12.10.13

A estranheza do regresso a casa

O táxi passa no Largo da Capela e o sino dá as horas. Não sei quantas. As quatro cornetas do relógio elétrico da torre de Aguim esganiçam-se com as ave-marias, e depois berram as horas a que ninguém dá atenção. Acho que as pessoas se habituaram àquele despropósito de decibéis como se habituam a um mau cheiro.
O táxi desce lentamente a rua da Portela com o condutor a esperar pacientemente que as pessoas se afastem. As pessoas em Aguim conversam nas ruas e afastam-se apenas por gentileza quando um carro quer passar, o que parece ser entendido pelo taxista que não dá sinais de indignação ou sequer de impaciência.
Agora me lembro que o taxista me fez uma pergunta há imenso tempo, e respondo meio distraído:
– Sim, isto da perna foi na guerra.
– Foi na Guiné?
É difícil imaginar agora que as pessoas hão-de desaparecer das ruas, que um dia a urbanidade há-de contaminar esta povoação como uma virose e destruir completamente a sua pitoresca ruralidade, e então, por não terem nada que fazer nos campos as pessoas hão-de sair das suas casas para os empregos o mais rapidamente possível, deixando as ruas vazias.
É sempre difícil imaginar que uma coisa a que nos habituámos e que criou a identidade de algo que nos era familiar há-de desaparecer para sempre, para dar lugar a uma outra coisa no mesmo sítio, não porque seja melhor, não porque constitua uma evolução, mas apenas e tão só porque tudo neste mundo parece estar condenado a cumprir a regra mais cruel e estúpida de toda a criação: tudo tem de ter um fim.
Mas agora e aqui, está tudo na mesma, e é isso justamente que me surpreende. O mesmo ritmo, a mesma respiração, a mesma atmosfera, a mesma vida; como se eu não tivesse saído daqui há mais de meia hora.
Cheguei a casa.
Parece que deixei o filme da “Aldeia da Roupa Branca” a meio, que depois assisti à pior parte do "Dia mais Longo", mas que entretanto regressei.
Tudo na mesma em Aguim, e eu muito mais velho. Segundo a teoria da relatividade, deveria ser o contrário.
Deixei o taxista de novo sem resposta…
– Não foi na Guiné, foi em Moçambique.
– Aquilo lá está mau, não está?
A luz sólida traz-me à memória, por contraste, a luz fluida de África. Os objetos aqui mais tangíveis, quase ferindo os olhos, como coisas inorgânicas, áridas, quase feitas só de luz, sem a humidade omnipresente da selva que dá a todas as coisas uma viscosidade animal.
Dá-me a ideia que ainda não penetrei totalmente neste mundo, que ainda não me é possível perceber todos os pormenores. O próprio som no exterior do táxi tem dissonâncias estranhas, como se as vozes das pessoas por quem passamos fossem declamadas com o tom mal colocado, e os ruídos que me chegam aos ouvidos tivessem uma estranheza, um desconserto, a fazerem lembrar uma filarmónica a afinar os instrumentos antes do espetáculo.
Parece que estou num plateau durante a rodagem de um filme, sem pertencer ao elenco. O táxi penetra no cenário, num travelling lento, e os figurantes ignoram-no. Ou antes, passam eles por nós, desfilando de um lado e do outro.
– Aquilo lá está mesmo mau.
– Mas pra si acabou.
Olho a toda a volta tentando prestar atenção a tudo o que me vai envolvendo, tentando apreender os pormenores. As pessoas rindo despreocupadas. Duas mulheres falando em voz alta a uma distância de vinte metros, sem esperar que se aproximem uma da outra, e continuando a falar alto, mesmo quando já estão frente a frente. Um gato sobre um muro. Um cão passando por baixo e o gato enfolando à sua passagem e a esvaziar depois lentamente, à medida que o cão se afasta.
No Sobreirinho, um carro de bois faz com que o taxista pare o táxi. Uma junta de bois babando-se de dolência e extenuação, arrastando uma enorme carrada de estrume. Os bois, à vez, vão largando sobre o alcatrão do Largo do Sobreirinho, à medida que passam por nós, tartes frescas e fumegantes de bosta. O taxista abre o vidro como se se tivesse sentido convidado para fruir o aroma daquele festim escatológico. Eu também abro o meu e sinto o cheiro quente do estrume e depois o aroma fresco da bosta. De janelas abertas, o som do exterior aumenta e torna-se mais natural como se tivéssemos ambos regulado o equalizador de uma aparelhagem sonora.
O carro de bois segue pela rua da Lomba e o táxi faz os últimos 100 metros atrás dele, ao ralenti.
– É verdade… Para mim acabou.
– Você tem saudades disto, não tem?
Algo muda em mim repentinamente. Como quando temos uma dúvida e de repente se nos faz luz; como quando estamos dolentes com a preguiça matinal, sem vontade de abrirmos os olhos, e de repente sentimos a lucidez da vigília; como quando estamos distraídos no meio de uma multidão de estranhos e de repente um rosto familiar sorri para nós. Realizou-se tudo em meu redor como se eu tivesse acordado.
Cheguei a casa.
Parece impossível, agora, que tenha deixado para trás tanta terra, tanto mar, tanta gente, tanta ansiedade, tanta dor. Parece que atravessei um túnel imenso e que acabei agora de sair para a luz do dia. Um passado de que já não faço parte. Uma história que não quer ser contada, uma história que já não sinto a menor vontade de contar.
– Tenho mesmo saudades disto…
Cheguei a casa.

