23.6.16

Enquanto o comboio não parte

Na Estação Velha de Coimbra, a esta hora, há sempre meia dúzia de pessoas a dormirem nos bancos. Passageiros com a viagem interrompida por algum motivo. Como se a noite os tivesse encontrado a meio da sua rota por mero acaso e eles sentissem que o relógio do corpo começara a ficar sem corda e que os membros, como ponteiros flácidos, começassem a perder toda a tenacidade, e a consciência se volatilizasse num prazer fluído pelo corpo todo.
O prazer de ir na corrente, de deixar que a gravidade nos puxe para o fundo até sermos apenas uma sombra de nós mesmos, apenas uma sombra difusa. Lá em cima, acima da linha de água, alguém às vezes chamando por nós, e a tentação de ir ao fundo, a vertigem da queda no abismo, a preguiça de lutar pela consciência… ou o medo.
Acordar para quê? A voz a chamar por nós, e uma parte de nós a querer responder e a outra a querer deixar-se ir.
A realidade pode ser intolerável. Nunca sabemos, ao acordar, onde estamos a acordar. Será que ao nosso lado vamos encontrar o rosto que chama por nós de sorriso cúmplice, por entender muito bem o motivo da nossa preguiça matinal, ou será que ao ouvirmos a voz que chama por nós, não vamos sentir coragem nenhuma de abrir os olhos porque o pesadelo que tivemos pode ser a realidade que nos espera? – Acorda! Acorda! Dão-me palmadas no rosto. Soldados a gritar à minha volta e o pó ainda quente da explosão da mina a descer devagar sobre mim.
Ou será que vamos acordar numa cama imunda de hospital? O cheiro nauseante da creolina e do éter, e a ilusão de que afinal o corpo está todo ali, porque todo ele dói. A dor em cada dedo do pé que vi desaparecer na picada ressuscitado inexplicavelmente. A reconfortante, a maravilhosa, a miraculosa dor! Excruciante, como se uma turquês estivesse a esmagar cada osso, cada tendão, cada nervo, mas ao mesmo tempo tão redentora, a devolver-me o pé perdido na explosão da mina. Será? Ou mais um pouquinho de lucidez e ao fundo, na cama, apenas um alto sob o lençol? E o cabo enfermeiro a explicar: "São dores fantasmas, furriel, pecebe?" Enquanto na cama ao meu lado o Lemos delira sob o efeito da morfina: "Sou um pirata da perna de pau, olho de vidro e cara de mau".
Perante o meu olhar atónito o enfermeiro tenta uma comparação: “Se cortarmos esse fio e mudarmos o interruptor para o corredor, lá dentro a luz acende à mesma na cama 6, pecebe?”
Acordar apenas para a dor. A dor inútil. A dor sem corpo. A dor fora do corpo. A dor no local onde deveria estar a coisa que dói, mas que não está lá. Só lá está a dor. Uma dor em cada dedo, onde não há dedo nenhum. A dor ali, no ar, a dois palmos do coto. A dor por cima do lençol sem nenhum relevo sobre a cama, a dor mesmo no local onde se lê "Hospital Militar".
O comboio está aqui parado há imenso tempo, e pelos altifalantes somos avisados de que se encontra uma composição avariada a obstruir a linha. Imagino-me a caminhar na gare. Recordo as inúmeras vezes que caminhei na gare de uma estação aguardando por um comboio que tardava, sem pressa de partir, sem urgência para chegar a lado algum, apenas esperando que o comboio viesse, parasse e me levasse, e, enquanto isso, caminhando maquinalmente para um lado e para o outro só para não estar parado, sem dar conta que era feliz por não me preocupar com o tempo que perdia, porque, afinal, a solidão não é tempo perdido, dado que é tempo que passamos a sós com a pessoa que conhecemos melhor. Às vezes puxava de mais um cigarro para fazer um parágrafo nos meus pensamentos. Para abrir um parêntesis, para mudar de página.
Um vulto composto por uma enorme mochila com uma pessoa por baixo passa à frente da janela caminhando na gare. Como estou de costas para a frente do comboio tenho que me virar para trás para seguir o vulto e vê-lo a transformar-se numa jovem de cabelos cor de palha, à medida que se vai desfazendo de tudo quanto trazia às costas e pendurado à cinta. Senta-se no chão, na posição de Buda, e desdobra um mapa que fica a estudar calmamente.
Poucas pessoas entenderão como pode parecer absurda a paz no rosto de uma jovem sentada no chão, debruçada sobre um mapa. Temo pela sua segurança, assim despreocupada sem arma nem proteção, enquanto uma saudade incompreensível se apodera de mim como se aquele ato me tivesse sido subtraído, como se fosse um papel que me coubesse desempenhar a mim e que dele tivesse sido excluído. Acho que poucas pessoas entenderão que podemos sentir falta de desdobrar um mapa sobre a G3 a servir de mesa, pousada nas pernas cruzadas, e puxar da bússola azimutal, com o único propósito de descobrirmos onde estamos, enquanto árvores centenárias construíam a nave verdejante de uma catedral viva por cima de nós.
Quase me levanto para caminhar ao longo da carruagem, só para não estar parado e fazer um parágrafo nos meus pensamentos sem a ajuda do cigarro, enquanto o comboio não parte, mas o pé que me dói não está lá para me apoiar, só a dor a desenhar a sua forma precisa; agora apenas um formigueiro como se apenas tivesse estado dormente.
De vez em quando olho pela janela e, de cada vez que olho, vejo a jovem cada vez mais recostada na mochila, prestes a adormecer.

