qual o teu limite para a bebida, por exemplo? É como quando discutimos
com alguém. A partir de um certo ponto começamos a perder as estribeiras. E
depois como é? Acaba tudo à porrada. É, ou não é?<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">Olhava
de vez em quando pela janela que dava para a pista onde os helicópteros
alinhados pareciam cansados, com as longas hélices paradas que se arqueavam com
o próprio peso, e mais ao longe os <a href="https://www.blogger.com/null">T6</a></span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"> a fazerem lembrar moscardos
enormes. Ele olhava pela janela à procura de alguma ideia que mudasse o ar
mortiço do meu olhar e desse mostras de entendê-lo.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">– Tu,
por exemplo, não quiseste ultrapassar o teu limite. Eu sei que não entregaste a
carta ao Segundo Fanhais.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Preferiste
mentir ao teu pai e vieste bater aqui com os cornos.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Era
só uma carta para um pide. O teu pai ultrapassou o limite dele por ti. Sabes o
que teve que engolir? Sabes as humilhações que passou? Os problemas de
consciência? E tu? Não foste capaz, não é? É assim com tudo na vida.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quantos
gajos mataste aqui? Em quantos vais? Agora era eu a olhar pela janela
envergonhado por ainda não ter matado ninguém. – Estou aqui só há uma semana
meu Primeiro.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E ele
a olhar de novo pela janela como se falasse para o seu helicóptero pousado na
pista.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">–
Sabes o que importa numa guerra? Não é os turras que matamos. As guerras são
para os soldados se matarem uns aos outros. O que importa é os que não são
soldados. O que importa é os que morrem sem saberem porquê. Sabes qual é o teu
número? O teu limite? Descobre quanto antes e não ultrapasses esse limite. É
como quando bebes aquele golo de whisky a mais, ultrapassas o teu limite e já
não vais ser capaz de parar e já nem vale a pena parar, porque já não vais a
tempo de evitar a bebedeira. Sabes nadar, Bastos? Até onde podes ir pelo mar
dentro? Olhas para trás e vês a areia da praia ao longe. Será que as tuas
forças ainda darão para mais umas braçadas e para voltares até terra firme?<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">– Ó
Primeiro Maia, sempre é verdade o que dizem? Que você faz isso com o
helicóptero? Que chega à pista e calcula o combustível que traz, para ir mais
longe da próxima vez</span><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt;"> </span></span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">?<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">–
Sabes? Diz ele sem responder à minha pergunta. – Lá de cima não dá para ver
quem lerpa, se são turras ou não</span><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt;"> </span></span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">. Lerpa tudo</span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">Levanta-se
de um salto. – Ó nosso Cabo, ponha a despesa aqui do nosso Furriel na minha
conta. Não passes o teu limite, meu filho</span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">!<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Dizem
que o Primeiro Maia é um gajo normal. Saiu do bar sem olhar para trás, talvez
irritado com a minha pergunta, talvez porque já tenha ultrapassado há muito o
seu limite, a partir do qual já não há retorno possível e a partir do qual
deixamos de ser gajos normais. Será mesmo que faz isso com o helicóptero, como
dizem?<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ao
fundo do bar um grupo em torno de uma mesa tenta acertar com a música de uma
canção do Zeca Afonso e repetem sem cessar os mesmos versos que parecem cada
vez mais desafinados: “Entrei numa gruta Matei um tritão Mas tive o diabo na
mão Mas tive o diabo na mão”.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E
depois, já na pista, o Primeiro Maia a dirigir-se para o seu heli-canhão. A passar
a mão sobre a fuselagem como os cavaleiros fazem no lombo dos cavalos antes de
montarem.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">A entrar
no habitáculo e depois a assomar de novo</span><span class="MsoCommentReference"><span style="font-size: 8.0pt;"> </span></span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">à janela, olhando em redor.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">O que
mais ouvi dizer sobre o Primeiro Maia, a par da</span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"> história de ele andar a ver
até onde dava o combustível do helicóptero, era que se tratava de um gajo
normal. Alguém como nós. Como se isso tornasse a história agourenta.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ele
entrou no habitáculo e depois voltou a assomar à janela. Tenho a certeza que
fez isso porque agora parece-me um gesto de despedida. O Primeiro Maia. Um gajo
como nós. A não ser por ter ultrapassado o seu limite há muito e passar a vida
a tentar justificar o quanto passou a gostar do seu papel de predador, como se
a morte fosse um vício. E ao fundo da sala a música desafinada: “Mas tive o
diabo na mão Mas tive o diabo na mão”.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">“Lá
de cima não dá para ver quem lerpa, se são turras ou não. Lerpa tudo.” Um gajo
como nós. Um gajo normal. Só que ficou viciado na morte. “Não passes o teu limite,
meu filho!” E ele a assomar à janela e a olhar em redor, como que a
despedir-se.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">É
difícil conceber o Primeiro Maia como mais uma vítima desta guerra. Ele, que
embora não carregue no gatilho e seja apenas o piloto do helicóptero que leva a
morte tanto a turras como a inocentes, vive indeciso entre o orgulho e o
sentimento de culpa; e para desvalorizar este conflito, desvaloriza a própria
vida, fingindo que anda a ver até onde pode ir sem reabastecer o depósito</span><span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;">.<o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando
encontraram o seu heli-canhão desfeito contra o enorme penhasco, a um
quilómetro do aeródromo de Mueda, perceberam logo porque não se tinha
incendiado com o combustível.</span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-size: 13.0pt; mso-fareast-language: PT;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i><br /></i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i>Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/music/2016-05_Ponto_de_nao_retorno.mp3">aqui</a>.</i></span></div>
<div>
<div>
<div class="msocomtxt" id="_com_10" language="JavaScript">
<!--[if !supportAnnotations]--></div>
<!--[endif]--></div>
</div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-9422425593388959022016-06-23T17:46:00.000+01:002016-06-23T17:46:33.494+01:00Zero absoluto<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><b><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12.0pt;">Crescer
</span></span><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12pt;">é</span></span><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12.0pt;"> perder o direito </span></span><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12pt;">à</span></span><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12.0pt;"> inf</span></span><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12pt;">â</span></span></b><span class="CharAttribute4"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>ncia</b><o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">Ó</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">rf</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ã</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">os da inoc</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ê</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">ncia<br />
e condenados </span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">à</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;"> desarruma</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">çã</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">o do Cosmos<br />
n</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ã</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">o aceitamos a liberdade<br />
de tudo acontecer sem raz</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ã</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">o<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">O
verde mais tenro do prado<br />
a sombra mais fresca do bosque<br />
o trote mais livre do potro mais livre<br />
n</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ã</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">o t</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ê</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">m mais prop</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ó</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">sito de servir<br />
a humana frui</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">çã</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">o<br />
do que a p</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ú</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">stula mais f</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">é</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">tida<br />
sobre virginal pureza<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">Felizes
dos que sublimam<br />
a aleatoriedade do mundo<br />
e fazem de deus<br />
o bode expiat</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ó</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">rio<br />
da impot</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12pt;">ê</span></span><span class="CharAttribute5"><span style="font-size: 12.0pt;">ncia humana</span></span><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;">.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Na
lareira da minha avó</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">o tempo
ardia lento<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O
olhar dela fitando os folhos de seda<br />
que se desfraldavam das cavacas<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">De
longe em longe<br />
um suspiro acordava a mão da tenaz<br />
que aconchegava os tições<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a
outra dormindo no regaço<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Depois<br />
outro suspiro sossegava a saudade<br />
inquieta no peito<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E
os pensamentos flutuavam<br />
ao compasso das sombras<br />
na parede da cozinha<br />
até se misturarem sem densidade<br />
dentro do meu sonho<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que
eu<br />
ao colo dela<br />
mesmo a dormir era feliz.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>O
teu amor nasceu</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">quando em
ti<br />
morreu a vergonha<br />
dos nossos delitos<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O
amor torna decoroso<br />
o que o simples desejo<br />
mantém obsceno<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando
me tocavas<br />
com o olhar de quem rouba um fruto<br />
violavas o pudor<br />
que deus inventou<br />
para valorizar o pecado<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Agora<br />
com a conveniência do amor<br />
colhes o fruto<br />
sem o frémito da conquista<br />
nada em ti se agita ou sobressalta<br />
somos duas almas gémeas<br />
apenas brincando com os corpos<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O
amor tornou o prazer incestuoso.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Se
não fui refratário</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">nem
desertor<br />
não foi por falta de medo<br />
foi por falta de luz<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">De
coração na boca<br />
e arma na mão<br />
apenas agi como aqueles<br />
a quem deram uma causa justa<br />
e os inimigos certos<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Combati<br />
e enquanto combati<br />
de mim dei quase tudo<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Porém<br />
o que dei<br />
ninguém mo mereceu<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas
a minha ínfima glória é esta<br />
a meio da carnificina<br />