A 50 metros à minha frente, a minha mãe e a Ti Maria do Zé Sécio conversam ao sol.


Versão audio para deficientes visuais (em breve)

A imponderável densidade do ser

Estiquei o aerograma em cima do carregador da G3, e nada. Não há meio de encontrar a frase certa para começar a carta. Sempre tive dificuldade em começar as conversas, tu sabes. Tu a olhares para mim, à espera de eu dizer aquelas coisas que todos os homens sabem dizer na hora certa, e eu sempre à procura da frase ideal para começar a conversa. E nada. Saía um sorriso tosco, e tu ficavas a olhar para mim incomodada.
Eu queria dizer-te alguma coisa que recebesses como uma prenda. Eu queria que as minhas palavras ficassem para sempre na tua memória como um estribilho de uma canção.
Mas alguém chegava, e com duas tretas incendiava o teu olhar, e tu levantavas-te e passavas por mim sem me ver. Tudo tão simples. Tudo tão banal. O amor só complica, Zulmira.
E fiquei a pensar nisto.
Eu tinha escrito: Zulmira, vírgula, e depois não me saiu mais nada. Que se pode dizer à mulher que a gente gosta e que está do outro lado do mundo, quando eu a tive ao pé de mim tanta vez, e não era capaz de falar?
O padre a perguntar: "Aceita Zulmira da Conceição Fernandes para sua esposa, e promete amá-la e respeitá-la na saúde e na doença, todos os dias da sua vida até que a morte vos separe?" Bastaria dizer que sim e pronto, mas eu a pensar na pergunta, porque seria uma coisa para toda a vida. Percebes?
Às vezes as palavras só estorvam. Aqui então, o silêncio diz tudo o que temos para dizer. Andamos uma tarde inteira aos tiros, e no fim, contados os mortos e os feridos, trocamos apenas silêncios uns com os outros.
Uma ocasião, nós todos calados, só os olhos procurando os olhos; e no meio daquele silêncio, um gajo de Nancatari, já não sei quem, para o Capitão Aveiro: "Esta guerra é uma merda, meu Capitão!"
E continuámos calados porque o silêncio une-nos mais que as palavras.
Com o amor é a mesma coisa, Zulmira, quando digo que amo, não amo, digo só. Quando amo, nenhuma palavra me satisfaz. Por isso olho para este aerograma e não sei o que escrever.
No cais de Alcântara, eu no barco a acenar. Eu, o Candeias, o Camões e o Caseiro, e tanta mão a acenar de volta, mas nenhuma para mim. O furriel Caseiro a dizer comovido: "Estai descansados que vamos regressar todos sãos e salvos!" Algumas mãos tinham lenços que faziam lembrar o adeus à virgem em Fátima, e eu nas calmas porque não amava ninguém ali. Percebes?
Nunca soube o que dizer-te, Zulmira. Quando chegava a noite, e os teus olhos pareciam dois poços fundos onde uma pessoa pode cair, eu olhava-te e gostaria tanto de te dizer aquilo que te fizesse levantar e atravessar uma sala cheia de gente para vires para os meus braços, e nada. Ficava só a olhar para ti.
Às vezes no Café, eu estava sentado a um canto e via-te chegar. Via-te, e qualquer coisa se modificava dentro de mim.
Olhavas à tua volta e o teu olhar varria tudo em redor, como o farol da Barra.
Senti o feixe de luz aquecer-me o rosto, como um sopro quente, depois continuei às escuras. Apeteceu-me deixar cair o copo para te chamar a atenção. Que havia de dizer eu a uma mulher que varre o bar de luz e não me vê?
Era urgente dizer alguma coisa, mas não podia precipitar-me, não podia dizer uma coisa qualquer, porque seria uma coisa para toda a vida. E tu a levantares-te e a saíres sorridente, enquanto ele te avaliava pelas costas, rapidamente, porque para ele seria algo só por uma noite. O amor só complica, Zulmira.
Dantes chegava uma carta tua e eu sentia uma dorzinha boa na barriga. Agora, parece que a dor subiu e aperta-me a garganta.
Há qualquer coisa diferente nas tuas cartas. As palavras são as mesmas, é verdade, mas é como se eu tas ouvisse dizer meia distraída. Sem olhares para mim.
Ainda escrevo no papel amarelado do aerograma: Zulmira, vírgula, mas depois as palavras não vêm, e eu fico a olhar para o aerograma. E o furriel para mim, armado em parvo: "Hás-de arranjar inspiração antes de a guerra acabar!".
E eu guardei o aerograma no bolso do dólmen.