Na Estação Velha a esta hora há sempre meia dúzia de pessoas a dormirem nos bancos. Pessoas, quero crer, que apenas adormeceram de cansaço e que vão acordar serenamente para continuarem as suas vidas. Um intervalo apenas para continuarem viagem. Pessoas que despertarão do sono sem medo de que a voz que as chama, acima da linha de água da inconsciência, as faça acordar para um pesadelo.
Pessoas para quem essa voz apenas despertará nelas, dos abismos do subconsciente, desejo vivamente, a doce memória da voz maternal a sobrepor-se aos ruídos do mundo ainda desconhecido, quando dormiam o sono intra-uterino e primordial.

Muitas horas depois de ter parado aqui, o comboio dá um grande estremeção, um enorme despertar metálico que faz estalar toda a composição, depois começa lentamente a mover-se, e reparo que o dia já nasceu e sinto que me vou afastando para sempre do que me ligava às histórias das pessoas que ficaram na gare da Estação de Coimbra. Cada vez que um comboio parte, ficam muitas histórias por contar. Fica também algo da nossa vida para trás. Uma parte de mim também não embarcou, ficou sentada na gare da Estação de Coimbra a consultar um mapa, uma última evocação de um tempo passado, dela já nada se liga a mim, agora que desapareceu. Outra parte de mim ficou nesse tempo, em África, dela trago apenas a sua forma nítida desenhada a dor. Nunca levamos tudo quando partimos de viagem.
O comboio ganha velocidade e eu vou-me afastando irreversivelmente da vida que vivi, e aproximo-me de quê, eu que viajo de costas para o destino?



Ponto de não retorno

(In Cacimbados)