aprendi que a morte<br />
pode ser a última coisa digna<br />
a que temos direito.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Um
homem com uma arma</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">não é
um soldado<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um
soldado é uma arma<br />
levando um homem pela mão<br />
que o que define um conjunto<br />
é o elemento mais significante<br />
Às vezes o homem põe-se a pensar<br />
e a arma vai perdendo ascendência<br />
e o soldado desaparece<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Fica
então um homem atónito<br />
de arma na mão.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Pobres
daqueles que chegam ao destino</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">ou a
ambição era curta ou o sonho já morreu.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>A
avenida Bissaya Barreto</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">passa
com uma fluidez de rio<br />
dividindo o mundo em dois<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em
cada margem<br />
uma diferente estação do ano<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">De
um lado<br />
o verão de vestidos leves<br />
e óculos escuros<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Olhares
de sol poente<br />
no desnudamento das pernas<br />
onde às vezes<br />
o prolapso provocante de um joelho<br />
sob uma mesa da esplanada<br />
desperta o Tempo distraído<br />
entre galões e tostas mistas<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Do
outro lado<br />
o inverno dos rostos famintos de luz<br />
com um restinho teimoso de esperança<br />
embaçada pelas vidraças foscas<br />
da enfermaria do IPO<br />
onde a areia do Tempo<br />
escorre entre dedos trémulos<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os
olhos prestes a perderem-se no Caos<br />
mas uma energia residual<br />
dilata os minutos breves<br />
no aperto do peito<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A
entropia a aproximar-se<br />
perigosamente<br />
do zero absoluto.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Na
sala de espera</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">algumas
pessoas<br />
ainda pertencem ao mundo dos sãos<br />
outros gozam de um pequeno intervalo<br />
entre as duas partes do drama<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No
mostrador do atendimento<br />
ao contrário da vida<br />
podemos avaliar<br />
quanto falta para a verdade.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>A
fita de Möbius</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">e um
hospital<br />
têm apenas um lado<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Basta
a vida dar meia volta<br />
e os médicos e enfermeiros<br />
adormecem de bata<br />
e acordam de pijama<br />
na ininterrupta fiada de olhos<br />
adorando o teto.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>O
capelão</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">vem
pela tarde<br />
quando as almas estão mais apuradas<br />
e ministra o placebo divino<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Depois
vem o enfermeiro<br />
com os princípios ativos<br />
não vá o diabo tece-las.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Nós
os soldados</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">aprendemos
a ter medo<br />
aprendemos a viver<br />
com uma curta esperança de vida<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quem
não sabe ter medo<br />
vira as costas ao perigo<br />
para não ver a Morte<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Eu
hei de morrer com medo<br />
mas ao morrer<br />
quero olhá-La nos olhos<br />
quero rir-Lhe nos olhos<br />
e odiá-La como quem ama.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>A
doutora Gabriela</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">faz
sofrer o cancro desalmadamente.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>A
esperança</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">não é a
última coisa a morrer<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Muito
depois da esperança<br />
ainda resta a coragem<br />
e depois da coragem o desalento<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E
o desalento não morre<br />
vai desvanecendo até à insanidade<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E
quando a vida no-lo deu a conhecer<br />
e porque é insano e imponderável<br />
o amor sobreviverá ao corpo<br />
um átimo após o último sopro<br />
como chama que arde ao vento<br />
enquanto o pavio já apagado arrefece.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Quando
a visita chega ao fim</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">fecham
as portas<br />
e tu cá dentro<br />
atado ao sofrimento<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma
borboleta no peito<br />
preparada para a viagem<br />
e a metamorfose inversa<br />
do respeito cruel à vida<br />
condena-a à clausura do casulo<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ninguém
te liberta<br />
desse embalsamento de dor<br />
ninguém te ajuda a saltar<br />
só porque já não tens asas<br />
e não podes voar<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas
se tu queres apenas regressar<br />
ao Infinito de onde te foram buscar<br />
porque é que a misericórdia humana<br />
não te salva da vida<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Porquê<br />
se o inferno é aqui.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Ninfa
desflorada a bisturi</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">ventre
prenhe de morte<br />
seios canibalizados<br />
escalpo sob o lenço de seda<br />
que bonita que és<br />
que se to quisesse dizer<br />
só cantando<br />
porque as palavras sozinhas<br />
não sabem dançar<br />
como a luz nos teus olhos<br />
que guarda ainda<br />
a beleza rasurada do corpo<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ver-te
passar<br />
no corredor da enfermaria<br />
como uma oferenda<br />
imolada à ceva dos deuses<br />
faz do meu ateísmo uma religião.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Se
deus gostasse de mulheres</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">arranjava
maneira de existir.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>O
riso</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">é a
vingança dos homens<br />
por terem nascido mortais<br />
e com consciência disso<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nenhuma
besta se ri<br />
e Deus é sisudo<br />
só o homem sabe brincar<br />
com a estupidez da finitude.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Sempre
falámos muito</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">e nunca
nos amámos tanto<br />
como com as palavras<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às
vezes calávamo-nos<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Eram
pausas na música<br />
para saborearmos juntos<br />
a ressonância dos afetos<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que
vai ser de mim<br />
sem ti ao meu lado<br />
para dialogar os silêncios.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Camarada
que partiste</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">sinto
que está na hora de sair para a cidade<br />
está na hora de dizer banalidades<br />
está na hora de prosseguir<br />
como fazem os sobreviventes depois dos combates<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não
deixar que os que tombaram<br />
comprometam o objetivo das suas vidas<br />
o cobarde objetivo de permanecerem vivos<br />
com a desculpa de que mais batalhas os aguardam<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na
verdade<br />
camarada<br />
só parei um pouco para descansar<br />
e tu seguiste<br />
porque os melhores vão sempre à frente<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os
sobreviventes são os que ficam para trás<br />
condenados a viver um pouco mais<br />
para carregar um pouco mais<br />
a consciência do absurdo<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ter
chegado do nada<br />
partir para o nada<br />
e entretanto<br />
ter a ilusão da existência e do eterno.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>O
ódio é precioso</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">como
precioso é o amor<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um
e outro devem ser usados<br />
com parcimónia<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quase
nunca amei<br />
e estou virgem de ódio<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas
agora<br />
ao sentir a tua esganação de crustáceo<br />
esgravatando na própria matriz do amor<br />
nasce em mim<br />
a mineral<br />
a metálica<br />
a serena fúria de te matar.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<br /></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span class="CharAttribute7"><span style="font-size: 12.0pt;"><b>Coisa
estúpida</b><br />
</span></span><span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;">erro
oportunista<br />
bug do código base<br />
autofagia celular<br />
fealdade biológica<br />
loucura insurgente do ADN<br />
perfídia impenitente da Natureza<br />
incompetência divina<br />
não importa o quanto resistas<br />
ao meu amor consciente<br />
o teu ódio bruto não vencerá<br />
e se não for antes<br />
será comigo que hás de morrer<o:p></o:p></span></span></span></div>
<br />
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Rosa
negra<br />
flor carniceira<br />
festa de cólera no luto do corpo<br />
não importa que da vida te alimentes<br />
a tua vesânia de sorver<br />
a humana paixão<br />
está condenada<br />
porque o meu amor sobrevivo<br />
em quem quer que o guarde<br />
há de cantar vitória<br />
que tu<br />
coisa estúpida<br />
se não for antes<br />
será comigo que hás de morrer.</span><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-size: 12.0pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i><br /></i></span></span></div>
<div class="ParaAttribute1">
<span class="CharAttribute3"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i>Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/music/2016-04_Zero_Absoluto.mp3">aqui</a>.</i></span></span></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-16737833138218790262016-06-23T17:10:00.002+01:002016-06-23T17:19:40.340+01:00A grande filarmónica <div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O pé descalço não lhe tirava dignidade nenhuma ao porte
altivo de chefe de orquestra. De vez em quando olhava para trás para ver se nós
o seguíamos alinhados, e corrigia os tresmalhados com o olhar reprovador, sem
nunca deixar de marcar o compasso. Quando chegava, a banda que o seguia era
invisível e todos os sons eram mais afinados. Aparecia no largo da Capela com um
<i>dolcissimo</i>, quase em bicos de pés, as
mãos delicadas como asas de inseto, mas já entrava na rua da Portela com ar altivo
e passo marcial, num <i>andante com brio</i>,<i> </i>e mais ou menos a meio do percurso, usualmente
ganhava a intensidade dramática de um <i>allegro
maestoso</i>, que culminava invariavelmente num <i>grande finale</i>: ratatá, ra-ta-tá, ra-ta-tá, txim pom!</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nesta altura, fazia um pequeno silêncio enquanto
desentorpecia os dedos tamborilando o ar de braços abertos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando se preparava para iniciar um novo andamento, já era
seguido por um considerável bando de putos empunhando saxofones de troço de
couve, trompetes de flor de jarro e arcos de violino de empa de vinha,
aguardando que a sua batuta de vareta de chapéu-de-chuva batesse três vezes na estante
da partitura imaginária.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A fanfarra ia crescendo em número, à medida que percorria a
rua da Portela, e ao chegar ao largo do Sobreirinho era já uma grande orquestra
que se agrupava em cima do corpo cilíndrico do poço da bomba de água
transformado em coreto.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">As pessoas passavam sem espanto, habituadas àqueles arraiais,
concedendo, quando muito, um breve sorriso ou um comentário de circunstância,
porque, por assim dizer, o Armando da Antes era já uma vedeta muito popular.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando o Armando da Antes decidia continuar o seu desfile,