E a foto que tirei pra te mandar… Eu não sou aquele que ficou no papel. Pareço um bandido desterrado de arma na mão. Nunca pareço eu nas fotos que me tiram, mas aqui com este camuflado sujo e com a G3 nas mãos, pareço uma alma penada. Eu olho para o furriel e acho que ele foi sempre assim. Parece que se sente bem no meio desta desgraça. Parece um turista com a arma num ombro e a máquina fotográfica no outro. A gente a fazer o golpe-de-mão, a queimar aquilo tudo, e ele a tirar fotografias. Tudo tão simples, tão banal, percebes Zulmira?
Mas para mim isto é tudo muito complicado, estas coisas vão ficar dentro de nós para toda a vida Zulmira. Isto não é uma guerra, isto é um sacrifício.
Se tudo o que tenho está aí junto a ti, Zulmira, que vim eu aqui fazer?
Eu queria apenas cumprir o meu dever, e ser um bom soldado Zulmira, mas não se pode ser um bom soldado numa guerra de merda.
Sinto tantas saudades tuas! Sinto saudade das tuas coisas sobre a mesa-de-cabeceira, das tuas coisas de mulher colocadas de um outro jeito sobre o tampo da mesa, da tua roupa arrumada de uma outra forma. Nem em cem anos de treino eu seria capaz de colocar as coisas assim.
A forma como penteias o cabelo, como pões a cabeça. Há dias vi uma preta fazer isso e chorei. Porque aquele gesto não me pertencia; e o teu, sendo teu, é um bocadinho meu. É por isso que não consigo escrever estas coisas, porque sei que parecem disparates. O furriel diz que é poesia, a mangar comigo.
Aqui só há coisas de homens. Mesmo uma escova ou um pente nas nossas mãos são apenas ferramentas. Quando as colocamos numa mesa elas ficam caídas, nada mais, e parecem logo coisas inúteis. Parecem abandonadas. As tuas não, as tuas continuam a ter alguma coisa de ti. Mesmo a tua colher sobre a toalha da mesa se distingue de todas as outras colheres. Eu sinto falta dessa humanidade que deixas numa simples colher sobre a toalha, mesmo quando já não estás à mesa. Há uma ternura nos teus gestos que faz com que as coisas ganhem intimidade contigo.
Não imagino como seria se pegasses numa G3. Mas deixaria de ser uma arma nas tuas mãos.
E as palavras que me escreves. São palavras limpas. Parece que não poderia dizer-se aquilo de outra maneira. As palavras saem-te e tu escreve-las no papel, depois eu leio-as aqui e sei o que sentiste. Por isso é que agora ao ler as tuas palavras, sei que alguma coisa mudou, porque não consigo adivinhar o que sentiste quando escreveste.
Há dias em que a mágoa embota tudo, como quando se estende um aerograma no carregador da G3, e se escreve: Zulmira, vírgula, mas as palavras importantes não saem.
E o furriel: "Hás-de arranjar inspiração antes de a guerra acabar!".
Tive que deitar aquele aerograma fora por estar todo sujo e amarrotado, e arranjar outro, depois esperei que toda a gente estivesse a dormir, e vim para aqui, junto da luz da entrada da caserna, e as palavras vieram uma a uma. A noite escura, a lua bolachuda, a luz fosca da entrada da caserna, e eu a lembrar-me de ti com os olhos húmidos a tirar-me a roupa como se estivesses a roubar alguma coisa. E em mim, de repente um calor, uma espécie de raiva, uma vontade louca de te castigar. Eu a lembrar-me de te ter possuído como um varrasco com cio, e as palavras a chegarem, vindas não sei de onde.

Não do sítio de onde me vem o amor por ti, Zulmira, que o amor só complica.

O Ser e a coisa

[...]

Só depois soube que já não vinhas. Se tivesses vindo, ter-nos-íamos sentado certamente àquela mesa para nos olharmos e dizermos coisas que nada tivessem a ver com o nosso encontro nesta casa abandonada há muito, para permitir que o desejo nos surpreendesse, e surpreendendo, nos tornasse inocentes.
O desejo diminui a culpa. Esta solidão aumenta-a.
O peso das chaves desta casa no meu bolso, como o peso de um objecto roubado.
E também o peso da traição; que a traição não precisa de corpo para pesar, nem precisa de ser consumada, basta ter sido tentada. Mas se tivesses vindo, a traição teria pelo menos a compensação do prazer, e não seria um espaço vazio como aquele pires, como aquela cadeira, como esta casa toda, abandonada por se ter tornado insuportável a solidão. Mas já não vens, e o agouro da traição aumenta, porque a culpa sem a tua cumplicidade me atormenta só a mim.