O Primeiro Maia é um gajo normal. Tirando o facto de já ter morto mais gente nesta guerra do que eu alguma vez consiga imaginar. Está sentado à minha frente no bar do aeródromo de Mueda. Ele vai falando e eu vou-me convencendo que o que nos separa é muito mais que esta mesa tosca de madeira. Hei de ouvir falar muito dele ainda, e dirão sempre: “Um gajo normal”.
Fala-me com o tom autoindulgente  e paternalista, típico de quem está mais inclinado a justificar os seus pecados do que a confessá-los. Mas nunca há palavras suficientes para nos redimirem dos nossos pecados, nunca há palavras que nos ajudem a mentir a nós próprios.
– Todos temos os nossos limites, Bastos. Limites, percebes?
Perante os meus olhos tontos do whisky ele insiste:
– Não sabes qual o teu limite para a bebida, por exemplo? É como quando discutimos com alguém. A partir de um certo ponto começamos a perder as estribeiras. E depois como é? Acaba tudo à porrada. É, ou não é?
Olhava de vez em quando pela janela que dava para a pista onde os helicópteros alinhados pareciam cansados, com as longas hélices paradas que se arqueavam com o próprio peso, e mais ao longe os T6 a fazerem lembrar moscardos enormes. Ele olhava pela janela à procura de alguma ideia que mudasse o ar mortiço do meu olhar e desse mostras de entendê-lo.
– Tu, por exemplo, não quiseste ultrapassar o teu limite. Eu sei que não entregaste a carta ao Segundo Fanhais.
Preferiste mentir ao teu pai e vieste bater aqui com os cornos.
Era só uma carta para um pide. O teu pai ultrapassou o limite dele por ti. Sabes o que teve que engolir? Sabes as humilhações que passou? Os problemas de consciência? E tu? Não foste capaz, não é? É assim com tudo na vida.
Quantos gajos mataste aqui? Em quantos vais? Agora era eu a olhar pela janela envergonhado por ainda não ter matado ninguém. – Estou aqui só há uma semana meu Primeiro.
E ele a olhar de novo pela janela como se falasse para o seu helicóptero pousado na pista.
– Sabes o que importa numa guerra? Não é os turras que matamos. As guerras são para os soldados se matarem uns aos outros. O que importa é os que não são soldados. O que importa é os que morrem sem saberem porquê. Sabes qual é o teu número? O teu limite? Descobre quanto antes e não ultrapasses esse limite. É como quando bebes aquele golo de whisky a mais, ultrapassas o teu limite e já não vais ser capaz de parar e já nem vale a pena parar, porque já não vais a tempo de evitar a bebedeira. Sabes nadar, Bastos? Até onde podes ir pelo mar dentro? Olhas para trás e vês a areia da praia ao longe. Será que as tuas forças ainda darão para mais umas braçadas e para voltares até terra firme?
– Ó Primeiro Maia, sempre é verdade o que dizem? Que você faz isso com o helicóptero? Que chega à pista e calcula o combustível que traz, para ir mais longe da próxima vez ?
– Sabes? Diz ele sem responder à minha pergunta. – Lá de cima não dá para ver quem lerpa, se são turras ou não . Lerpa tudo.
Levanta-se de um salto. – Ó nosso Cabo, ponha a despesa aqui do nosso Furriel na minha conta. Não passes o teu limite, meu filho!
Dizem que o Primeiro Maia é um gajo normal. Saiu do bar sem olhar para trás, talvez irritado com a minha pergunta, talvez porque já tenha ultrapassado há muito o seu limite, a partir do qual já não há retorno possível e a partir do qual deixamos de ser gajos normais. Será mesmo que faz isso com o helicóptero, como dizem?
Ao fundo do bar um grupo em torno de uma mesa tenta acertar com a música de uma canção do Zeca Afonso e repetem sem cessar os mesmos versos que parecem cada vez mais desafinados: “Entrei numa gruta Matei um tritão Mas tive o diabo na mão Mas tive o diabo na mão”.
E depois, já na pista, o Primeiro Maia a dirigir-se para o seu heli-canhão. A passar a mão sobre a fuselagem como os cavaleiros fazem no lombo dos cavalos antes de montarem.
A entrar no habitáculo e depois a assomar de novo à janela, olhando em redor.
O que mais ouvi dizer sobre o Primeiro Maia, a par da história de ele andar a ver até onde dava o combustível do helicóptero, era que se tratava de um gajo normal. Alguém como nós. Como se isso tornasse a história agourenta.
Ele entrou no habitáculo e depois voltou a assomar à janela. Tenho a certeza que fez isso porque agora parece-me um gesto de despedida. O Primeiro Maia. Um gajo como nós. A não ser por ter ultrapassado o seu limite há muito e passar a vida a tentar justificar o quanto passou a gostar do seu papel de predador, como se a morte fosse um vício. E ao fundo da sala a música desafinada: “Mas tive o diabo na mão Mas tive o diabo na mão”.
“Lá de cima não dá para ver quem lerpa, se são turras ou não. Lerpa tudo.” Um gajo como nós. Um gajo normal. Só que ficou viciado na morte. “Não passes o teu limite, meu filho!” E ele a assomar à janela e a olhar em redor, como que a despedir-se.
É difícil conceber o Primeiro Maia como mais uma vítima desta guerra. Ele, que embora não carregue no gatilho e seja apenas o piloto do helicóptero que leva a morte tanto a turras como a inocentes, vive indeciso entre o orgulho e o sentimento de culpa; e para desvalorizar este conflito, desvaloriza a própria vida, fingindo que anda a ver até onde pode ir sem reabastecer o depósito.
Quando encontraram o seu heli-canhão desfeito contra o enorme penhasco, a um quilómetro do aeródromo de Mueda, perceberam logo porque não se tinha incendiado com o combustível.


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Zero absoluto

Crescer é perder o direito à infância
Órfãos da inocência
e condenados
à desarrumação do Cosmos
n
ão aceitamos a liberdade
de tudo acontecer sem raz
ão
O verde mais tenro do prado
a sombra mais fresca do bosque
o trote mais livre do potro mais livre
n
ão têm mais propósito de servir
a humana frui
ção
do que a p
ústula mais fétida
sobre virginal pureza
Felizes dos que sublimam
a aleatoriedade do mundo
e fazem de deus
o bode expiat
ório
da impot
ência humana.