nós seguíamo-lo de novo, parando a uma ou outra porta para ele fazer o seu
peditório de alguma côdea de boroa ou rabo de peixe frito, que guardava numa
sacola esfiampada a tiracolo, ou alguma moedinha de tostão que ia juntando no
único bolso que não estaria roto, para poder pagar o copito de zurrapa que lhe
aviariam na loja do Sr. Boanerges, antes de ele abalar em direção à Antes. E
partia sozinho, devido à deserção dos músicos, cansados com uma performance de
uma tarde inteira pelas ruas tortuosas de Aguim, mas sobretudo porque não
conseguíamos manter a fantasia por tanto tempo como ele. E agora, afinado
consigo mesmo, conduzindo a sua orquestra imaginária, ouvíamo-lo desaparecendo num
<i>sfumato lento</i> pela ladeira do
Barreiro abaixo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quem se lembra do Armando da Antes?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sempre imaginei que o Armando da Antes era feliz comparando
a exuberância da sua figura com o ar de néscia bonomia do Abílio, um ar de tímido
contentamento de menino pobre que crescera demasiado. Ele alimentava, apesar
disso, uma fantasia aparentemente mais compensadora. Ele fantasiava um namoro
promíscuo com todas as mulheres de Aguim. Ao Abílio não lhe bastava a côdea e o
rabo de peixe, - E a pinguita e a pinguita? No final da esmola e depois de
atualizar as notícias e os mexericos com que pagava o que lhe davam, perguntava
sempre à dona-de-casa: - Quando é? Quando é? E elas numa ternura tolerante
respondiam sempre: - É quando tu quiseres Abílio. E ele: - Quinta-feira,
quinta-feira!</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O Abílio tinha um encontro marcado com todas as mulheres de
Aguim para quinta-feira. Uma quinta-feira imaginária e inatingível, o que, pelo
menos, lhe garantia uma fantasia interminável. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Na rua, caminhava meio trôpego gritando de vez em quando: -
Inda no bieram! Nunca soubemos quem tardava ao encontro, quem sabe, talvez fossem
as noivas da sua fantasia.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes ganhava uma roupa nova, que ele transformava
imediatamente em roupa de mendigo, mal a colocava em cima. - Cais das calças a
baixo! Cais das calças a baixo! Só as crianças o incomodavam. E ele a
atirar-lhes pedras, porque era criança também; só que crescera demais. Talvez
as crianças vissem nele o perigo de nunca se deixar de ser criança.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">- Inda no bieram! Dizia ele, nunca se soube porquê. Um dia
eles bieram mesmo! Eles vieram e levaram o Abílio para onde não houvesse
necessidade de mendigar nos últimos anos de vida, para onde não houvesse
crianças com medo de ficarem crianças para sempre.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ouvi dizer que não transformava o pijama em roupa de
mendigo. Ouvi dizer que já não dizia - Inda no bieram! Ouvi dizer que perdera até
o ar de tímido contentamento.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nunca mais trouxe os últimos mexericos da semana, nunca
mais: - Quando é, quando é? Nunca mais: - Quinta-feira, quinta-feira!</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quem se lembra do Abílio?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Até hoje, em Aguim, deixaram de batizar as crianças com esse
nome, um nome estigmatizado para sempre, apesar de já ninguém saber porquê.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma vez vi o Armando da Antes e o Abílio juntos. Duas
fantasias diferentes e aparentemente incompatíveis interagindo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A tarde era de Outono, numa altura em que as cores e os
cheiros predominantes em Aguim transmitiam uma calma de fim de jornada, como se
algo turbulento e cansativo tivesse finalmente serenado e todas as coisas se
preparassem para um descanso prolongado.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sentados no rebate da porta da capelinha de S. José.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não fossem as roupas de mendigo, os pés descalços e as
calças invariavelmente curtas para a perna, e pareceriam dois homens de
negócios parlamentando com civilidade.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gestos assertivos, rostos circunspectos, posturas comedidas.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que mundo de ilusão assim se realiza, que universo íntimo e intransitivo
existe na mente de um homem, que se abre e descodifica mal depara com o afeto
fraternal de um ser com a sua conformação? </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Dois seres proscritos pelos que julgam entender muito mais
do mundo e julgam estar muito mais perto da realidade, unidos na sua marginalidade.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Afinal é sempre tão pequena a diferença entre todos nós que
parece impossível não nos entendermos tão bem como o Abílio e o Armando da
Antes, ao menos quando ficamos a sós com os nossos problemas comuns. Mas seria
preciso abandonarmos as demenciais fantasias de poder e de domínio, de
ostentação e de autoapologia. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sentemo-nos no rebate de uma capelinha num dia em que as
cores e os cheiros do Outono pareçam convidar a um repouso prolongado, condenemos
à permanência no mundo das verdades adquiridas aqueles que se gabam de nos
expulsar dele, e os instrumentos que tocarmos não serão jamais troços de couve
nem empas de vinha e não seguiremos nenhum lunático, mas o mais competente regente
de orquestra.</span></div>
<span style="font-size: 12pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ou, suprema felicidade, que
os instrumentos continuem a ser esses, mas que um dia olhemos para trás e
sejamos nós mesmos a corrigir apenas com o olhar reprovador o músico
desalinhado da formação em parada da nossa grande filarmónica. E que seja essa
a única ascendência sobre os outros a que tenhamos direito.</span></span><br />
<span style="font-size: 12pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: 12pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: 12pt;"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i style="font-family: verdana, sans-serif;">Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica </i><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: xx-small;">Episódios</span><i style="font-family: verdana, sans-serif;">, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/music/2016-01_A%20grande_filarmonica.mp3">aqui</a>.</i></span></span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-14733048400193501142016-06-23T17:02:00.001+01:002016-06-23T17:08:07.275+01:00Psicoterapia<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Boa tarde senhor doutor! Dá-me licença? Obrigado!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Estou bem. Pelo menos, quando mal, sempre assim. Há
um ano que andamos nisto, e eu é que gostaria de saber se estou bem. Eu sei
como me sinto, mas queria saber a sua opinião.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Eu venho aqui, falo, falo, o senhor doutor vai
acenando com a cabeça, escreve umas coisas nesses papéis e no fim vou para casa
e volta tudo ao mesmo. Às vezes parece que estive aqui a confessar-me; até fico
admirado por não me receitar uns pai-nossos e umas ave-marias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Mas quando chego a casa a Zulmira olha para mim e
diz “Atão como correu?”, como se eu viesse de um exame de condução, e eu olho
para ela a perguntar a mim mesmo porque é que ainda não me pediu o divórcio.
Aquela mulher ama-me, ou há muito que não estaria comigo, e eu vivo com ela por
preguiça. Não é bem preguiça, é uma coisa difícil de explicar; tenho medo de
precisar de fazer uma pergunta e não ter ninguém para me responder ou de querer
explicar alguma coisa a alguém para eu próprio acreditar no que digo e
descobrir que sou a única pessoa no mundo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Arranjamos companhia, casamo-nos, vivemos juntos;
tudo para arranjar uma testemunha para as nossas vidas. Sem uma testemunha como
poderemos provar que vivemos? Não sou feliz com a Zulmira, mas ser infeliz sem
companhia ainda seria pior. Preciso dela, mas preciso dela como preciso dos
sonhos. Preciso que a sua presença aconteça para que os meus dias sejam mais do
que uma noite escura.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Preciso de olhá-la, a ver se todo o amor que
senti por ela ainda existe em mim; dado que o amor, uma vez sentido, já não
pode arrepiar caminho. Mas amar é um verbo que ao ser conjugado no pretérito se
anula no presente. Porém devo ter guardado em mim muito amor por ela, embora
não o sinta, porque tenho consciência dele fazendo peso na alma.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Quando olho para ela sou feliz por um instante,
porque sinto que o mundo não é completamente desabitado. Ela sai-me da frente e
o mundo torna-se uma coisa pesada que tenho que levar sobre os ombros. E
pesa-me mais a cada dia que passa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">E às vezes vem-me de repente esta vontade de sair
à rua para me vingar de um mal que me fizeram, sem saber já quem é o culpado, de
ir caminhando por entre as gentes como uma bomba-relógio, mas com o relógio
noutro fuso horário qualquer para nunca saber se o fim está próximo e poder gozar
da surpresa. Ir caminhando como um grito em todas as modelações do som. Eu, um
grito. Todas as células do meu corpo numa histeria de som que as pessoas não
ouvem porque são surdas à voz da consciência. Um grito que vai crescendo e um
dia rebenta. Não para fazer mal aos outros, mas para me vingar da felicidade
que me é estranha, para acabar de vez com a felicidade, que é a causa de toda a
minha desilusão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Um kamikaze mental, é o que eu sou, senhor doutor.
Escreva aí no seu relatório: “sofre da síndrome do kamikaze” e receite-me dois
pai-nossos para depois das refeições.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Já me lembrei de ir a Fátima a pé, mas não para
pedir um milagre à Virgem, não; era só para sentir a esperança das pessoas que
pagam a felicidade caminhando. Eu daria a volta ao mundo por um momento de esperança;
nem precisava de ser feliz, apenas queria poder olhar a Zulmira como da
primeira vez que fizemos amor. Eu a tirar-lhe a alça do vestido e o fio da alça
a descer pelo ombro e o ombro a ficar nu, só porque aquele fiozinho lhe passava
por cima. Tudo por causa da maneira como eu olhava para ela. Agora ela deita-se
a meu lado sem roupa nenhuma mas não fica nua. Imagino que fique nua quando se
despe para o amante e que a nudez comece ainda quando ela está vestida e alisa
o vestido sobre a coxa, só para sentir a coxa por baixo do vestido. Sim, senhor
doutor, a Zulmira tem um amante; não é bem um amante, é um parceiro sexual. Sei
isso porque ela ainda traz um bocadinho da nudez quando regressa a casa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Claro que não me importo! Ela dá-lhe o prazer que
não me pode dar a mim e recebe um olhar que a vê nua, e não apenas despida, um
olhar que se surpreende quando a calcinha já caiu e a marca do elástico desenha
a fronteira do pudor a descoberto</span><span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">. Ia a Fátima a pé para
voltar a ver essa marca da candura exposta, e não apenas um vergão do elástico.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">O meu maior mal, senhor doutor, é ter vivido a crueldade
sem pudor nem escrúpulos, é ter convivido com a nudez dos corpos para além da
própria pele, e agora não consigo recuperar a inocência de um olhar
superficial.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Não me estou a fazer de vítima, não; eu sou realmente uma
vítima. Combati, sim, mas os</span><span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"> soldados são as primeiras
vítimas das guerras </span><span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">onde,</span><span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"> quase sempre</span><span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">,</span><span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">
são obrigados a combater; e são as últimas, porque quando a guerra acaba eles
carregam-na consigo até ao fim das suas vidas</span><span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Como se faz marcha atrás nesta viagem, senhor doutror?
