26.2.10

Orgulho-me do Medo

Orgulho-me do medo
Às vezes de manhã
o cacimbo aumentava a raiva
e o dedo pelo mapa
deixava um risco invisível
a caminho da morte
Os olhos inocentes dos soldados
a perguntarem à medida
que a inteligência acordava
Porque lutamos
se ninguém o merece

Hoje somos manchas
numa foto encardida
pelo ranço do tempo
mas ainda se vê o medo
no olhar inteligente dos soldados


(c) Manuel Guinato

12.2.10

O Problema


Foto cedida por http://mocambique1.blogs.sapo.pt/

De onde me vêm estes pensamentos? Acho que nascem numa parte de mim que eu não conheço, quem sabe, talvez venham da parte detrás da alma.
Gosto de falar e caminhar ao mesmo tempo. Aqui no jardim do hospital só as árvores me ouvem. Eu também aprendi a ouvir as árvores em África. Nós em silêncio, como se estivéssemos a roubar alguma coisa, e as árvores sussurrando à nossa volta.
A gente olha, e elas népia, calam-se logo. Elas falam entre si com murmúrios de vento, por isso são livres.
Que eu conheço homens que correm, correm, mas as suas palavras nunca saem do mesmo sítio, já as árvores sabem muito bem que se as palavras não forem livres como o vento, seremos sempre escravos.
Mas é preciso fingir que não as ouvimos para não as melindrarmos, porque as árvores são como eu, gostam de falar mas não gostam de intrometidos. É por isso que gosto de vir caminhar para aqui entre elas.
Só não gosto dos canteiros de flores. A Etelvina tem muitas flores e eu digo-lhe:
– Não tens dó de teres as flores enjauladas como animais num curral?
E ela:
– Ó Zé!
Apetece-me soltá-las para elas se espalharem pelos campos fora. Cultivar flores em canteiros, todas alinhadas como soldados num pelotão, devia ser proibido. E ainda dizem que já acabou a escravatura.
Às vezes na parada eu fingia que me enganava e ia para a esquerda quando o furriel dizia "direita volver". Não há nada mais cómico que trinta gajos, todos para um lado e eu sozinho para o outro. Era o único momento em que eu não me sentia escravo.
E também, às vezes à noite, quando toda a gente dormia e as árvores me chamavam em segredo.
As árvores são boa companhia, partilham a liberdade connosco, mas sabem ocupar o seu lugar. A minha filha parecia entender isto quando era pequenina:
– Ó pai, as árvores nunca saem do mesmo lugar?
E eu:
– Não, minha filha, mas são livres porque falam com a voz do vento.
Hoje telefonou-me.
Eu disse-lhe que estava bem e a voz dela ficou presa numa palavra que parecia não querer sair. Pareceu-me que ia dizer pai, e fiquei à espera, porque há muito que não me chama pai. Uma palavra tão pequena e que fica sempre entalada. A Etelvina dantes ainda falava qualquer coisa, mas agora, quando lhe pergunto se se lembra de termos sido felizes, só diz:
– Ó Zé!
E depois cala-se também.
Fazemos longos telefonemas de silêncio. Mas dá-me a ideia que alguém chora por detrás do silêncio.
O que foi que nos sucedeu, que quando recordamos o carinho nos esquecemos das palavras?
Ao menos as árvores nunca se calam. Bem, só ao fim da tarde, quando os pardais lhes cobrem os dedos e elas se vestem de sombras para dormirem. A essa hora fico muito sozinho aqui no parque.
E quando fico muito sozinho recordo-me de quando a minha filha me procurava para eu lhe ensinar a resolver os problemas da escola. São os últimos momentos de ternura de que me lembro.
Quando eu lhe ajudava a resolver os problemas os olhos dela enchiam-se de orgulho de mim. Depois os problemas tornaram-se muito difíceis para mim e ela aprendeu a resolvê-los sozinha, foi quando os olhos dela começaram a ficar parecidos com os da mãe.