Na lareira da minha avó
o tempo ardia lento
O olhar dela fitando os folhos de seda
que se desfraldavam das cavacas
De longe em longe
um suspiro acordava a mão da tenaz
que aconchegava os tições
a outra dormindo no regaço
Depois
outro suspiro sossegava a saudade
inquieta no peito
E os pensamentos flutuavam
ao compasso das sombras
na parede da cozinha
até se misturarem sem densidade
dentro do meu sonho
Que eu
ao colo dela
mesmo a dormir era feliz.

O teu amor nasceu
quando em ti
morreu a vergonha
dos nossos delitos
O amor torna decoroso
o que o simples desejo
mantém obsceno
Quando me tocavas
com o olhar de quem rouba um fruto
violavas o pudor
que deus inventou
para valorizar o pecado
Agora
com a conveniência do amor
colhes o fruto
sem o frémito da conquista
nada em ti se agita ou sobressalta
somos duas almas gémeas
apenas brincando com os corpos
O amor tornou o prazer incestuoso.

Se não fui refratário
nem desertor
não foi por falta de medo
foi por falta de luz
De coração na boca
e arma na mão
apenas agi como aqueles
a quem deram uma causa justa
e os inimigos certos
Combati
e enquanto combati
de mim dei quase tudo
Porém
o que dei
ninguém mo mereceu
Mas a minha ínfima glória é esta
a meio da carnificina
aprendi que a morte
pode ser a última coisa digna
a que temos direito.

Um homem com uma arma
não é um soldado
Um soldado é uma arma
levando um homem pela mão
que o que define um conjunto
é o elemento mais significante
Às vezes o homem põe-se a pensar
e a arma vai perdendo ascendência
e o soldado desaparece
Fica então um homem atónito
de arma na mão.

Pobres daqueles que chegam ao destino
ou a ambição era curta ou o sonho já morreu.

A avenida Bissaya Barreto
passa com uma fluidez de rio
dividindo o mundo em dois
Em cada margem
uma diferente estação do ano
De um lado
o verão de vestidos leves
e óculos escuros
Olhares de sol poente
no desnudamento das pernas
onde às vezes
o prolapso provocante de um joelho
sob uma mesa da esplanada
desperta o Tempo distraído
entre galões e tostas mistas
Do outro lado
o inverno dos rostos famintos de luz
com um restinho teimoso de esperança
embaçada pelas vidraças foscas
da enfermaria do IPO
onde a areia do Tempo
escorre entre dedos trémulos
Os olhos prestes a perderem-se no Caos
mas uma energia residual
dilata os minutos breves
no aperto do peito
A entropia a aproximar-se
perigosamente
do zero absoluto.

Na sala de espera
algumas pessoas
ainda pertencem ao mundo dos sãos
outros gozam de um pequeno intervalo
entre as duas partes do drama
No mostrador do atendimento
ao contrário da vida
podemos avaliar
quanto falta para a verdade.

A fita de Möbius
e um hospital
têm apenas um lado
Basta a vida dar meia volta
e os médicos e enfermeiros
adormecem de bata
e acordam de pijama
na ininterrupta fiada de olhos
adorando o teto.

O capelão
vem pela tarde
quando as almas estão mais apuradas
e ministra o placebo divino
Depois vem o enfermeiro
com os princípios ativos
não vá o diabo tece-las.

Nós os soldados
aprendemos a ter medo
aprendemos a viver
com uma curta esperança de vida
Quem não sabe ter medo
vira as costas ao perigo
para não ver a Morte
Eu hei de morrer com medo
mas ao morrer
quero olhá-La nos olhos
quero rir-Lhe nos olhos
e odiá-La como quem ama.

A doutora Gabriela
faz sofrer o cancro desalmadamente.

A esperança
não é a última coisa a morrer
Muito depois da esperança
ainda resta a coragem
e depois da coragem o desalento
E o desalento não morre
vai desvanecendo até à insanidade
E quando a vida no-lo deu a conhecer
e porque é insano e imponderável
o amor sobreviverá ao corpo
um átimo após o último sopro
como chama que arde ao vento
enquanto o pavio já apagado arrefece.