Isso é o que eu preciso de saber. Eu sofro de ter memória, é essa a minha
doença; não consigo viver apenas no momento atual, todo o filme da minha vida
está presente a toda a hora. O radiotelegrafista morre todos os dias à minha
frente, o corpo a estrebuchar, lutando pela vida, e depois de um último
estremecimento, a descontrair completamente com um suspiro de alívio por deixar
esta vida, e por fim o rosto a perder lentamente todo o medo, toda a cólera e
toda a culpa, até ficar completamente inocente. A candura da morte.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Se não há nada que me possa fazer para me tirar isto do
filme da minha vida, que faço eu aqui?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando digo estas coisas à Zulmira, ela fica incomodada;
ao menos ela chateia-se comigo. “Oh home bota outras coisas na cabeça.” E eu
tentando ver se ainda havia mistério por baixo da saia dela. Dantes, ela
cruzava as pernas e eu ficava com o sangue a ferver, os dedos inquietos. Agora
não há mistério nenhum.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">E quando aparecia de repente sem eu contar e toda a sala
se iluminava? Eu não a amava como se ama uma mulher, eu sentia numa epifania com
o milagre da sua presença. Mas isso perdeu-se. Ou antes, o espaço que havia em
mim, em que se encaixava tudo isso, já não existe, está cheio do lixo da
memória que eu não consigo deitar fora. Eu conheci a morte, senhor doutor, não
a morte como fatalidade, mas a morte como propósito. Mas não julgue que é por
fraqueza que sofro com isso, não, voltaria a pegar numa arma se tivesse uma boa
causa para isso, mas era preciso voltar a ser inocente e ignorante e sobretudo
crente, e eu perdi essas virtudes; hoje sei demais para pegar de novo numa
arma. A cada tiro que se dá vai um bocado da nossa inocência com a bala, e não
volta mais, e depois, quando olhamos para uma mulher despida vemos apenas um
corpo, uma anatomia, e não uma vertigem, um milagre da Natureza. O que eu
preciso, senhor doutor, não é de estar aqui a confessar-me, o que eu preciso é
que me façam desaprender a guerra, que me restituam a ignorância, que me
devolvam o erotismo de um ombro de mulher, quando a alça do vestido ao descer
transforma o seu corpo ainda vestido na mais provocante nudez. É por isso que a
certas horas do dia me sinto uma bomba-relógio, um kamikaze, um grito, um peregrino
da desesperança caminhando entre multidões ainda atónitas com os milagres do
mundo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">E depois dizem-me que a guerra que se trava dentro do meu ser
não é a mesma guerra onde combati, como se a guerra fosse apenas uma troca de
tiros e não uma doença sem cura, um cancro, um canibalismo da memória que nos
vai consumindo sem piedade.</span><span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , sans-serif; font-size: 12pt; line-height: 115%;">O quê, já terminou a consulta? Parece que estive a falar
apenas dois minutos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "calibri light" , "sans-serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">E então, senhor doutor, acha que estou melhor?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<i style="font-family: verdana, sans-serif; font-size: small;"><br /></i>
<i style="font-family: verdana, sans-serif; font-size: small;"><br /></i>
<span style="font-size: xx-small;"><i style="font-family: verdana, sans-serif;">Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica </i><span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: xx-small;">Episódios</span><i style="font-family: verdana, sans-serif;">, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/music/2015-12_Psicoterapia.mp3">aqui</a>.</i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-77320226025915383442016-01-28T20:14:00.003+00:002016-01-28T20:16:21.207+00:00Uma história mal contada<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Eu a olhar para dentro do cacifo e a pensar “que diabo vim
eu aqui fazer?”</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Acabei por desistir, e dirigia-me já para a cama quando me
lembrei de ter visto a tua foto descolada. Voltei para trás e tornei a abrir o
cacifo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Parece impossível, mas a tua foto descolou-se de novo. Todas
as outras fotos se mantêm no lugar, a tua é a única que teima em descolar-se. Parece
bruxedo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Devo ter estado imenso tempo a olhar para dentro do cacifo,
porque o furriel Bastos passou por mim com um carregador de G3 na mão, e disse:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">– Parece que tens alguma coisa contra esse cacifo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Se não fosse cá por coisas mandava-o à merda. Gosta de se
armar em esperto.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Agora vim sentar-me na cama. Da cama eu vejo uma nesga da
parada e ao longe o refeitório. E depois, árvores e mais árvores. Nada nem
ninguém me impediria de me levantar e ir em linha reta até àquelas árvores e
depois, não parar, seguir sempre em frente até desaparecer. Levariam muito
tempo para darem pela minha falta, o tempo suficiente para eu me pôr ao fresco.
Mas claro que não farei isso; não por patriotismo ou falta de coragem, mas pela
mesma razão que nenhum dos meus camaradas o fará. É que não há nada para além
do refeitório, durante centenas e centenas de quilómetros. A não ser árvores,
claro.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Estamos presos neste lugar danado, numa prisão sem muros,
sem nada que nos impeça de fugir. A não ser a distância. Estamos a uma
distância louca de qualquer sítio para onde possamos fugir.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O furriel vem aí de novo, agora com a coronha da G3. Vem
longe e já vem a arreganhar-se. Vai dizer mais uma piada, pela certa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">– Deixa lá, não fiques assim, ainda vais encontrar um cacifo
que te entenda.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes penso que o senso de humor pode ser um disfarce
para a estupidez. Que anda ele a fazer, levando uma peça da G3 de cada vez?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Reparo agora que estou sozinho na caserna, e a nesga da
parada não tem ninguém. Parece que neste fim-de-mundo só estou eu e o furriel.
Eu a magicar naquela coisa estranha de a tua foto se descolar a toda a hora, e
o furriel que parece andar a roubar uma G3 peça a peça.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É tudo tão estranho quando a nossa vida é vivida fora do seu
lugar. É como tentar usar um carregador de uma Kalash numa G3.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Dou por mim a pensar: não sou daqui, estou aqui a mais, e
parece que ninguém se sente feliz por eu aqui estar; e no entanto, se eu tentar
fugir podem até matar-me.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não sou muito inteligente, não sei muitas coisas, é verdade,
mas entendo que isto não faz sentido, e por isso não pode acabar bem. E as
muitas pessoas que sabem mais do que eu já entenderam tudo há muito tempo, e é
isso que mais me chateia. Nós aqui a aguentar esta guerra como se ela fosse para
durar sempre, e as guerras são para ganhar ou para perder, percebes Zulmira? Nós
fomos atirados para a fogueira e depois esqueceram-se de nós. Por isso sinto uma
raiva enorme por eu valer tão pouco; por eu ser obrigado a estar aqui e mesmo
assim fazerem de conta que eu não existo. Eu sou um carregador de uma Kalash
metido numa G3, mas sou tão pouco importante que ninguém dá por isso. Sou uma
personagem de uma história mal contada.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">De repente lembrei-me do que queria do cacifo e voltei a
abri-lo. E lá está a tua foto de novo descolada. A fita-cola é igual à das
outras, mas só a tua foto é que se descola. Descola-se no bordo de cima, depois
cai, presa no bordo de baixo, e fica de costas para mim com a dedicatória de
pernas para o ar: “Gardo-me para ti”. Fiquei imóvel a olhar para aquilo ignorando
novamente o que vim fazer.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">– Gosto de vos ver assim amigos de novo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O palerma do furriel a escangalhar-se de riso, agora com o
cano da G3 a passar por mim, em direção à parada. Ele deve entrar pela
secretaria mas quando sai, passa de propósito pela caserna, para me chatear. Vejo-o
durante uns segundos a caminhar na parada e depois desaparece.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Dou conta que ficou aqui o maior silêncio. Não se ouve nada.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nunca me senti tão só.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Para lá do refeitório a floresta sem fim. Um mundo vegetal
que esconde um universo misterioso feito de coisas que me são estranhas e que me
fascinam.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Agora que sei, tantos anos depois, Zulmira, que te perdi no
dia em que fui para África, penso que estive numa terra que me deslumbrou mas
que nunca conheci, onde estive preso sem cadeias, e que combati numa guerra
onde morri embora tenha regressado.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas o que regressou de mim foi apenas um restinho que a
guerra não matou.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A tua foto foi comigo e voltou comigo. Enquanto isso, tudo a
mudar à nossa volta. O mundo inteiro enlouquecendo à nossa volta, e o teu
sorriso na foto sempre igual. Morreram pessoas, e as que sobreviveram mudaram
tanto que se pode dizer que também morreram e que vieram outras no seu lugar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quanto de mim recebeste tu de volta, Zulmira? E quanto de
mim guarda ainda a memória do meu amor por ti?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A dada altura, tive uma certeza tão grande – uma certeza
absoluta – de que deveria fazer qualquer coisa, mas fiquei parado vendo apenas
as coisas deixarem de fazer sentido à minha frente.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Parado, como o teu sorriso na tua foto, o teu sorriso que
teimava em se esconder como um mau agouro. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A tua foto a querer dizer-me alguma coisa, como um sinal teu
atravessando o mundo todo para chegar até mim. Mas que pode fazer um soldado em
que ninguém repara, embora não pudesse estar mais fora do seu lugar? Como um
carregador de uma Kalash metido numa G3.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um soldado preso à guerra, sem ter para onde fugir.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Morri em África, Zulmira; o que regressou de mim foi a parte
que resistiu à loucura do mundo, porque não sofre nem ama.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O dedo no gatilho e as mãos já não me tremiam. Deixei de se
eu, Zulmira, quando as mãos deixaram de me tremer ao disparar a G3.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Voltava a África se pudesse, voltava ao passado para fazer
alguma coisa. Alguma coisa que me fizesse hoje ter a certeza de que não morri
lá. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gostaria de voltar a África para conhecer África sem guerra,
sem o peso do perigo que não deixava apreciar a paisagem.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Voltava, para ver como era a largueza da terra sem o cansaço
do corpo e a fadiga do olhar, para ver como era a paciência do tempo sem a ansiedade
e sem o medo da morte.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E sem a saudade de ti, que me ia modificando lentamente,
transformando-me em alguém que fui deixando de conhecer.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Voltava para um tempo onde ainda havia alguma coisa em mim
que sofria e que amava, quando olhava o teu sorriso na foto. Um tempo em que o
nosso amor ainda fazia sentido.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Voltava, se tu pudesses ir comigo para corrigir a história
das nossas vidas. Uma história mal escrita, com uma guerra pelo meio.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma história que eu sei, como se ma tivessem contado, sobre
um amor de que já não me lembro bem. E o amor precisa de ser lembrado, porque o
amor é uma coisa da memória.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma história que continuou até hoje, mas que nunca se livrou
da guerra.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Esta nossa história, Zulmira, que vamos vivendo e de onde se
vê sempre a guerra ao fundo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sempre, sempre ao fundo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i>Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica </i>Episódios<i>, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/index.php?option=com_content&view=article&id=678:jornal-elo-julho-2015&catid=157&Itemid=134">aqui</a>.</i></span></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-45198708263865596122016-01-26T23:27:00.000+00:002016-01-26T23:36:18.024+00:00Palavras como que de amor<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Eras vaga e
indecifrável<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">casta na minha ignorância</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Via-te desprovida de biologia</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">sem excreções nem ânus</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E do sexo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">apenas o desenho imaginado</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">da tua púbis</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">na confluência suave das coxas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">sem os pormenores imperfeitos da animalidade</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não sei quando foi que acordou em mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a bestialidade vertiginosa</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">de te canibalizar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não nos conhecíamos<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e conhecemo-nos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não nos amávamos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e amámo-nos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas a vida tomou conta de nós</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e o tempo desgastou</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">o cimento entre as pedras</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a pouco e pouco</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">até ficar uma ruína</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">até ficarmos soltos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a desabar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E finalmente</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">voltámos a desconhecer-nos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando cruzavas as
pernas<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">os teus gráceis</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou ao subires as escadas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">os teus glúteos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">tocavam-se num átimo feliz</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e depois estremeciam a acomodarem-se</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">insatisfeitos com as leis da inércia</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Tal e qual os meus olhos a segui-los</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e as minhas mãos inquietas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas não é o impacto do estalo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que recordo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">são as ondas de choque</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a corrente telúrica</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por sob o teu vestido</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quase te amo<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sei que quase te amo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Só não sei quanto falta</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">para não ter convicções nenhumas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e ficar olhando para
o caminho</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por onde hás de vir</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e sentir uma diferença</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">algures dentro de mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">entre a epiderme e o infinito</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Agora</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">sinto apenas uma diferença no corpo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">quando te vejo chegar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Morremos tantas vezes
em Mueda<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Morremos sempre que uma voz se cala</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por estarmos aqui</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes até acordamos já mortos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por isso à noite</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">os soldados bebem e cantam</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">para adormecerem vivos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Meu inimigo<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">tão íntimo que somos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A vida uniu-nos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">sem raiva nem ódio</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A nossa arena</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e o nosso lar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é a mata antiquíssima</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">onde nos tentamos matar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">como duas almas gémeas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">aguardando uma única vida disponível</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O melhor combatente<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">não é o que tem esperança</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é aquele a quem não resta</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">caminho possível</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">para um último afeto</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Solidário com a Morte</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">levará consigo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">no derradeiro abraço</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">o seu mais íntimo inimigo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">certo que a Vida</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é uma patologia do Cosmos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é a pureza inquinada </span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O dia em que vais