Uma ocasião, vi um problema difícil num jornal e lembrei-me de lhe pedir ajuda a ela.
E ela:
– Ó pai!
Tal qual como a mãe diz:
– Ó Zé!
Ela não tarda nada é professora, deve-lhe ser fácil resolver problemas. Ainda guardo a folha do jornal.
Se ela vier visitar-me peço-lhe novamente. Se ela disser "Ó pai" como dizia quando me pedia ajuda, eu insisto, se for no tom em que a mãe diz "Ó Zé", eu calo-me.
A vida não faz sentido quando temos um problema para resolver e ninguém se preocupa com isso. Ao menos as árvores falam entre si.
É verdade que ontem o capelão veio falar comigo para me ajudar a resolver o problema do jornal, mas eu tive que lhe explicar que nem todas as soluções servem. Que ao ouvir a solução nós temos que sentir os olhos a encherem-se de orgulho como se recebêssemos uma prenda, senão sentimo-nos humilhados como se nos dessem uma esmola.
Gosto do capelão, porque quer ajudar toda a gente, mas tenho pena dele porque não lhe prestam muita atenção. Ele devia aprender com as árvores a não ser intrometido.
– Tem alguma coisa que o incomode, senhor Sousa?
Ora, claro que tenho muita coisa que me incomoda, a começar pela escravidão das flores, como soldados a fazerem ordem unida, todos à uma. Mas ninguém pode resolver isto, isto é uma coisa que me começou na tropa, quando eu tinha que marcar passo.
– Deus pode resolver todos os problemas, senhor Sousa.
Ora, se pode está à espera de quê? Eu, ao menos, se pudesse libertava já as flores.
Em África, onde aprendi a entender as árvores, às vezes dava-me a impressão que um embondeiro chorava em silêncio.
Deixava de o ouvir sussurrar, e apenas o cacimbo escorria pelas folhas. Convenci-me que era devido aos tiros que dávamos. Via-nos sair de madrugada com as armas em punho e chegar pela noite com elas às costas; entretanto da selva chegavam-lhe os ecos da guerra.
Às vezes, sentava-me numa pedra junto ao tronco para o ajudar a chorar.
Se a minha filha vier visitar-me, falo-lhe de novo no problema.
Que eu tenho aqui o jornal.
Se ela é quase professora foi porque a ADFA andou com os papéis e eles lá em cima acabaram por se chegar à frente, pois dantes só diziam:
– Não há nexo de causalidade. Não há nexo de causalidade.
Que é como quem diz: "Você já nasceu cacimbado" – e a Etelvina só rezas e penitências – mas por fim lá concordaram que isto que eu tenho começou na tropa.
Que se não fosse pela minha filha eu estava-me borrifando – sempre é uma ajuda – mas agora é quase professora e hei-de convencê-la a resolver-me este problema. Não há-de ser o capelão.
A esta hora, quando as árvores contam pardais pelos dedos e se vestem de sombras para dormir, sinto-me muito só neste parque.
Às vezes queria ser capaz de chorar serenamente como um embondeiro onde se tenha calado a voz do vento.
O cacimbo a escorrer-me pelas folhas.
Só que na pedra a meu lado ninguém para me ajudar.

5.2.10

Menino Negro

Texto de António Marquês

Sentes nos pézitos
descalços
o chão ardente, o alcatrão
e os homens falsos.
Vês nos olhitos
abertos
os meninos brancos,
espertos,
de cabeleiras ao vento,
e tu, sem um
lamento,
pousas na tua fome.
Vagueias p'la noite
dentro, que te
consome,
e te faz sonhar
que outros
meninos,
brancos, rabinos,
estão a papar
Dormes no
chão
que o homem branco,
que é teu
irmão,
te ofereceu.
Olhas p'rá lua
pois não tens
tecto nem nada
teu.
Ao acordares
hás-de
pensar
que o teu irmão
que anda no mato
te há-de um dia
vir libertar.
Hás-de crescer
e o branco
ver
que é teu irmão
e vir até ti
pedir
perdão.
E nesse dia,
a liberdade,
que é um hino,
há-de ser tua,
negro-menino.

(c) António Marquês

Chipera, Moçambique, 4 de Julho de 1974