Quando a visita chega ao fim
fecham as portas
e tu cá dentro
atado ao sofrimento
Uma borboleta no peito
preparada para a viagem
e a metamorfose inversa
do respeito cruel à vida
condena-a à clausura do casulo
Ninguém te liberta
desse embalsamento de dor
ninguém te ajuda a saltar
só porque já não tens asas
e não podes voar
Mas se tu queres apenas regressar
ao Infinito de onde te foram buscar
porque é que a misericórdia humana
não te salva da vida
Porquê
se o inferno é aqui.

Ninfa desflorada a bisturi
ventre prenhe de morte
seios canibalizados
escalpo sob o lenço de seda
que bonita que és
que se to quisesse dizer
só cantando
porque as palavras sozinhas
não sabem dançar
como a luz nos teus olhos
que guarda ainda
a beleza rasurada do corpo
Ver-te passar
no corredor da enfermaria
como uma oferenda
imolada à ceva dos deuses
faz do meu ateísmo uma religião.

Se deus gostasse de mulheres
arranjava maneira de existir.

O riso
é a vingança dos homens
por terem nascido mortais
e com consciência disso
Nenhuma besta se ri
e Deus é sisudo
só o homem sabe brincar
com a estupidez da finitude.

Sempre falámos muito
e nunca nos amámos tanto
como com as palavras
Às vezes calávamo-nos
Eram pausas na música
para saborearmos juntos
a ressonância dos afetos
Que vai ser de mim
sem ti ao meu lado
para dialogar os silêncios.

Camarada que partiste
sinto que está na hora de sair para a cidade
está na hora de dizer banalidades
está na hora de prosseguir
como fazem os sobreviventes depois dos combates
Não deixar que os que tombaram
comprometam o objetivo das suas vidas
o cobarde objetivo de permanecerem vivos
com a desculpa de que mais batalhas os aguardam
Na verdade
camarada
só parei um pouco para descansar
e tu seguiste
porque os melhores vão sempre à frente
Os sobreviventes são os que ficam para trás
condenados a viver um pouco mais
para carregar um pouco mais
a consciência do absurdo
Ter chegado do nada
partir para o nada
e entretanto
ter a ilusão da existência e do eterno.

O ódio é precioso
como precioso é o amor
Um e outro devem ser usados
com parcimónia
Quase nunca amei
e estou virgem de ódio
Mas agora
ao sentir a tua esganação de crustáceo
esgravatando na própria matriz do amor
nasce em mim
a mineral
a metálica
a serena fúria de te matar.

Coisa estúpida
erro oportunista
bug do código base
autofagia celular
fealdade biológica
loucura insurgente do ADN
perfídia impenitente da Natureza
incompetência divina
não importa o quanto resistas
ao meu amor consciente
o teu ódio bruto não vencerá
e se não for antes
será comigo que hás de morrer

Rosa negra
flor carniceira
festa de cólera no luto do corpo
não importa que da vida te alimentes
a tua vesânia de sorver
a humana paixão
está condenada
porque o meu amor sobrevivo
em quem quer que o guarde
há de cantar vitória
que tu
coisa estúpida
se não for antes
será comigo que hás de morrer.