morrer já começou<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Algures nesta picada tombarás</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e deixarás de saber</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">tudo o que aprendeste</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Tornar-se-á inútil</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a longa corrente de seres vivos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que te antecederam</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">para que fosses possível</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">desde o princípio do mundo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">até ao rebentamento da mina</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A guerra é a negação
de Deus<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que obra imperfeita</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">faz perfeito o seu criador</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nós</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ao menos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">temos a desculpa da estupidez</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não os deuses<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">mas os humanos apenas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">são capazes de amor</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os seres perfeitos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">não têm faces ou arestas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">são as esferas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">do mundo etéreo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Amá-los ou temê-los</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é-lhes pois</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">indiferente</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Os sentimentos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">à escala divina</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">são uma imperfeição humana</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que só noutra imperfeição</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">se refletem</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É péssimo ser
otimista<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quanto maior a sede</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">mais pequeno parece o copo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Comigo<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">na casa deserta</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">vivem</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">não fantasmas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">mas ausências</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ausências dos afetos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e das pessoas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">temo-o seriamente</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">faltar-me-ão um dia</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">as próprias ausências</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">como a insónia</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que sucede</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">às noites mal dormidas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que me visitem então</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">os fantasmas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O sobrado da adega<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">guardou algum tempo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">os objetos esquecidos da família</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ficaram ali a desmemoriar </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando já ninguém se lembrava</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">das suas histórias</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">foram jogados fora</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">como se faz</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">com as pessoas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A poesia<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é a arte de dizer
lugares-comuns<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">pela primeira vez<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><b style="font-family: 'Times New Roman';"><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Por cada comboio que parte</span></b><b><br />
</b>ficam muitas histórias por
contar<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A minha história <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">também não
embarcou<br />
vou-me afastando irremediavelmente<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">da vida que vivi<br />
e aproximo-me de quê<br />
eu que viajo de costas para o destino<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Quando estiveres
perdida<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">procura-te no meu coração</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes a noite<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é um pássaro triste</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que crocita saudades</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">num bosque distante</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">dentro do peito</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">um navio fantasma</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">num mar de brumas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e eu preso</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">à roda do leme</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Em que porto desembarcaste</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou que vaga te levou</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou desencanto</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E eu ao leme</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">náufrago de ti</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Num sobressalto da
tarde<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">como se uma onda batesse</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">no cais da minha alma</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou sei lá que dor dentro de mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">eu percebi que já é
tarde</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O que acabou em ti</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">meu amor</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou para que poente se evadiu</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Num sobressalto da tarde</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">como se uma ave se alvoroçasse</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por entre os ramos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou sei lá que angústia no meu peito</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">eu percebi que nunca mais</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que morreu em ti</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">meu amor</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ou será que fui eu que morri</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e a onda a bater no cais</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a ave agitando os ramos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e o sobressalto da tarde</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">são apenas saudade</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A tua saudade de mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nunca o espaço se entrepôs<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">nunca o tempo<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nunca a dúvida também</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que a dúvida</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">é a maior distância entre dois amantes</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Tudo o que afrontou este amplexo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">feneceu a uma simples palavra</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou a um olhar só</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que grito profundo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">pôs agora em ebulição</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a superfície plácida das águas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">num repentino alvoroço</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">de aves em pânico</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que manto de sombra</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">da face oculta da lua</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">veio cobrir de medo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a luz tranquila da tarde</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que repousava em teu olhar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Que maldição</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que rancor</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">de deuses desconhecidos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">querem partir este amor uno</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">em duas solidões</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Não pôde o espaço</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">nem o tempo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">nem a dúvida</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">não poderá agora o medo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Aqui me ergo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">pronto para a contenda</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">cruzado sem fé nem demanda</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">os ferros brandindo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a esventrar as trevas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um pouco mais</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">um pouco mais</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e restituir-te-ei a madrugada</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Olhei
para o lado e estavas lá<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">na luz âmbar que vinha do mar<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">serena como a madrugada<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">antes das grandes paixões<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Toquei-te e o prazer<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">durou mais que o gesto<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Ao meu lado<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">quando a tarde já exausta<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">mergulhou no mar<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">tu suspensa do infinito<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por um grito suspenso de ti<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e o tempo como que esperando<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">para acontecer<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Abri os olhos e estavas lá<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">estremunhada de amor<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">o arfar das ondas ainda no peito<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e a luz da tarde<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">durando nos olhos<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">porque o tempo não passa<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">enquanto o amor não envelhece<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Sei que estavas lá<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">serena no âmbar da tarde<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">porque fui feliz<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">As marcas do nosso amor<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">na areia fina<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">a maré apaga<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou o vento<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ou a chuva<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Mas a leve carícia<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">dos meus dedos <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">na fímbria do teu
corpo<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ainda perdura<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nem o vento <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">nem outras mãos<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">só a dissolução<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">da memória<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">no lento suicídio
dos dias<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O tempo<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">tudo destrói<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um espaço vazio<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">minha filha</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">estaria no teu lugar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Aí não seria sequer um lugar</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">seria a continuidade do espaço</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que agora interrompes</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">com a tua existência</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">não fora a cadeia incontável de ocorrências</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que te deu origem</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">quiçá um fator desconhecido</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e irracional</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">talvez o amor</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">talvez a oxitocina no hipotálamo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">talvez a brisa em Olhos d’Água</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">talvez o olhar da tua mãe</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">ao cair da tarde</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Vieste do Infinito<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">porque no Mundo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">não havia nada como tu</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">e o Mundo ficou</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">um pouco mais bonito</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">depois de tu chegares</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No íntimo mais ínfimo de ti</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">existe uma canção solta de mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">um grito arrancado de mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">um segredo contado por mim</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">mas que não são meus</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">vieram do Infinito também</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">como tu</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Recebi-os dos meus pais</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">assim como o perfume das rosas</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">que vai passando de rosa em rosa</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">sempre igual</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">até ao fim dos tempos</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Às vezes fico contente</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por te ter dado o Mundo</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">às vezes fico triste</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">por não te ter dado algo melhor</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i><br /></i></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif; font-size: x-small;"><i>Para deficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica </i>Episódios<i>, <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/index.php?option=com_content&view=article&id=675:jornal-elo-junho-2015&catid=157&Itemid=134">aqui</a>.</i></span></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-30571170222720101412016-01-26T23:16:00.000+00:002016-01-26T23:16:18.802+00:00Ida à praia<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ainda de noite, e um alvoroço na casa toda, como se os
objetos a
acordarem nervosos. Eu a reconhecer o dia especial, com o sono a
pesar-me na cabeça e a ansiedade a inquietar-me o peito. A buzina da camioneta
de carreira a pôr os meus pais atarantados. De cinco em cinco minutos para não
deixar descuidar os mais calaceiros.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha mãe atarefada e sem mãos a medir – Ó Zé, no estrobes
q’eu no agarro o cu às mãos ambas.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O meu pai tropeçando nas coisas como se os membros todos lhe
estorvassem – Entropiquei aqui no tapete – e depois preocupado com o tempo –
Vai estar rõe este ano.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E eu
agora já mais desperto, mas o rosto ainda empoeirado de sono. – Ó mãe,
tenho fome.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Lá fora a camioneta ainda à espera, buzina, e de cada vez
que buzina a Costa Nova mais perto.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O largo do Sobreirinho ainda com a calma do sono só
sobressaltada pela corrida dos retardatários, a camioneta impaciente chamando,
os meus pais parecendo ter ainda um dia de trabalho pela frente e eu num incómodo
bipolar, eufórico e ensonado. E a Costa Nova, afinal, ainda tão longe.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Finalmente, acomodados na camioneta, afogueados da canseira.
