15.2.06

Um Sorriso de Mulher



Sobre mim um rosto de mulher mansamente sorridente olha-me com ar profissional, como se olha uma peça de lombo de porco num talho, para avaliar o seu estado de frescura. Eu estou estranhamente calmo, deve ser do que o enfermeiro Costa me mandou prá veia. Ela, que veste uma t‑shirt branca em vez da parte de cima da farda, sente-me o pulso e verifica a válvula do saco de soro, mais como se seguisse um ritual do que se acudisse a uma necessidade. Haverei de vê-la, um dia numa bicha para o cinema em Lisboa pôr um marinheiro K.O., que lhe apalpou as coxas. Chutou os sapatos de salto alto, um para cada lado, arregaçou a saia travada até cima, rodopiando sobre si mesma e partiu-lhe a cana do nariz com um calcanhar. E tudo com aquele ar mansamente sorridente.
Agora, olhando-a a repartir a sua serena atenção pelo meu pulso, pelo saco do soro, e pelo que resta da minha perna esquerda – entrapada numa ligadura mal amanhada a sair por entre as tiras do camuflado, que parecem ter sido rasgadas criteriosamente para terem a mesma largura – ninguém diria que seria capaz de partir o nariz a um marujo.
Equilibra-se fazendo um bailado acrobático, à medida que o helicóptero progride, ora adornando para um lado e para o outro, ora dando solavancos que fazem estalar a maca debaixo de mim. O helicóptero tem as portas abertas e ela não parece temer ser lançada borda fora. Dança, dando pequenos passos, flectindo as pernas, passando uma por cima de mim, para o outro lado da maca, sem quase nunca precisar de se apoiar nas mãos, entretidas na sua função de auscultação, palpação e regulação. Por vezes dá pequenos piparotes com o indicador no tubo do soro, alivia o garrote que me aperta a coxa ou pousa a palma suavemente sobre a minha testa.
Baixa-se para me gritar ao ouvido, tentando sobrepor-se à percussão do motor e ao silvo da turbina do helicóptero:
− Tudo bem?
− Tenho frio!
− É normal!
E o cheiro a suor de mulher fica um pouco a pairar à minha volta.
O piloto bate no separador que divide o seu cubículo do resto do habitáculo e fecha violentamente a mão direita sobre o pulso da mão esquerda. Um sinal para que ela se segure. Só agora percebo os pequenos estalidos na fuselagem do Alouette III − estamos a ser alvejados. O piloto faz o aparelho adornar completamente, mergulhando para o lado esquerdo, e eu vejo a selva ao fundo debaixo de mim. Uma bota apenas, como um ponto de mira, a meio da porta aberta, a apontar o perigo lá em baixo e o calmo sorriso da enfermeira, agora deitada a meu lado, no chão do habitáculo, com um braço estendido para o saco do soro, passando-me por cima, e o cheiro a mulher que traz um pouco de humanidade ao que resta de mim. As feromonas femininas a inundar o macho ferido e a trazê-lo de volta para a vida. Pode ter sido do que o Costa me injectou na veia, mas não tenho nem medo nem pressa.
Nem os impactos dos projécteis das Kalashs no helicóptero me assustam. Aquele sorriso impávido e profissional da enfermeira e a sua atenção mais ao acto médico do que a mim, inspira‑me uma segurança quase total.
Se me dissessem agora que aquela enfermeira haveria um dia de ser decapitada pela hélice de uma DO, durante uma evacuação, eu converter-me-ia a uma religião qualquer, só para pedir a Deus que a poupasse.
Aquele sorriso quase esfíngico, quase angélico, quase humano, quase feminino; a um palmo do meu rosto, a encobrir o medo – porque decerto ela se sente, modestamente, com menos direito a ele do que eu, dedicada à sua missão de salvar, a única missão nobre que há numa guerra. Aquele sorriso profissional, que inspira confiança sem violar os limites pudicos da intimidade; aquele sorriso camarada, sem o humilhante paternalismo da piedade, fez renascer em mim o amor-próprio, gerando um profundo sentimento de gratidão.
Por isso, quando recebi a notícia da sua morte tive a cobardia dos ateus perante a impotência, face à finitude absurda da vida, e dei por mim a pedir a Deus que fosse mentira, que não passasse de uma das muitas mentiras da guerra.
Lentamente, com o tempo, a sua imagem desvaneceu-se, o cheiro bom das suas feromonas esfumou-se e o seu sorriso, que ministrava como um lenitivo, apenas na dose certa, feneceu devagar na minha memória.
Quando à minha frente, largando sangue, como se uma fita vermelha lhe saísse pelo nariz, um marujo com ar de rufia se levanta a medo do chão, encarando aquele vulto feminino descalço à frente dele, de saia arregaçada até às calcinhas, com aquele ar de Gioconda, sereno, quase terno, de quem se sente na maternal obrigação de cuidar dos desvalidos, a ponto de parecer ouvi-la dizer: “Tudo bem?... É normal!”; não contive as duas grossas gotas de água que inundaram os meus olhos, e toda a estrutura racional que sustenta as minhas convicções de ateu abalou de alto abaixo. Quase caí de joelhos para agradecer a Deus o que não passara de um equívoco, com todo o egoísmo dos crentes que rejubilam com o milagre que poupou os seus entes queridos, mesmo que fatalmente, o mesmo deus tenha levado outros no seu lugar.
Acho que foi aí que se operou em mim a mais gigantesca transformação metafísica de toda a minha vida.
Entre acreditar que Deus não existe e não acreditar que Deus existe há mais que um simples trocadilho, há a memória desse cândido sorriso de Gioconda a lembrar-me quão insignificantes somos nós perante os grandes conflitos da existência.
A minha falta de fé deixou de ter a arrogância dos que apenas possuem certezas, sejam crentes ou ateus, para passar a ser a simples e modesta assunção da incapacidade de conter dentro de mim, este ser exíguo e perecível, o conceito absoluto e sempiterno de Deus.
Estarei condenado a ser um limitado descrente onde não cabe a transcendência divina, mas não nego que todo o meu ser se deslumbra com a sua beleza, enquanto entidade poética.

In "Cacimbo - A vida por um fio"