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A grande filarmónica

O pé descalço não lhe tirava dignidade nenhuma ao porte altivo de chefe de orquestra. De vez em quando olhava para trás para ver se nós o seguíamos alinhados, e corrigia os tresmalhados com o olhar reprovador, sem nunca deixar de marcar o compasso. Quando chegava, a banda que o seguia era invisível e todos os sons eram mais afinados. Aparecia no largo da Capela com um dolcissimo, quase em bicos de pés, as mãos delicadas como asas de inseto, mas já entrava na rua da Portela com ar altivo e passo marcial, num andante com brio, e mais ou menos a meio do percurso, usualmente ganhava a intensidade dramática de um allegro maestoso, que culminava invariavelmente num grande finale: ratatá, ra-ta-tá, ra-ta-tá, txim pom!
Nesta altura, fazia um pequeno silêncio enquanto desentorpecia os dedos tamborilando o ar de braços abertos.
Quando se preparava para iniciar um novo andamento, já era seguido por um considerável bando de putos empunhando saxofones de troço de couve, trompetes de flor de jarro e arcos de violino de empa de vinha, aguardando que a sua batuta de vareta de chapéu-de-chuva batesse três vezes na estante da partitura imaginária.
A fanfarra ia crescendo em número, à medida que percorria a rua da Portela, e ao chegar ao largo do Sobreirinho era já uma grande orquestra que se agrupava em cima do corpo cilíndrico do poço da bomba de água transformado em coreto.
As pessoas passavam sem espanto, habituadas àqueles arraiais, concedendo, quando muito, um breve sorriso ou um comentário de circunstância, porque, por assim dizer, o Armando da Antes era já uma vedeta muito popular.
Quando o Armando da Antes decidia continuar o seu desfile, nós seguíamo-lo de novo, parando a uma ou outra porta para ele fazer o seu peditório de alguma côdea de boroa ou rabo de peixe frito, que guardava numa sacola esfiampada a tiracolo, ou alguma moedinha de tostão que ia juntando no único bolso que não estaria roto, para poder pagar o copito de zurrapa que lhe aviariam na loja do Sr. Boanerges, antes de ele abalar em direção à Antes. E partia sozinho, devido à deserção dos músicos, cansados com uma performance de uma tarde inteira pelas ruas tortuosas de Aguim, mas sobretudo porque não conseguíamos manter a fantasia por tanto tempo como ele. E agora, afinado consigo mesmo, conduzindo a sua orquestra imaginária, ouvíamo-lo desaparecendo num sfumato lento pela ladeira do Barreiro abaixo.
Quem se lembra do Armando da Antes?
Sempre imaginei que o Armando da Antes era feliz comparando a exuberância da sua figura com o ar de néscia bonomia do Abílio, um ar de tímido contentamento de menino pobre que crescera demasiado. Ele alimentava, apesar disso, uma fantasia aparentemente mais compensadora. Ele fantasiava um namoro promíscuo com todas as mulheres de Aguim. Ao Abílio não lhe bastava a côdea e o rabo de peixe, - E a pinguita e a pinguita? No final da esmola e depois de atualizar as notícias e os mexericos com que pagava o que lhe davam, perguntava sempre à dona-de-casa: - Quando é? Quando é? E elas numa ternura tolerante respondiam sempre: - É quando tu quiseres Abílio. E ele: - Quinta-feira, quinta-feira!
O Abílio tinha um encontro marcado com todas as mulheres de Aguim para quinta-feira. Uma quinta-feira imaginária e inatingível, o que, pelo menos, lhe garantia uma fantasia interminável.
Na rua, caminhava meio trôpego gritando de vez em quando: - Inda no bieram! Nunca soubemos quem tardava ao encontro, quem sabe, talvez fossem as noivas da sua fantasia.
Às vezes ganhava uma roupa nova, que ele transformava imediatamente em roupa de mendigo, mal a colocava em cima. - Cais das calças a baixo! Cais das calças a baixo! Só as crianças o incomodavam. E ele a atirar-lhes pedras, porque era criança também; só que crescera demais. Talvez as crianças vissem nele o perigo de nunca se deixar de ser criança.
- Inda no bieram! Dizia ele, nunca se soube porquê. Um dia eles bieram mesmo! Eles vieram e levaram o Abílio para onde não houvesse necessidade de mendigar nos últimos anos de vida, para onde não houvesse crianças com medo de ficarem crianças para sempre.
Ouvi dizer que não transformava o pijama em roupa de mendigo. Ouvi dizer que já não dizia - Inda no bieram! Ouvi dizer que perdera até o ar de tímido contentamento.
Nunca mais trouxe os últimos mexericos da semana, nunca mais: - Quando é, quando é? Nunca mais: - Quinta-feira, quinta-feira!
Quem se lembra do Abílio?
Até hoje, em Aguim, deixaram de batizar as crianças com esse nome, um nome estigmatizado para sempre, apesar de já ninguém saber porquê.
Uma vez vi o Armando da Antes e o Abílio juntos. Duas fantasias diferentes e aparentemente incompatíveis interagindo.
A tarde era de Outono, numa altura em que as cores e os cheiros predominantes em Aguim transmitiam uma calma de fim de jornada, como se algo turbulento e cansativo tivesse finalmente serenado e todas as coisas se preparassem para um descanso prolongado.
Sentados no rebate da porta da capelinha de S. José.
Não fossem as roupas de mendigo, os pés descalços e as calças invariavelmente curtas para a perna, e pareceriam dois homens de negócios parlamentando com civilidade.
Gestos assertivos, rostos circunspectos, posturas comedidas.
Que mundo de ilusão assim se realiza, que universo íntimo e intransitivo existe na mente de um homem, que se abre e descodifica mal depara com o afeto fraternal de um ser com a sua conformação?
Dois seres proscritos pelos que julgam entender muito mais do mundo e julgam estar muito mais perto da realidade, unidos na sua marginalidade.
Afinal é sempre tão pequena a diferença entre todos nós que parece impossível não nos entendermos tão bem como o Abílio e o Armando da Antes, ao menos quando ficamos a sós com os nossos problemas comuns. Mas seria preciso abandonarmos as demenciais fantasias de poder e de domínio, de ostentação e de autoapologia.
Sentemo-nos no rebate de uma capelinha num dia em que as cores e os cheiros do Outono pareçam convidar a um repouso prolongado, condenemos à permanência no mundo das verdades adquiridas aqueles que se gabam de nos expulsar dele, e os instrumentos que tocarmos não serão jamais troços de couve nem empas de vinha e não seguiremos nenhum lunático, mas o mais competente regente de orquestra.
Ou, suprema felicidade, que os instrumentos continuem a ser esses, mas que um dia olhemos para trás e sejamos nós mesmos a corrigir apenas com o olhar reprovador o músico desalinhado da formação em parada da nossa grande filarmónica. E que seja essa a única ascendência sobre os outros a que tenhamos direito.