A minha mãe a tentar uma desculpa – Nestes dias é sempre munta tagarela.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O meu pai num sobressalto – Destes a lavagem à porca?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">– Estroceguei-le umas covitas. Co as patarrabas e um punhado
de farinha já ficou bem assalgalhada.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Por fim a camioneta a arrancar num estertor de tísica, mas
logo um alvoroço nos passageiros ao verem um último calaceiro correndo
atabalhoado e largando as coisas pelo caminho.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O alvoroço acalma com o embalo da carreira e o pigarro do
motor. Os passageiros a tentarem acabar o sono interrompido e eu ainda ansioso,
antecipando na minha imaginação a chegada à praia nas várias versões possíveis.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O meu pai ainda desassossegado – Estou c’uma fraqueirazita.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A minha mãe com um sorriso de vitória – Toma Zé, q’eu é que
tenho d’olhar por ti.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Depois o meu pai mastigando de boca seca com receio de se
queixar e a minha mãe castigadora por baixo de um sorriso maternal – É isto que
tu queres? Estás aí a engrolar o pão proque nem te lembrastes da pinga.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Agora sim, o silêncio e a serenidade tomam conta de todos,
embora eu ainda dividido entre a preguiça e a excitação.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O melhor da viagem é a paisagem com alguns traços de outono
num setembro já cansado de verão. E o meu pai agoirento – Vai estar rõe este
ano.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A paisagem num desfile de imagens corrige todos os anos o
álbum da minha memória. Eu a lutar com o peso na cabeça e a poeira do sono e,
agora ainda, o ranço pesado das pessoas. Quando eu já prestes a sucumbir, o
hálito fresco do mar a despertar-me, ainda tão levezinho, que se calhar só
ilusão.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Mas de repente o bom cheiro fecal da ria, o bom aroma
pútrido do moliço, o bom perfume cáustico das pirâmides de sal. E a luz que
cega.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A camioneta para antes da ponte de madeira. Toda a gente a
pé e depois, do outro lado, a ver a camioneta avançando a apalpar terreno com
medo de a ponte cair. Agora chegando junto a nós com alívio, entre palmas e
risos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ao longe sobre um lençol de seda azul o eterno priapismo do
farol da barra.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O mundo a mudar aqui. Para trás, as coisas da vida
conhecida, com densidade, familiares para os sentidos e o entendimento; para a
frente, as coisas de um outro mundo que só vejo durante quinze dias por ano,
feito de coisas mais limpas, sublimadas e leves, que a mente não perde tempo a
tentar entender porque os sentidos as abocanham sôfregos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Tudo cândido e sereno, salvo a inquietude do mar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A calma das águas, a inquietude das águas; a paradoxal vida
das águas a deslumbrar os tolos, os poetas e as crianças, que as pessoas com
tino e responsabilidades têm mais em que pensar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Os operários nos estaleiros numa azáfama de formigas em
volta do esqueleto de um barco. Os marnotos correndo de cuecas, correndo sempre,
entre a salina e o monte de sal. Os moliceiros como gôndolas gigantes a
mirarem-se no espelho da ria. E a praia agora já perto.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A Barra de Aveiro passa num instante, preciso de olhar com
atenção. O farol fálico a passar por nós. De noite, risca a escuridão com um
longo dedo de luz a esquadrinhar o negrume em busca dos barcos que se aproximem
de mais dos seus quebra-mares e nos dias de nevoeiro ronca até nos enlouquecer.
A passarem por nós também as pessoas, que parecem não ter propósito nenhum
senão estar ali. Nem nos olham.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Férias é não ter propósito nenhum; nós agora ainda temos um
propósito, quando chegarmos ao nosso destino ficaremos também só ali. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Em breve a areia fina da praia. A areia como moeda de troca
do sal. Dizem. Os navios nórdicos em busca do sal traziam-na como lastro e
despejavam-na aqui. O sal, o lastro de areia e muitos séculos fizeram a praia
da Costa Nova só para nós passarmos lá quinze dias.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Finalmente o mar. Uma luz tão limpa e um ar tão leve, que as
pessoas a acordarem uma a uma. As cores das barracas a decorarem a praia.
Listas feitas de barracas. Barracas feitas de listas. Casas feitas com as
listas das barracas. Tudo tão arrumado. Tudo tão limpo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">O som do mar ininterrupto. O enorme lençol das águas a
desdobrar-se até à praia em orgasmos de espuma.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A alma a levitar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">A camioneta parou e tudo parou dentro dela, como se as
pessoas pasmadas com o bulício do lado de fora. Fora da camioneta o mundo
diferente, dentro da camioneta ainda o mesmo mundo que veio connosco desde o
largo do Sobreirinho.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Abriram as portas e os dois mundos a misturarem-se. E nós
deixámos logo de ser os mesmos. A nossa alma a misturar-se com a alma da Costa
Nova.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Um moliceiro transformado numa gôndola de transporte público
com o barqueiro a empurrar com uma vara o fundo da ria para trás. E o barco
parecia avançar para a frente, com ele a correr de cuecas também, na amurada do
barco, correndo sempre, a pé descalço, da proa para a popa de vara fincada no
fundo da ria e depois da popa para a proa de vara no ar. E de novo a empurrar o
fundo da ria para trás, ajudando a vela cansada de tanto se tentar agarrar ao
sopro frouxo da brisa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">À espera, no atracadouro de telhado em forma de boné, outra
leva de passageiros para as gafanhas.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif;">Ao descer da carreira, as pernas bambas de preguiça, os
olhos ainda emboitados de sono. Era isto que eu mais queria. Chegar ao destino
e ficar aqui. Não ter propósito nenhum senão sair da camioneta de carreira e
ver a Costa Nova à minha espera. Tudo a cintilar de luz e a borbulhar de vida.</span></div>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;">E nós pasmados, numa alegria de tontos perante o belo.</span></span><br />
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></span>
<span style="font-size: 11pt; line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><br /></span></span>
<span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: Verdana, sans-serif;"><span style="font-size: x-small;"><i>Para deficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA.Portugal.com na rubrica </i>Episódios<i> <a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/index.php?option=com_content&view=article&id=667:jornal-elo-abril-2015&catid=157&Itemid=134">aqui</a></i></span></span></span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-72172065787309284672016-01-26T21:37:00.000+00:002016-01-26T23:18:22.204+00:00Dezembro<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gosto de estar assim sentado no carro a ver o Outono, um
Outono que persiste pelo Inverno dentro indiferente ao calendário.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">No Espírito Santo há uma pequena praça onde agora as folhas
dos plátanos decoram o chão e um bando de pombas esvoaçando decoram o céu. Só
as decorações pindéricas de Natal não decoram nada; causam o efeito de um
bigode pintado a marcador no rosto da Gioconda.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Alguns idosos dão uso aos bancos quase sempre vazios e um
grupo de crianças torna útil a superfície lajeada que sem eles parece servir
apenas para não sujar os sapatos com o bom chão.<span style="background: yellow; mso-highlight: yellow;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Se um alienígena parasse aqui por minutos pensaria que este
nosso mundo é composto apenas por idosos e crianças – às vezes passa um jovem
apressado, como um estrangeiro num país hostil, de fones nos ouvidos. Não
concebem a vida sem uma permanente banda sonora, e não satisfeitos por se
isolarem uns dos outros em casa, vêm isolar-se uns dos outros também para a
rua. Prisioneiros do entretenimento permanente, vivem de cabrestos acústicos
nas orelhas, moucos para o mundo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Acho que envelheci por distração, porque não me lembro de
quando deixei de criticar os hábitos estúpidos dos adultos para embirrar com os
hábitos estúpidos dos jovens.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O sino da igreja transformou por instantes este recinto
urbano num recanto rural, depois calou-se, e a urbanidade pousou de novo sobre
todas as coisas.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Gosto de estar assim como um espetador fotografando tudo com
os olhos, não mais que fotografando, não mais do que com os olhos; as pessoas
passam ou estão sentadas, que diferença faz? As crianças brincam e os pássaros
voam, as árvores preparam-se para o inverno que tarda. Tentar entender isto
seria estúpido, porque a Natureza não tem propósitos. Porém, as decorações de
Natal têm. Estão
ali para o caso de termos saído à rua sem nos lembrarmos de vestir a efémera
bonomia da quadra, mas depois das festas, retiram as decorações e podemos
voltar sossegados ao nosso impiedoso individualismo sem sermos distraídos.<span style="background: yellow; mso-highlight: yellow;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Passa uma mulher com uma saia muito curta e a cada dois
passos puxa-a para baixo, realçando a longitude provocatória das pernas. A
praça parece mais iluminada. Eu sinto um friozinho na barriga, uma pequena
vertigem libidinosa; e em todo o dia não me lembro de ter estado mais perto da
felicidade.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Amo as coisas insignificantes, como folhas caídas, voos de
pomba e nudez de pernas de mulher, mas não quero guardar nada porque o que
verdadeiramente amo é a efemeridade das coisas. São preciosas porque não duram muito.
Haja o que houver tudo acabará, e outra coisa, igualmente perecível, tomará o
seu lugar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">O próprio Sol, como todas as estrelas, extinguir-se-á; só
durará mais uns milhõezitos de anos, mas antes dilatar-se-á e esturricará a
Terra, e se entretanto a humanidade arranjar forma de viajar à velocidade da luz
para fugir a esse dilúvio de fogo, terá que viajar alguns biliões de anos para
fugir depois à colisão entre a Via Láctea e a Andrómeda, e desse terramoto
galáctico não ficará nem uma sombra da memória de tudo isto.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">E então deus deixará de ser amado porque não sobreviverá
ninguém para acreditar nele.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nada há mais precioso e real do que estarmos aqui e termos
consciência, mesmo que por pouco tempo. Sentir e pensar, fruir e criar. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">É uma grande presunção esta, achar que criamos alguma coisa,
que acrescentamos à existência algo que não existia antes, seja um desenho,
seja uma epopeia; quando não fazemos mais do que dispor de outra forma o que já
existia, isto é, apenas nos divertimos mudando as coisas de lugar; é como redecorar
a casa com os mesmos móveis. Móveis, sons, formas ou palavras; ou os desenhos casuais
das pombas no cinzento do céu, tem tudo o mesmo valor – nós a mais do que as
pombas só temos consciência disso.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Amar a vida é amar tudo sem fazer juízos de valor. Amar tudo,
sem o imperativo de temermos a deus.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Deus, o Inconcebível.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Deslumbro-me com a Sua impossibilidade conceptual. Um ente
sem tempo nem lugar para existir antes de criar o mundo, ou então coevo da sua
criação: criador e criatura.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Fascina-me a ideia magnífica que tivemos ao concebe-Lo, e depois
exíguos, ínfimos e perecíveis amarmo-Lo assim incógnito e transcendente.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Tão incrível como sermos nós um mito criado e depois venerado
pelas bactérias que vivem no nosso intestino.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Amo tudo sem a desculpa de deus. Amo os bancos da praça
aguardando que os velhos se sentem neles e a bola correndo à frente das
crianças, amo os desenhos efémeros e aleatórios que as pombas criam sobre a
tela do céu e a saia curta da mulher. Também amo os velhos, as crianças, as
pombas e as pernas da mulher, mas menos. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma mão bate com os nós dos dedos no vidro da porta do
carro. Agarrado a essa mão está um polícia.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">- Algum problema senhor polícia?</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">- Boa tarde! O senhor está estacionado num lugar para
automóveis elétricos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">- Estacionei aqui porque não há lugares para deficientes e
porque não há carros elétricos para estacionar aqui. Se aparecer algum eu saio.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">- Se não vai abandonar o veículo tudo bem.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Também amo a autoridade tolerante dos polícias como amo a
aleatoriedade do mundo. Estou aqui estacionado porque um agente da autoridade
não levou muito a sério o Código da Estrada e continuo vivendo porque a
Natureza não é muito rigorosa a aplicar a seleção natural.<br />
A mulher da saia curta regressa, puxando sempre a saia para baixo; dir-se-ia
que não quer mostrar as pernas. Ao lado dela caminha agora outra mulher de saia
comprida e botas altas. Parece faltar-lhe qualquer coisa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Param e olham para trás. Chamam uma menina, que corre para
elas. A mulher a que parece faltar qualquer coisa pega na menina ao colo, e
atravessam a estrada, desaparecendo na Luís Gonzaga.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">A praça parece agora menos interessante, embora os bancos, a
bola e os desenhos das pombas sejam os mesmos. Mas falta a iluminura de umas
pernas desnudas de mulher.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Passa um cão a correr.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nesta praça nada me conhece, nada me quer conhecer, as
coisas fazem parte deste conjunto sem vontade, emoção ou afeto; estas ou outras
não alterariam o caos do universo. Só nós escolhemos os objetos das nossas
relações.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Nem um só rosto conhecido à vista. Um rosto amigo que
apareça no meio de desconhecidos é o correspondente humano da madrugada.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Um homem pode viver uma vida inteira sem essa revelação, sem
uns olhos em que se veja e sem uns ouvidos a quem entregue os seus segredos
cansados de silêncio.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">Uma ambulância passa a gritar na Circular do Hospital e não
parece afligir ninguém, por aqui só o cão levantou as orelhas. Uma desgraça
distante pode ser ignorada mais comodamente, como se a distância a que
acontecem as coisas mudasse a sua importância. Tudo serve para justificar a
nossa falta de altruísmo, como se cada ato de egoísmo se justificasse com a
luta pela sobrevivência.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">As pombas pousaram no meio da praça, as crianças recolheram
a bola, os velhos começam a sentir frio e a ir-se embora e por entre
desconhecidos vejo a minha filha que regressa da aula de condução. E o mundo
realiza-se perante mim com uma consistência sólida e consequente, ganhando
humanidade à medida que o espaço em meu redor me acolhe como a um familiar.</span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;">As pombas levantam voo de novo e os seus desenhos no céu revelam-me
quase impercetíveis formas fractais.<br />
Se calhar a aleatoriedade é só uma organização de padrões de que ainda não
conhecemos os códigos.<br />
E a mulher da saia curta volta mais uma vez a passar à minha frente, e eu
sorrio feliz.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "verdana" , sans-serif;"><span style="font-size: x-small;"><i>Para eficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica </i>Episódios<i>, </i><a href="http://www2.adfa-portugal.com/adfapor/index.php?option=com_content&view=article&id=659:jornal-elo-fevereiro-2015&catid=157&Itemid=134" style="font-style: italic;">aqui</a></span></span></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-78906813349900335742015-04-10T14:21:00.003+01:002015-04-10T14:21:52.174+01:00Adeus Capitão, meu Capitão!Faleceu o Coronel José Edgar Neves Baptista Azevedo, o Capitão da 3503.<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://2.bp.blogspot.com/-BeiM4IZRgM0/VSfNTw_BlnI/AAAAAAAAA48/eJzOxjViA9k/s1600/Azevedo%2B10.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://2.bp.blogspot.com/-BeiM4IZRgM0/VSfNTw_BlnI/AAAAAAAAA48/eJzOxjViA9k/s1600/Azevedo%2B10.jpg" height="225" width="320" /></a></div>
<br />
Até ao momento só soube da sua morte pelo Jornal Elo da ADFA de que era o associado 742<br />
Nasceu e residia em Lisboa, serviu na CART 3503 em Mueda, Moçambique e faleceu a 26 de Dezembro de 2014, com 67 anos.<br />
Receba, meu Capitão uma respeitosa continência e, meu amigo, um sentido abraço.<br />
(Atualizarei este post quando tiver mais notícias.)<br />
<br />mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-89646363835573796642015-02-04T01:08:00.006+00:002015-02-04T01:08:53.573+00:00A Sandes do Sargento
<span style="font-family: "Helvetica Neue", Arial, Helvetica, sans-serif;">Regressar a casa e não trazer nada. Nem a memória de um ato generoso. Nem ao menos a certeza de uma dor honrosa. Nada.<br />Do avião, Lisboa é um arraial de luzes na noite da minha chegada. <br />Num salto despropositado, a memória vai-me buscar uma outra noite no meio do cacimbo, com um vulto a ameaçar-me por não lhe ter prestado continência. O meu corpo a obedecer num aprumo covarde, enquanto os meus olhos verificavam em redor se haveria testemunhas para uma coronhada a coberto da escuridão.<br />– Um militar nunca perde o aprumo. Pegue lá na arma como deve ser!<br />A sentinela do batalhão de pescoço esticado a trair-me os instintos assassinos e eu a descer a G3 do ombro devagar, e a reconhecer nada menos que o Comandante de Setor. Há ocasiões em que apenas por um átimo não ganhámos a glória, ou deitámos tudo a perder.<br />Nesse dia à tarde o mesmo vulto na varanda do Hospital de Mueda, então, de galões bem visíveis à luz do sol:<br />– Meu filho perdeste uma perna mas mereces ganhar uma medalha.<br />– Estou-me cagando para as medalhas, não vê que agora é que perdi de vez o aprumo?<br />E o Primeiro Pala:<br />– Oh meu Coronel ele está a delirar, ele está a delirar.<br />O Império a arder e a imolar na sua consumição os próprios filhos. Quando um dia dele restarem apenas cinzas, os que não aprenderam nada proclamar-se-ão heróis, e os que esqueceram tudo, mártires. Haverá lugar para os que aprenderam e se recusam a esquecer?<br />Lutei, mas ninguém mo mereceu. Não trago comigo a memória de um único ato meritório, mas é verdade que os meus antigos heróis, descritos na História em caixa alta, não eram melhores do que eu; eu, porém, disto me posso orgulhar: ofereceram-me ali a honra imerecida e recusei.<br />Lisboa é um arraial de luzes na noite da minha chegada. O avião às voltas, às voltas, à espera de autorização para aterrar, e as luzes de Lisboa a acenderem-se, debruando as ruas e as avenidas com fiadas de estrelas. A ponte, uma constelação sobre o rio. As casas e os monumentos a desfilarem a meus pés com halos de luz sobre a tela negra da noite. A cabeça do Império num arremedo de homenagem, estendendo uma passadeira cintilante à minha chegada.<br />Não demora muito a fantasia. Mal chegamos ao Hospital Militar espera-nos a desatenção impaciente de um capitão, que delega num alferes, que delega num sargento a tarefa de ficar acordado enquanto esperamos não sei por que alta patente, que virá dar-nos uma palavra de afeto. Afeto? Esta é uma palavra não regulamentar. Demasiado feminina por assim dizer. Nas duas horas e meia em que estive sentado numa cadeira dura, de uma sala fria do Anexo do Hospital Militar à espera da alta patente e do afeto que nos serviria numa palavra apressada, durante as quais a fome que trazia da viagem se transformou numa tortura, não consegui deixar de me interrogar sobre este mistério. Como pôde um sentimento humano, mesmo dos mais básicos, ter contaminado a instituição militar?<br />A alta patente, de estatura atarracada, secundava afinal uma mulher de porte bem mais altivo e de uma elegância quase majestática que às duas da manhã nos fez um pequeno discurso a realçar a sua dedicação à causa do Movimento Nacional Feminino, que tinha a honra de presidir, como se via ali com a sua presença àquela hora tardia da madrugada.