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Psicoterapia

Boa tarde senhor doutor! Dá-me licença? Obrigado!
Estou bem. Pelo menos, quando mal, sempre assim. Há um ano que andamos nisto, e eu é que gostaria de saber se estou bem. Eu sei como me sinto, mas queria saber a sua opinião.
Eu venho aqui, falo, falo, o senhor doutor vai acenando com a cabeça, escreve umas coisas nesses papéis e no fim vou para casa e volta tudo ao mesmo. Às vezes parece que estive aqui a confessar-me; até fico admirado por não me receitar uns pai-nossos e umas ave-marias.
Mas quando chego a casa a Zulmira olha para mim e diz “Atão como correu?”, como se eu viesse de um exame de condução, e eu olho para ela a perguntar a mim mesmo porque é que ainda não me pediu o divórcio. Aquela mulher ama-me, ou há muito que não estaria comigo, e eu vivo com ela por preguiça. Não é bem preguiça, é uma coisa difícil de explicar; tenho medo de precisar de fazer uma pergunta e não ter ninguém para me responder ou de querer explicar alguma coisa a alguém para eu próprio acreditar no que digo e descobrir que sou a única pessoa no mundo.
Arranjamos companhia, casamo-nos, vivemos juntos; tudo para arranjar uma testemunha para as nossas vidas. Sem uma testemunha como poderemos provar que vivemos? Não sou feliz com a Zulmira, mas ser infeliz sem companhia ainda seria pior. Preciso dela, mas preciso dela como preciso dos sonhos. Preciso que a sua presença aconteça para que os meus dias sejam mais do que uma noite escura.
Preciso de olhá-la, a ver se todo o amor que senti por ela ainda existe em mim; dado que o amor, uma vez sentido, já não pode arrepiar caminho. Mas amar é um verbo que ao ser conjugado no pretérito se anula no presente. Porém devo ter guardado em mim muito amor por ela, embora não o sinta, porque tenho consciência dele fazendo peso na alma.
Quando olho para ela sou feliz por um instante, porque sinto que o mundo não é completamente desabitado. Ela sai-me da frente e o mundo torna-se uma coisa pesada que tenho que levar sobre os ombros. E pesa-me mais a cada dia que passa.
E às vezes vem-me de repente esta vontade de sair à rua para me vingar de um mal que me fizeram, sem saber já quem é o culpado, de ir caminhando por entre as gentes como uma bomba-relógio, mas com o relógio noutro fuso horário qualquer para nunca saber se o fim está próximo e poder gozar da surpresa. Ir caminhando como um grito em todas as modelações do som. Eu, um grito. Todas as células do meu corpo numa histeria de som que as pessoas não ouvem porque são surdas à voz da consciência. Um grito que vai crescendo e um dia rebenta. Não para fazer mal aos outros, mas para me vingar da felicidade que me é estranha, para acabar de vez com a felicidade, que é a causa de toda a minha desilusão.
Um kamikaze mental, é o que eu sou, senhor doutor. Escreva aí no seu relatório: “sofre da síndrome do kamikaze” e receite-me dois pai-nossos para depois das refeições.
Já me lembrei de ir a Fátima a pé, mas não para pedir um milagre à Virgem, não; era só para sentir a esperança das pessoas que pagam a felicidade caminhando. Eu daria a volta ao mundo por um momento de esperança; nem precisava de ser feliz, apenas queria poder olhar a Zulmira como da primeira vez que fizemos amor. Eu a tirar-lhe a alça do vestido e o fio da alça a descer pelo ombro e o ombro a ficar nu, só porque aquele fiozinho lhe passava por cima. Tudo por causa da maneira como eu olhava para ela. Agora ela deita-se a meu lado sem roupa nenhuma mas não fica nua. Imagino que fique nua quando se despe para o amante e que a nudez comece ainda quando ela está vestida e alisa o vestido sobre a coxa, só para sentir a coxa por baixo do vestido. Sim, senhor doutor, a Zulmira tem um amante; não é bem um amante, é um parceiro sexual. Sei isso porque ela ainda traz um bocadinho da nudez quando regressa a casa.