<br />São 2 e meia, e agora finalmente, no caminho entre a porta de armas do Anexo do Hospital Militar e o serviço de sargentos, caminha um estranho ser vivo. Ao todo contam-se duas cabeças, duas pernas completas e duas canadianas. Um estranho ser vivo com dois corpos ligados entre si por um varão composto por outras duas canadianas de onde se suspende uma mala. O corpo da direita é o Herculano e o da esquerda sou eu. E os sapatos de verniz negro do major de Lourenço Marques oferecidos pela esposa adúltera, a saltitarem trocados – o pé esquerdo do Herculano do lado direito e o meu direito do lado esquerdo – mas a marcarem passo certo para não nos desequilibrarmos.<br />O Herculano não para de rir-se.<br />– Para de te rir pá.<br />– Então tu pedes uma sandes de queijo e uma cerveja à Sopico Pinto? És uma anedota!<br />– Ela não disse que se precisássemos de alguma coisa…?<br />– Mas uma sandes? Ainda se lhe pedisses para alguém nos trazer as malas…<br />– Uma mala, que por acaso é tua.<br />– Mas o sargento é que não gostou da ideia. O pobre, que tinha lá a sandes para ele…<br />Mais um ataque de riso do Herculano. Não lhe dou troco.<br />Nada por aqui se parece com uma enfermaria. Sentamo-nos no meio do caminho para descansar um pouco.<br />– Trazes uma bigorna nesta mala?<br />– Este gajo é uma anedota! Comeu a sandes ao pobre do sargento.<br />E desata a rir novamente.<br />Depois de transpormos acrobaticamente o enorme obstáculo constituído por apenas três degraus da entrada do pré-fabricado que faz as vezes de enfermaria de sargentos, entramos num hall lúgubre de onde irradiam dois corredores. Só então descobrimos que não há ninguém para nos receber, e não temos como saber que cama, nem tampouco que quarto, nos foram destinados.<br />Enquanto o Herculano vai dizendo a frase "Este gajo é uma anedota" seguida de uma gargalhada como se fosse um refrão, eu dou por mim a pensar que me estou a afastar definitivamente da guerra. Um bloqueio mental, um sentimento de negação que me afasta demasiadamente da Guerra Colonial para poder escrever sobre ela. Olho impotente para o bloco de cartas, onde costumo rabiscar as minhas notas.<br />– Porque estás tu a olhar para uma folha em branco?<br />Deixo o Herculano de boca aberta sentado no sofá do hall e vou abrindo as portas dos quartos, uma a uma, até encontrar, a primeira cama vaga para dormir.<br />Acordo na manhã seguinte dentro de um caixão. Quem terá sido o imbecil que concebeu o interior dos quartos dos furriéis feridos em combate naquela forma?<br />Acordei com um safanão e uma cara indignada com ar de ter perdido algo mais do que a noite:<br />– Dormiste na minha cama. <br />Esta foi a primeira de muitas noites no purgatório, o Anexo, um lugar a meio caminho entre dois infernos: o desterro da guerra numa terra distante e a guerra contra o desterro na minha própria terra.<br />O meu país tem medo dos filhos que sacrificou.<br />O meu país está doente.<br />E lá fora, a cidade acordando serena. Lisboa, como um doente terminal ignorando a doença. Lisboa nunca acorda completamente, estremunhada de ignorância.<br />E protege-se de nós.</span><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Helvetica Neue", Arial, Helvetica, sans-serif;"></span><br /></div>
mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-9878460.post-7150749317085861032015-02-04T01:03:00.002+00:002015-02-04T01:03:21.212+00:00Silêncio imperfeito<span style="font-family: "Helvetica Neue", Arial, Helvetica, sans-serif;">O dia nasce. O sol ergue-se lentamente. É impossível avaliar o quanto este fenómeno pode trazer alegria a uma pessoa.<br />Impossível, porque agora, o mundo que conhecemos afastou as trevas e criou um dia constante onde nunca falta a luz. E as trevas fazem falta. Há de haver dentro de nós alguma coisa que aguarda que o dia acabe para alterar a perceção das coisas, para abrandar os sentidos e nos conectar ao mundo interior feito de registos e memórias, de sentimentos e imaginação, e que nos deixa sensíveis aos estímulos exteriores sem a ilusão de os percebermos.<br />Foi por isso que apaguei a luz.<br />Desliguei a televisão e fechei-me no quarto. E fiquei dentro de mim só. Procurei até onde pude a memória de te ter amado. Mas não consigo encontrar em mim uma única e inequívoca marca de amor por ti, apenas um difuso sentimento de amizade, ou de fraternidade, o que torna a nossa relação algo incestuosa.<br />Mas talvez porque não há silêncio suficiente. Nunca há. Dantes quando a luz se ia, os sons que povoavam a noite eram diferentes dos sons do dia. Eram os sons das trevas, os sons a que chamávamos silêncio. Agora não. <br />Dantes, se se ouviam passos na rua, em direção a Vale de Cid, isso era motivo de alarme. Ou um alvoroço nas galinhas, ou o ladrar de um cão.<br />É mais difícil encontrar dentro de nós seja o que for sem o silêncio das trevas.<br />Eu sou do tempo em que a noite era feita de trevas. Em que Aguim mudava de noite, e não apenas porque o sol se punha. Algo em nós se punha também, e era fácil acreditar em todas as coisas que nos parecem impossíveis de dia.<br />Sinto a falta desse mistério, desse desconhecido, desse temor que a luz desvanece.<br />A noite a cair e os sons da casa a despertar. As madeiras do sobrado a ranger, a estalar, a ajustarem-se aos frios noturnos. O caruncho a escarafunchar nas portas e janelas. Os ratos furtivos no sótão. Os gatos como uma mola prestes a saltar-lhes em cima. Todo um mundo de sons que não ouvimos de dia, como se a casa acordasse quando nós vamos dormir, ou nela acordassem os espíritos impacientes com a eternidade.<br />Agora nada disso acontece. As casas não têm segredos, não têm o silêncio que permite ouvir os sons do submundo a que deixámos de dar importância, ou os sons da distância que só o silêncio separava de nós, ou os sons interiores que sentíamos vívidos na nossa memória por não nos distrair o bulício da excessiva lucidez.<br />Não perceber tudo, não ter demasiadas certezas sobre nada, não explicar o que é mais interessante inexplicável, não acender a luz para verificar, para esclarecer; deixar algo encoberto como nos contos antigos, para que a imaginação nos transporte para uma dimensão da vida mais próxima do sonho, e assim podermos acreditar no que a razão não nos deixa acreditar.<br />Às vezes, em mim o silêncio perfeito da infância. O silêncio feito dos sons que serviam para ampliar o silêncio.<br />Passos na noite junto à capela de S. José. Eu acordado a meio do sono por um ritual pagão a que chamavam “Casamento das Cachopas”. Se fosse à janela, cada homem com um funil de almude na cabeça.<br />Agrupam-se ao lado da casa da minha vizinha como figurantes grotescos de um teatro de Pirandello. Um dos homens tira o funil da cabeça e usa-o como um megafone dando um urro lúgubre e longo na noite da minha infância. Tanto, que ainda me assusta. A minha mãe preocupada com o meu medo. O meu pai indignado com o despropósito. Eu a meio caminho entre o pavor e o espanto. Assustado e deslumbrado como só na infância.<br />Os homens correndo para os seus lugares numa coreografia furtiva de embuçados em torno da casa da minha vizinha.<br />Só um fica em frente da janela. <br />Uma bocarra de funil sarrenta e medonha – De quem são estas casas viradinhas prá capela? A menina que lá está dentro é de todas a mais bela!<br />Outro funil a responder – Não sei, não sei, mas vou perguntar.<br />Agora, nada de medonho na noite. Agora, longe da minha infância Aguim é uma memória com alma.<br />Agora, os teus passos a subir a escada. <br />– Venho morta de cansaço.<br />E atiraste-te para a cama.<br />Agora, um silêncio feito de coisas, todas elas conhecidas.<br />Os teus passos na gravilha do pátio, depois nas lajes das escadas. A chave na porta. O vento nos pinheiros. A tua respiração ofegante. O som dos teus sapatos atirados pelos pés, como se os teus pés fossem autónomos e não precisassem de ordens tuas, depois um beijo de uns lábios tão autónomos como os teus pés. E só depois disseste:<br />– Venho morta de cansaço.<br />O teu corpo sobre a cama. <br />Eu a pensar nesta nossa relação sem poesia nem encanto, escrevinhava num papel algumas destas palavras. A minha mão também como se não precisasse da minha ordem para escrever, enquanto eu falava contigo.<br />Acabaste por adormecer.<br />A tua roupa repousa sobre o corpo, não te veste. Debaixo, o teu corpo fervilha de vida. Cada músculo relaxado é uma mola apenas aguardando o impulso, a própria pele sob os panos é uma planície de serenidade apenas contida e o arfar do teu peito aumentando e diminuindo o volume dos seios, convida a soltá-los.<br />A roupa apenas pousada sobre o teu corpo como uma carícia, como um afago de pano sobre a pele, as pregas a realçarem os volumes. No côncavo das coxas uma almofada de ar sob o tecido deslisa suavemente, aproximando-se da púbis e afastando-se, conforme inspiras ou expiras, tão suavemente que se calhar é só imaginação minha.<br />A tua serenidade, como um abandono do teu corpo ao meu cuidado, convida todos os meus instintos de predador à visão da presa vulnerável e, ao mesmo tempo, atrai o meu olhar ao deleite tranquilo das tuas formas generosas.<br />O melhor de estar a olhar-te, é saber que vieste por mim, confiante em te saberes desejada. Vieste, e assim de tão serena adormeceste, confiando-me o teu corpo.<br />Assim, não parece errado o que fazemos, és apenas um fruto que se me oferece passivamente, como todos os frutos se nos oferecem. Como o pomo primevo se ofereceu, inocente, na alegoria de todos os pecados, para que o ónus da culpa pertença a quem o come, como se quem o come não tivesse sido predestinado para o comer, no irresolúvel paradoxo entre o destino e o livre-arbítrio. <br />Tu, a Eva e a maçã – dois em um. Móbil e crime, tentação e pecado, o irrecusável prazer antecipado e tão fácil e o objeto inevitável da culpa.<br />Às vezes penso que só te desejo porque não devia desejar-te.<br />E agora, no silêncio imperfeito do quarto, ouço o leve sopro da tua respiração. Era só levantar-te a roupa e consumar o meu delicioso pecado. Cumprir o meu destino, exercer o meu livre-arbítrio sem dó nem piedade e sentir-me completo com isso. Mas vou ficando imóvel e em silêncio, só para exercer este enorme poder de decidir que tudo o que fizer posso não o fazer, mas só se preferir o perverso prazer de pecar em contemplação, ao pecado simples do prazer em ato.<br />Faz-me falta, com dantes, a noite tenebrosa, a noite fantástica e o vago temor de que poderia nunca mais amanhecer.<br />Então, possuir-te-ia como uma fatalidade sem recurso – os nossos sons juntar-se-iam aos sons do silêncio: dois corpos procurando dentro um do outro algo mais do que o momento irreversível do orgasmo, e quem sabe, no sortilégio da noite cerrada, fossemos tocados pela transcendência.<br />Talvez assim te amasse. Fizesse mais do que desejar-te – mais que ter-te e perder-te.<br />E quando a noite se esvaísse amaria então, também a luz.<br />Enquanto dormes, eu alinhavando palavras sobre o papel como um embuçado lançando pulhas na noite do Casamento das Cachopas. Não mais do que um embuçado nesta casa cúmplice que nos acolhe – tu a pecadora inocente dormindo, como uma rês no covil do lobo, eu o próprio pecado na pérfida vigília do predador adorando a presa – e a noite, sem poesia nem mistério, avançando indiferente.<br />E já é dia. O sol alumia tudo. Tudo fresco, tudo renovado. E uma alegria vinda da madrugada, previsível e singela, chega até mim, mas sem a vitória sobre a noite subjugada não me contagia. <br />Dantes, o nascer do sol dava-me a alegria triunfal de um adolescente apaixonado.</span>mcbastoshttp://www.blogger.com/profile/08931715969785497183noreply@blogger.com0