Claro que não me importo! Ela dá-lhe o prazer que não me pode dar a mim e recebe um olhar que a vê nua, e não apenas despida, um olhar que se surpreende quando a calcinha já caiu e a marca do elástico desenha a fronteira do pudor a descoberto. Ia a Fátima a pé para voltar a ver essa marca da candura exposta, e não apenas um vergão do elástico.
O meu maior mal, senhor doutor, é ter vivido a crueldade sem pudor nem escrúpulos, é ter convivido com a nudez dos corpos para além da própria pele, e agora não consigo recuperar a inocência de um olhar superficial.
Não me estou a fazer de vítima, não; eu sou realmente uma vítima. Combati, sim, mas os soldados são as primeiras vítimas das guerras onde, quase sempre, são obrigados a combater; e são as últimas, porque quando a guerra acaba eles carregam-na consigo até ao fim das suas vidas.
Como se faz marcha atrás nesta viagem, senhor doutror? Isso é o que eu preciso de saber. Eu sofro de ter memória, é essa a minha doença; não consigo viver apenas no momento atual, todo o filme da minha vida está presente a toda a hora. O radiotelegrafista morre todos os dias à minha frente, o corpo a estrebuchar, lutando pela vida, e depois de um último estremecimento, a descontrair completamente com um suspiro de alívio por deixar esta vida, e por fim o rosto a perder lentamente todo o medo, toda a cólera e toda a culpa, até ficar completamente inocente. A candura da morte.
Se não há nada que me possa fazer para me tirar isto do filme da minha vida, que faço eu aqui?
Quando digo estas coisas à Zulmira, ela fica incomodada; ao menos ela chateia-se comigo. “Oh home bota outras coisas na cabeça.” E eu tentando ver se ainda havia mistério por baixo da saia dela. Dantes, ela cruzava as pernas e eu ficava com o sangue a ferver, os dedos inquietos. Agora não há mistério nenhum.
E quando aparecia de repente sem eu contar e toda a sala se iluminava? Eu não a amava como se ama uma mulher, eu sentia numa epifania com o milagre da sua presença. Mas isso perdeu-se. Ou antes, o espaço que havia em mim, em que se encaixava tudo isso, já não existe, está cheio do lixo da memória que eu não consigo deitar fora. Eu conheci a morte, senhor doutor, não a morte como fatalidade, mas a morte como propósito. Mas não julgue que é por fraqueza que sofro com isso, não, voltaria a pegar numa arma se tivesse uma boa causa para isso, mas era preciso voltar a ser inocente e ignorante e sobretudo crente, e eu perdi essas virtudes; hoje sei demais para pegar de novo numa arma. A cada tiro que se dá vai um bocado da nossa inocência com a bala, e não volta mais, e depois, quando olhamos para uma mulher despida vemos apenas um corpo, uma anatomia, e não uma vertigem, um milagre da Natureza. O que eu preciso, senhor doutor, não é de estar aqui a confessar-me, o que eu preciso é que me façam desaprender a guerra, que me restituam a ignorância, que me devolvam o erotismo de um ombro de mulher, quando a alça do vestido ao descer transforma o seu corpo ainda vestido na mais provocante nudez. É por isso que a certas horas do dia me sinto uma bomba-relógio, um kamikaze, um grito, um peregrino da desesperança caminhando entre multidões ainda atónitas com os milagres do mundo.
E depois dizem-me que a guerra que se trava dentro do meu ser não é a mesma guerra onde combati, como se a guerra fosse apenas uma troca de tiros e não uma doença sem cura, um cancro, um canibalismo da memória que nos vai consumindo sem piedade.
O quê, já terminou a consulta? Parece que estive a falar apenas dois minutos.
E então, senhor doutor, acha que estou melhor?


Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódiosaqui.