23.11.18

A história desconhecida do meu pé esquerdo

Esqueci-me do meu pé esquerdo. Sei que era como o direito mas ao contrário. Não me lembro muito bem, mas acho que não era um pé muito especial, porque para além de andar e correr não me servia de mais grande coisa. Bem vistas as coisas, para o futebol eu tinha até dois pés esquerdos, era, por assim dizer, ambissinistro. Mas dava-me muito jeito para nadar. O meu amigo Vasco acompanhava-me de barbatanas na dobragem do paredão Sul da barra de Aveiro e ria-se do meu estilo pouco ortodoxo, um misto de crawl e bruços, mas não me levava vantagem por muito tempo.
Na verdade, só me esqueci da imagem do meu pé esquerdo – se teria um sinal particular, ou alguma cicatriz que o tornasse especial – pois sinto-o agora melhor do que quando o podia ver. Chame-se “sensação do membro presente” esta sensação de ter um pé… que está ausente. É diferente da “dor fantasma” porque simplesmente não dói, e faz com que o ProFlex Foot XC fabricado na Islândia pareça mais real. Este cérebro humano acha estranho que dali não venha nenhum sinal de vida e aumenta a sua própria sensibilidade para ver o que acontece. E o que acontece é que se sente um pé onde apenas está uma engenhoca de duralumínio, titânio e fibra de carbono.
Para um espírito otimista, alguma coisa de bom haveria de ter um pé de metal, mas eu ainda não descobri nenhuma, mesmo quando o cão de um vizinho me tentou ferrar. Eu ofereci-lhe a prótese, mas o faro do bicho tramou-me.
No dia de Páscoa de 1972 tiraram-me uma fotografia em Mueda, onde ele aparece pela última vez, muito sossegado ao lado do seu irmão direito. Alguns meses depois pisou o chão de África pela última vez, despedindo-se deste mundo com muito estrondo, tanto quanto seria possível com o quarto de quilo de trotil de uma mina antipessoal, tendo acabado aí a sua missão de me transportar a meias com o seu irmão simétrico.
Para ser justo, não poderei subestimar as suas qualidades, tanto mais que as várias tentativas para o substituir condignamente falharam redondamente, a começar pelo trambolho tosco e mal-amanhado que rematava a perna de pau desequilibrada e rudimentar com que os nossos parceiros alemães da NATO queriam que eu voltasse a caminhar. Vim da Alemanha com um objeto de tortura medieval que deve ter chegado para espiar os meus mais escabrosos pecados. Tanto os já cometidos como os que eu venha a cometer até ao dia do juízo final.
Os meus netos parecem achar interessante que o avô se pareça com o cyborg dos seus jogos de vídeo quando anda de calções, e pensam que deve ter sido um ato de guerra heroico que esteve na origem da minha amputação. Aqui nasceu uma dificuldade didática, porque na verdade eu dei o que dão os heróis quando combati na guerra colonial, só que uma guerra é talvez o lugar menos provável para se praticar atos heroicos, e numa guerra criminosa como esta, se não tivermos muito cuidado arriscamo-nos até a cometer crimes.
Como se explica a uma criança da geração do Google que isso foi possível apenas por desinformação? E que o país onde a chateiam para aprender imensas coisas, é o mesmo país onde um dia a ignorância era obrigatória, onde as escolas tinham um livro único e os jornais um lápis azul para os ignorantes riscarem as coisas ditas por pessoas inteligentes.
É tão difícil explicar uma coisa estúpida a uma criança inteligente como uma coisa inteligente a um adulto estúpido.
Antes de eu partir para a guerra a minha mãe parece que fez um contrato com a Nossa Senhora de Fátima para garantir que eu vinha de lá são e salvo, cujo compromisso da sua parte era ir a pé de Aguim até à Cova da Iria todos os anos. Nunca percebi o que ganhava a santa com aquilo, mas desconfiei sempre que se tratava de uma tara originada pela vida sensaborona de uma virgindade eterna. Além disso, pareceu-me que tendo vindo eu sem um pé, a minha mãe não deveria pagar a promessa por inteiro, mas não consegui convencê-la a ir a pé, digamos, até Coimbra apenas.
Um dia, no verão de 1965, na praia da Costa Nova, a Marisa sentou-se mesmo em cima do meu pé esquerdo. Com o peso da Marisa o meu pé esquerdo enterrou-se na areia e ela esteve bem meia hora naquela posição sem dar por nada. Passado um quarto de hora sem me mexer, para sentir todas as delícias da região sagrada da anatomia da Marisa, o meu pé esquerdo ficou dormente, depois acabou por ficar totalmente insensível. Foi a primeira vez que o meu pé esquerdo sofreu uma amputação, ainda que virtual, mas aquele primeiro quarto de hora teve os melhores 15 minutos que o meu pé esquerdo viveu.
No inverno de 1971, na casa de banho comunitária do quartel das Caldas da Rainha, o meu pé esquerdo, e apenas o meu pé esquerdo, desenvolveu uma infeção fúngica. O Capitão médico do quartel, num relance, garantiu com ar categórico - É pé de atleta! Soou-me, assim de repente, mais a uma distinção desportiva do que a um diagnóstico médico. O pior é que durante o resto da minha vida de militar vi-me obrigado a introduzir um gesto extra em todos os exercícios físicos: coçar o pé de atleta.
Esse martírio só terminou na picada do Chindorilho, na província de Cabo Delgado da colónia de Moçambique, exatamente às 14 horas e 12 minutos do dia 4 de Junho de 1972. Nem o antifúngico do capitão médico, nem as pomadas de todos os enfermeiros do meu batalhão resolveram o problema, só a mina antipessoal da FRELIMO lhe pôs fim.
Este desfecho fatal aconteceu ao meu pé esquerdo porque eu acreditei que era um dever humanitário ir matar terroristas para África e salvar o império. Pelo menos foi assim que eu entendi as coisas.
Sempre que precisam de mandar soldados matar alguém, convém convencê-los que são terroristas; e quando os professores, os livros e a imprensa dizem em coro que são terroristas, a gente acredita, não é verdade? O pior é quando se descobre que os terroristas são demasiado parecidos connosco, ou que estamos a rematar para a baliza errada. Cria-se-nos a confusão mental típica de quem aparece por engano num funeral vestido com uma fantasia de carnaval. Alguém se aproveitou da nossa ignorância, e o pior é que também nos mantiveram ignorantes compulsivamente desde início para melhor se aproveitarem de nós.
Se isto não é abuso moral por parte do Estado é de certo escravatura intelectual. Impediram-me o acesso ao conhecimento para poderem usar a minha ignorância.
Do Estado não exijo muito mais para mim, na reparação material da minha lesão física de guerra, ao contrário de muitos camaradas meus verdadeiramente injustiçados, mas exijo um condigno e honorável pedido de desculpas pela lesão moral, se não a mim pessoalmente, pelo menos, a título póstumo, ao meu pé esquerdo. 

11.8.18

Golpe de mão

Ao abrir os olhos, os rebentos ainda tenros do capim, vistos ao acordar, assim rente ao chão, parecem plantas enormes e o vulto em decúbito do Nunes é uma montanha distante - as manchas do camuflado em cores vegetais e a sujidade de dias ajudam à ilusão.
O planalto dos Macondes acorda sempre em hipotermia, com os suores frios do cacimbo, mas a capacidade humana de habituação permite que estes vinte soldados tenham achado conforto suficiente para dormir toda a noite, e alguns ainda dormem, apesar da humidade e do frio; as fardas com o lustro das gotículas do cacimbo sobre a capa impermeável da sujidade.
Rodo o corpo para ficar de costas e fico a olhar o cinzento ceroso da atmosfera sobre mim, um enorme borrão em vez de céu.
A floresta começa a acordar num torpor de ressaca, as árvores estremunhadas de pássaros inquietos com a luz da manhã, os ramos derreados de preguiça que o ar pesado não sacode, as folhas deslavadas pelos suores do cacimbo matinal e os troncos hirtos entorpecidos pela prostração noturna, ou, afinal, apenas a eterna imobilidade das árvores, como é de sua condição vegetal.
O Nunes acordou numa série de espasmos, como se fosse difícil sacudir o sono. Depois ficou imóvel, também de barriga para cima, a olhar a nódoa gordurosa do céu. Um a um os homens vão despertando a custo, como se dormir ao cacimbo da manhã fosse a coisa mais confortável do mundo, ou não estivesse a guerra à sua espera.
O alferes já está sentado, consultando o mapa. Faz sinal a alguém para se aproximar. Agora estão dois vultos esbatidos pela nódoa translúcida do cacimbo a consultarem o mapa.
As silhuetas dos soldados de cócoras, arrumando os seus parcos utensílios, parecem sacos de lixo abandonados na manhã embaciada.
Como se obedecessem a um mecanismo coordenador vão agora escoando por uma fila para dentro da mata densa. Olhando de perto, os seus lugares mais secos ficam marcados na humidade do capim derrubado onde dormiram, como se tivessem sido almas do outro mundo que evaporaram. E eram.
Mas não evaporaram. Uma longa fila de almas do outro mundo caminha agora floresta adentro, mas vão com uma missão deveras humana e deste mundo, vão com a missão de matar.
A partir do momento em que um ser humano aceita que a sua missão inclua a forte probabilidade de ter de matar, o valor da vida deixa de ser uma referência suprema para passar a valer como moeda corrente, cuja cotação depende de muitas variáveis. Agora o valor da vida desce a cada metro percorrido pela fila de por aquela fila de combatentes que se embrenha na mata densa do planalto dos Macondes.
Olhando a muralha vegetal da floresta a limitar a clareira de onde se escoaram os elementos da 3503, parecia impossível que alguém em seu perfeito juízo decidisse escolher justamente esse lugar para enfiar vinte soldados, e que estes aceitassem fazê-lo com o mesmo à-vontade com que dariam um passeio num jardim público.
Mas os estrategas militares não são caraterizados por escolherem as soluções mais simples, e os soldados não são reconhecidos por questionarem as ordens que recebem. Basta convencê-los de que a sua missão letal é moralmente justificável e que o sangue que lhes suja as mãos é o preço mínimo a pagar por uma causa maior. Não raras vezes vêm a descobrir mais tarde que foram vítimas de abuso moral; de exploração da sua genuína voluntariedade e coragem e de profanação do seu verdadeiro espírito de sacrifício.
O farfalho vegetal da floresta virgem do planalto dos Macondes deixou-se penetrar pela bicha de pirilau dos soldados do primeiro grupo de combate da CART 3503 numa convulsão orgástica de vários minutos, e depois de envaginar os vinte soldados, sossegou complacente e reconfortada.
Quem quisesse assegurar uma esperança de vida de pelo menos mais um dia, não deveria passar daqui, mas os homens da CART 3503 já aprenderam há muito a viver com uma curta esperança de vida.
O cacimbo aliviou e o sol apressa-se a evaporar a humidade residual, mas uma ténue neblina, como um hálito de fauce de predador abocanhando a presa, envolve a coluna de combatentes.
Na clareira tudo regressou à normalidade após a saída da 3503, o próprio capim tombado à sua passagem reergueu-se um pouco, penteado pela brisa já quente.
Daqui não se adivinha o que se passa com aquele grupo de combate, uma simples coluna apeada de militares, as armas abraçadas junto ao corpo e a enorme corcunda das mochilas a transfigurarem os seus corpos. Uma fila silenciosa e sinistra de vultos que caminham curvados para se protegerem da fustigação do capim. De certo modo, simples na aparência, uma lagarta coleando no capinzal, mas deveras complicada na realidade, se conhecermos toda a azáfama interior na cabeça de um soldado caminhando em direção ao local onde se definirá a cotação do dia para a vida.
Desapareceu o último combatente, o camuflado a confundir-se cada vez mais com a vegetação, até se tornar invisível. Ficou a imagem caótica da floresta eterna e a sinfonia polifónica dos animais, eles também invisíveis no meio da folhagem.
Os animais da floresta nunca permitem um momento de silêncio. Uma tal quantidade de sons de todas as intensidades e frequências, que se misturam de tal forma, que não é possível a identificação de nenhum. Para contrariar isto um enorme inseto voa perto, fazendo lembrar o som de um motor, mas logo mergulha na polifonia circundante desaparecendo, como desaparece a voz de uma pessoa ao misturar-se numa multidão em alvoroço.
Cria uma certa serenidade este tumulto. A variedade de sons funciona como um lenitivo sonoro, como acontece com o “ruído branco”, composto pela mistura de todas as frequências audíveis.
O ar apenas povoado pela miríade de vozes dos animais da floresta é subitamente estremecido pelos estampidos secos de uma vintena de G3, entrecortados pelos estalidos metálicos de algumas Kalashs, a que se sobrepõem os rugidos cavos de uma MG42. Não se ouvem vozes humanas em pânico, não se ouvem  gritos de criança, não se ouve o sopro do fogo que varre o que resistiu às balas; não se ouvem os sons do desespero, do terror e da devastação, porque as vozes das armas que destroem e matam, falam mais alto e calam também as vítimas inocentes. E quando se deixam de ouvir, fica um silêncio aterrador, até os animais emudecem; não é silêncio, é surdez, a surdez total da morte. Para alguns a cotação da vida acabou de atingir o valor zero da escala.
Depois de um intervalo em que a vida se suspendeu, em estado de choque, na floresta do planalto dos Macondes, ouve-se ao longe o padejar de helicópteros a aproximarem-se. São dois, e por isso não vêm transportar os soldados, ou seriam mais, vem evacuar feridos.
Um dos helicópteros desceu e o outro descreve círculos em torno do primeiro, como uma ave de rapina, depois, partiram tossindo e arfando, em direção a Mueda.
O som dos helicópteros já não se ouve, e o som dos animais em crescendo, traz de novo o bulício à floresta.
E a vida prevalece, mesmo onde a morte teve o seu momento de glória. A Natureza parece querer apagar com a sua infinita capacidade de regeneração o tremendo erro na evolução das espécies, que permitiu o aparecimento da crueldade humana.
Sem a pérfida inteligência humana, todos os seres inocentes da floresta retomam o equilíbrio da vida selvagem, regidos apenas pelos instintos. E as árvores, acima de todos, imperturbáveis e monumentais.
A monumentalidade das árvores da floresta africana causa o mesmo efeito em nós que as grandes obras arquitetónicas, sentimo-nos sempre pequenos na sua presença. Mas somos tão insignificantes como perigosos. Não somos deste mundo, viemos aqui só para o destruir.

26.7.18

Canção para Yana



Do romance “Uma história de amor com guerra ao fundo”.

Corpo de bronze, beijo de água , sexo de fogo. Todo o sol de África no teu colo. Morro e ressuscito em ti. Tanto ódio em teu redor e tanto amor à minha espera.
Que faço eu de arma na mão?
Olhar de orvalho pela manhã, quando parto; corpo esbraseado ao sol pela tarde, quando regresso selvagem, torpe e sujo.
Sob a bênção do Cruzeiro do Sul glorificas-me a todos os deuses de todas as Religiões, agora, que todos os demónios me possuem, e ainda assim mantive-me  ignorante. Queria ao menos poder louvar a terra quente que te gerou, mas como eu não sei rezar contemplo-a em puro silêncio, que o meu silêncio é a única coisa pura que resta em mim.
Não tenho perdão, a minha maior culpa é a de tentar sobreviver; os corajosos fogem e os inocentes morrem, e eu caminho desafiando as balas, para que o medo me faça sentir humano.
Mantenho-me acordado à noite para poder sonhar, eu que vivo em pesadelo. A floresta mágica aguarda por que amanheça para me atrair. No seu ventre rumina-se a guerra e eu participo da matança, mas não sei se sou predador ou presa. No fim da digestão a floresta regurgita os sobreviventes e eu venho procurar-te, carregado de culpa, derreado de guerra, coberto de sombras, vestido de nojo. E tu recebes-me sempre. Lavo-me em ti, desentristeço-me, destraumatizo-me e reinocento-me a cada manhã.
Que faço eu de arma na mão?
Que guerra é esta, em que somos inimigos dos homens e amantes das mulheres? Que fizeram os nossos antepassados que nós temos que desfazer? Porque lutamos, se parece não termos objetivo nenhum?
Talvez porque durante gerações e gerações o teu povo sempre tenha sido humilhado pelo meu; talvez porque a humilhação humilha o humilhador; talvez porque à minha reles lascívia tu respondes com a nobreza do teu amor, é que me sinto morrer a cada tiro que dou.
O meu maior crime é saber-me culpado e manter-me criminoso. Dia após dia sinto maior o abismo dos vãos e desvãos do teu corpo e maior a vertigem que me faz mergulhar.
Ávido, quero embebedar-me de ti; faminto, quero cevar-me; adicto quero drogar-me – e a ressaca é ainda mais inebriante que a bebedeira, quando de manhã fico a vigiar o teu corpo extenuado, abandonado ao sono sobre a enxerga, como seara ondulante cansada de se entregar ao vento toda a noite.
Já luz o janelo da palhota. A floresta já acordou estremunhada num breve instante de silêncio — os animais da noite foram dormir e os do dia ainda não despertaram. É a mudança de turno da Natureza, o momento que me traz mais aflição, porque, vá-se lá saber, Deus pode existir e aproveitar este momento de descontração da Natureza para se deixar de brincadeiras e começar a escrever por linhas direitas, e o que será de nós se ele se lembra de fazer justiça?
Deixa-me, Yana, adormecer e acordar dentro de ti. Enquanto estou no teu corpo todas as coisas boas são verdade. Fora de ti a realidade dói, como a luz crua do sol nos olhos. Doce é o luz mansa do teu corpo.
Por um momento só, deixa que eu próprio não dê ouvidos à minha consciência, porque às vezes a verdade é a última coisa que queremos ouvir. Não quero acordar, não quero acordar, deixa-me ser criança mais um pouco, que enquanto durmo sou inocente. E enquanto for inocente posso ser amado por ti sem vergonha.
Fantasmas pairam sobre o aldeamento; espíritos dos teus antepassados ofendidos pela rendição do teu corpo ao domínio canalha dos meus instintos predatórios.
Cevo-me, alarve, em ti; alarvo-me, besta, no teu corpo; bestializo-me, fauno, no teu sexo. E tu, ninfa, e tu deusa, sublimas-te sobre a escória da minha luxúria.
Quanto mais turva a minha corrupção mais alva a tua pureza.
Ó doce, ó cândida, ó inocente, sinto em ti  a pureza  inexplorada da floresta virgem, a calma hipnótica da savana, a miragem  onírica dos desertos. Sinto em ti o ventre desflorado da África, mãe de toda a humanidade, que a Europa toda viola e sangra. E eu o explorador que rumou de regresso às origens como um filho pródigo trazendo com ele a ingratidão, a arrogância e o fracasso das aventuras inúteis.
É à luz mais forte que as sombras são mais escura,  e na doçura do teu afeto é que se gera a maior agrura do meu remorso.
Ah, que pesam sobre mim todos os crimes da expansão marítima. Pesa-me o promontório fálico de Sagres e a água desvirgada pelos descobrimentos, pesam-me as caravelas seminais que espalharam a ganância pelo mundo e toda a ignorância dos exploradores a procurarem em África o ouro que foram encontrar no Brasil.
Ah, que pesam sobre mim quinhentos anos de escravidão. Todas as mulheres violadas e todas as crianças renegadas. E mais do que isso ainda, muito mais, pesa sobre mim tudo o que eu sei e o que eu não sei; e o que eu não sei é mar e vastidão dos desertos, é a rota tenebrosa dos negreiros e as grilhetas dos escravos a sangrar.
Salva me da minha autorepulsa e rejeita-me. Eu vim para odiar e matar e recebi o teu amor em troca, é humilhante ser amado com dignidade. Odeia-me se realmente gostas um pouco de mim. Exorciza-me de ti. Põe fim à minha farsa humana. Salva-me da impunidade.
Que faço eu, meu Deus, de arma na mão?

15.5.18

Saudades de Mueda



São frias as noites em Mueda. São curtas e frias. São húmidas. E tristes.
A manhã chega depressa e traz a guerra. Logo sentiremos os tiros que já não nos assustam, antes nos lembram que estamos vivos. Mas estar vivo num lugar onde o objetivo é matar, não augura nada de bom.
Todos os dias se sofre em Mueda. Todos os dias se sofre e faz sofrer. Morre-se. E mata-se.
Há uma monotonia trágica em Mueda, como se Deus se tivesse esquecido da máquina da guerra a trabalhar enquanto se entretinha com outra coisa. Deus esqueceu-se de Mueda e deixou os homens enlouquecer à vontade; e aqui, a loucura parece ser a maior virtude dos homens.
Todos os dias há alguém que pensa em Deus. Todos os dias há alguém que para desconcertado com a maldade humana e com o alheamento divino, e que depois tem que seguir em frente, invariavelmente na direção em que vai encontrar mais sofrimento e morte, e maior ausência de Deus.
De Mueda sai-se seguindo sempre em frente, só se volta para trás quando se fizer suficiente mal a alguém. Dezenas de soldados, uns atrás dos outros, ordenados, coordenados, alinhados; de helicóptero, de Berliet, ou a pé; sempre sem que Deus pareça interferir na sua determinação de irem em busca da morte.
Tão diferentes, os soldados que saem de Mueda, dos que regressam. Algo no meio da mata misteriosa modifica os soldados, algo lhes tira brilho e cor, lhes assombra o olhar, lhes suja o rosto. Algo os envelhece.
Ver um camarada cair habitua-nos à ideia de que somos perecíveis e a ideia da morte torna-se-nos familiar, não como algo que nos espera adiante, mas como algo que nos acompanha a cada passo que damos. E a cada passo envelhecemos com a ideia da morte.
A coragem às vezes é a única solução. Podemos nunca saber o que é a coragem até não nos restar mais nada para garantir a sobrevivência.
Há quem esteja morto em vida por nunca ter chegado à beira do abismo e nunca ter conhecido o fim do caminho; nunca ter conhecido o rosto de quem caminhou todo o dia à nossa procura para nos matar, porque, na aritmética da guerra um de nós tem que ser subtraído à existência. E estarmos nós à sua espera de arma na mão coloca as coisas em termos simples, em termos fáceis de perceber: somos peças de um jogo.
Mas não podemos fugir de Mueda, porque de Mueda não se vai para lado nenhum, senão em direção à guerra; o mundo acaba aqui. Mueda é uma ilha rodeada de morte por todos os lados.
Há um cheiro de morte em cada cheiro que se nos cola ao corpo. O bedum do óleo e da pólvora queimada da G3, o bafo do escape das Berliets, a catinga da floresta, o nosso ininterrupto odor corporal.
Às vezes tornamo-nos um pouco mais humanos, quando recordamos as coisas que constituíram a vida antes de Mueda. Eu tenho saudade de acordar e sentir logo vontade de correr. Saudade da frescura do café pela manhã, da boroa acabada de cozer, da fragância da relva orvalhada nas manhãs de Inverno . Fazem-me falta os cheiros dos campos, desde a essência doce do pólen até ao fedor bom do estrume.
Agora acordo com a exsudação húmida do cacimbo e adormeço com o hálito metálico da trovoada.  
Quando isto acabar e outra geração se suceder à nossa, vai parecer impossível que nos tenhamos sujeitado à escravidão e que não tenha havido forma de lhe escapar. Vai parecer irrisório que apenas a ignorância tenha sido suficiente para nos impedir de refratar, como faz a luz ao encontrar um meio que lhe dificulta o caminho. E a ignorância é o meio mais eficaz para dificultar a propagação de toda a luz.
Mas não se julgue que a guerra consegue apagar toda a luz de um homem; às vezes é preciso até um pouco de escuridão para descobrirmos se brilha ou não algo dentro de nós.
É de sonho e pesadelo o destino de um soldado, como eu agora aqui, perdido em pensamentos, enquanto voo em direção ao inferno. É de coragem e de medo esta vida cumprida a ferro e fogo.
Com o braço, aperto a máquina fotográfica contra as costelas e seguro a G3 entre as pernas, porque o helicóptero adornou um pouco para a direita. Afasto mais os pés para aumentar a base de apoio e percebo que estamos perto do objetivo. Sinto uma serenidade muito grande, todo o meu ser se prepara para a violência que se vai seguir, não tenho tempo agora para sentir medo, algo em mim se suspende, nada me pode distrair a partir de agora.

Da fundura do tempo venho à superfície como uma rolha  de cortiça que não aguenta muito tempo imersa.
Sei que o helicóptero pairou a três metros do solo, sei que saltámos e que seguimos pela mata dentro como se algo de lá nos atraísse a todos. Sei que se seguiram momentos de perigo e sei que não morri lá, o resto parece apenas um pesadelo difuso que o tempo foi esbatendo a pouco e pouco. Sei também que alguns de nós não regressaram e que a maioria dos que regressaram trouxeram a guerra gravada a fogo na memória, como uma tatuagem na alma, ou sei lá onde, entre a pele e essa luz que encontrámos a brilhar dentro de nós nos momentos de maior negrume no inferno tenebroso da guerra.
Sei que havia um cemitério em Mueda, onde se dissolviam na terra alaranjada de Moçambique os corpos dos que deram tudo a troco de nada, e que nenhuma luz de humanidade devolveu à terra mãe de onde partiram, porque a pátria madrasta que nos obrigou a combater se envergonhava dos mortos sacrificados em seu nome.
Agora dissolvem-se na terra onde foram esquecidos e talvez lá devam ficar para sempre, porque os seus corpos já se confundem com a terra que os acolheu, e ninguém merece que o seu regresso venha a apagar a ignomínia de os lá terem deixado. Que a vergonha dure para sempre.
Estive lá. A guerra não se fez sem mim. Acreditei em oitocentos anos de História, mas a realidade incumbiu-se de me mostrar em poucos meses que quase tudo o que me ensinaram era mentira, não sem antes aprender que não é difícil matar um homem, difícil é viver depois disso; difícil é passar o resto da vida a tentar fazer com que os nossos mortos façam sentido.
Mas o que é estranho, é o nascimento da saudade desses tempos, como se a superação da tragédia fosse glória bastante. É esta a fútil glória do sobrevivente.
Durante imenso tempo, vivi uma vida que não era a minha, uma vida postiça, e fui uma personagem de uma história mal engendrada. Como diabo posso eu ter saudades disso? Poderemos nós ter saudades dos pesadelos de um tempo em que a única coisa boa era sermos jovens?
É de mim que tenho saudades, e olhando para trás confundo a história com a personagem e confundo a personagem com o cenário, ou, de certo, é a humana capacidade de perdoar que procura algo de bom para redimir o passado.
Mueda revisitada e perdoada, nós, os que sobrevivemos, precisamos de perdoar para continuar a viver.
Que os mortos nos perdoem também.

13.3.18

Roubam-me deus, outros o diabo


A minha cabeça é uma casa assombrada.
Dentro de mim, um tumulto de almas penadas espiando culpas de que estão inocentes.
Caminho por entre pessoas que não entendo, como se o riso fosse uma alucinação e a alegria uma obscenidade.
As minhas memórias são fantasmas que me acompanham para onde for. Amigos que tombaram pelo caminho, que me recuso a esquecer. Juntos, rimos e lutámos, e agora falamos em segredo, para não acordar a indiferença do mundo.
Querem que a gente volte da guerra como se nada tivesse acontecido, porque não querem ser assombrados com os pormenores. Nós falamos dos tiros e dos furos das balas na pele. Das minas e do interior dos corpos que fica à vista. Dos sons da guerra próximos do limite da frequência sonora audível, e que às vezes ultrapassam esse limite e deixam de se ouvir, como se estivéssemos num filme mudo. Falamos do cheiro do sangue fresco e da carne ainda pulsante. O osso limpo, os tendões cortados e as fibras dos músculos rasgadas. Durante meses não se pode ver uma coxa de frango; depois acabamos por falar disso como se fala de um ofício a que nos dedicámos.
O Manel até tirava fotografias. Eu: Ó furriel, essas fotos são pra não se esquecer disto? E ele para mim: Ó Zé, nós nunca nos vamos esquecer disto até morrer.
Acho que ele, com o tempo, foi criando uma raiva contra aquilo tudo, enquanto eu ia aceitando as coisas para poder aguentar, para poder sobreviver. Andámos ao contrário para obter a mesma coisa. Depois, de repente, disseram-nos que tudo o que dantes era inevitável, tinha de acabar, e deixámos de ser precisos. Só servíamos para alimentar a guerra, como lenha para a fogueira, e decidiram apagar a fogueira e deitar a lenha fora. Regressámos a um país diferente daquele que nos enviou para lá, e tudo o que fizemos passou a estar errado, do dia para a noite. Num país em que a ignorância é obrigatória por lei, podemos ser apanhados com uma arma na mão como um bombeiro de mangueira em punho para apagar um fogo onde há uma inundação.
O Manel a tirar fotografias, como se quisesse reunir provas para demonstrar que a estupidez humana realmente existe. E eu via-o como um turista que não levava aquilo a sério para não ficar louco. Se não tivesse lerpado com uma mina, estava agora pior do que eu, tenho a certeza.
Mas eu não estou traumatizado, não, eu tenho é saudades da guerra. Deram-nos uma missão importante para cumprir e nós demos a nossa vida por essa missão. Ensinaram-nos desde sempre que isso era o nosso dever e ensinaram-nos também a sentir orgulho por ele nos ter sido confiado. Há alguma coisa pior do que descobrir que nos enganaram? Que a nossa missão era um crime e que o nosso dever era uma maldição?
Que fazer agora com os mortos? Como resgatar os inocentes sacrificados? Como reverter a dor depois de sentida?
Tenho saudades de me sentir do lado certo da História, de me sentir um soldado a servir uma causa justa.
Anseio por uma causa justa por que lutar.
Só que me roubaram a fé. Roubaram-me Deus. Fiquei de mãos vazias e sujas de guerra. Não se pode rezar com as mãos sujas de guerra e não se pode ser herói numa ato criminoso.
Roubaram-me Deus e roubaram-me o Diabo, por quem lutarei?
Esfrego a pele para limpar a tatuagem do meu patriotismo e a tatuagem não sai. Amei o meu país com um amor impúbere e fui abandonado por ele, prenhe de pesadelos. A tatuagem das minhas memórias é um ferro em brasa que me não saí do pensamento. Ninguém regressa do inferno inocente, ninguém regressa vivo do calvário.
O que vês, Zulmira, quando fechas os olhos? Será que vês o que eu vejo?
Sou uma homem-bomba pronto a explodir de memórias.
Sou um comboio em chamas rasgando a noite escura, exorcizando os fantasmas no meio das trevas da indiferença dos que nunca fazendo perguntas estão sempre de bem com Deus e com o Diabo.
Se ao menos ainda te amasse, Zulmira, deitava-me ao teu lado e adormecia ignorante, que o conhecimento incomoda, mas alguém me roubou também o meu amor por ti.
Deixa, ainda assim, meu amor passado, que me deite ao teu lado, deixa que arrefeça esta acha ainda em chamas, tirada da fogueira em que arderam os meus sonhos de criança. Eu, de mim dei o que dão os heróis, mas coube-me o papel errado. Sou um personagem criado por uma história escrita por criminosos.
Esta noite sonhei que era uma criança inocente brincando. Será que acordei para a realidade ou agora sou um velho soldado com que uma criança inocente está a ter um pesadelo?
Tanta coisa acontece na vida de um homem e tanta coisa é esquecida, lembramo-nos apenas de meia dúzia de coisas boas, mas das tragédias lembramo-nos bem.
Sei que passei horas de convívio caloroso e camarada como nunca se consegue passar em tempo de paz, porque as coisas escassas são mais preciosas, mas não me recordo de quase nenhuma. E os amigos que fiz e que esqueci? É como se não tivesse vivido esses momentos, porque o que ficou na memória foram sobretudo as experiências dolorosas.
A felicidade é o luxo da mente, e o luxo é uma fraude. Não é real, é um cenário montado para exibir a opulência de uma minoria que ofusque o ruído e o desconforto de que é feita a imperfeição da vida para a maioria. Resta o amor. O amor é sempre possível, mas deveria haver mais do que uma palavra para dizer amor. Há amor que mata e amor que salva, há amor que castiga e amor que redime, há amor que revigora e amor por que se morre.
Dizem que se o amor acaba, é porque não era amor de verdade, então quando um homem morre é porque nunca viveu de verdade também? Que pensa um homem olhando o cano da arma com que vai matar-se? Que nada na sua história merece mais um dia de vida, ou que a sua história é tão preciosa que o futuro previsível não merece ser vivido?
 O inflexível arco do tempo não sai nunca do mesmo lugar, nós é que somos perecíveis.
Tudo o que acontece é passado. O que fizemos no passado é que faz de nós o que somos hoje, e o que somos hoje é que dá forma ao passado, que o passado só é passado quando o vemos do presente. Igualmente, o que fazemos agora será passado amanha; não preparamos o futuro, preparamos um passado que mereça os dias de vida que temos para viver.
Sem ti, Zulmira, para recuperar a ignorância original, recosto-me no sofá, vítima do conhecimento do inferno imposto à minha juventude perdida.
O LP no gira-discos entre estalidos. O cantor cantando o poeta. As lágrimas que não seguro. E as palavras do poeta na voz do cantor, como facas:
Roubam-me Deus, outros o Diabo.
Quem cantarei?
Roubam-me a pátria e a humanidade, outros ma roubam.
Quem cantarei?
Um dia cantarás a revolução. Nesse dia, cantor, as lágrimas serão de esperança.

16.2.18

As primeiras chuvas


(In História de amor com guerra ao fundo)

Cansados de Verão, respiramos melhor no ar purificado pelos primeiros frios, confortáveis no aconchego da roupa mais pesada, depois da lassidão transpirada dos corpos sob panos leves.
A todo o momento a chuva ameaça surpreender os otimistas que saíram à rua de corpinho bem feito. Olho-os do carro, certo de que a chuva apenas aguarda que eu ponha o pé na estrada para repentinamente desabar sobre mim numa carga de água.
Sei que ela passará por aqui. Sairá daquela porta e entrará no carro para ir ao meu encontro. Quero antecipar o prazer de a ter, olhando-a. Quero ver-lhe os gestos, ou menos que os gestos, apenas o movimento. O movimento é o que a conduzirá a mim, e, posso senti-lo como certo, o movimento dela será o que me dará o maior prazer.
O seu movimento é apenas de garça pousando, quando chega e graciosamente alarga a saia para se sentar na cama. E depois o seu movimento é de gazela quando se ergue, e já de felina quando se levanta. O seu movimento, todo ele de caça e de caçadora, adivinha-se e surpreende, como tudo o que é belo para o olhar e tentador para o espírito. Uma beleza que faz do cérebro a principal zona erógena.
A chuva cai de um odre rasgado, sem dó nem piedade, sobre os desafortunados otimistas, ensopando-os imediatamente. Os pessimistas, esses, repentinamente transfigurados, os guarda-chuvas a transformá-los em cogumelos animados, sempre têm a ilusão de se protegerem um pouco.
Há uma certa perversidade no prazer que sentimos com o conforto de um abrigo como o meu, aqui no carro, enquanto vemos os transeuntes encharcados a correrem na rua.
No carro ao lado, sem, afinal, eu ter dado por ela, e ela sem ter dado por mim, vejo-a como uma inesperada aparição.
Deve ter escapado à torrente da chuva. Parece tão serena, tão disponível. Parada, como se estivesse a dar tempo à transição do ritmo expedito do trabalho que terminou, para o ritmo lânguido do prazer que antecipa.
Sente o corpo no conforto da roupa. Um prazer sexual. Quando tem assim consciência do corpo, sente-se nua. A estranha sensação de estar nua por debaixo da roupa.
Na verdade, somos animais nus, mais nus que os outros animais. Nascemos pelados, sem nada a cobrir a nossa pele, e continuaremos nus até morrer. Só impedimos que os outros vejam a nossa nudez, cobrindo-a com a roupa.
Ela sente-se nua, numa hiperconsciência de si, na reversão do pecado original, na inversão da alegoria do paraíso, na transformação do castigo divino do pudor numa graça de libidinosa impudência.
A chuva, repentinamente, em rajadas, a querer furar o tejadilho do carro; os transeuntes encurvados para a frente, a quererem empurrar a chuva; as árvores furiosas, a quererem enxotar o vento e ela dentro do carro a querer sentir o corpo todo nu no conforto do invólucro erógeno da roupa.
De súbito, um desejo tentador de sair para a chuva, de deixar que a água lhe cole a roupa à pele, de sentir os fios da água a percorrer todas as reentrâncias anatómicas numa escorrência orgástica.
Vê-se a si própria exposta ao mundo, nessa hiperconsciência de si.
Sente algo de excessivo no seu corpo, algo de hiperbólico; algo de flor desabrochando, algo de fruto protuberando a oferecer-se, pronto a ser colhido por um predador incauto que venha mergulhar na sua liquidez suculenta até ser consumido.
Sente a força animal de fêmea no cio, o poder divino da transcendência, a perfídia diabólica da devassidão, numa disrupção inconciliável do seu ser. O Símbolo que une e o Diábolo que separa, o Mal que corrompe e o Bem que redime, o fogo que consome e a água que regenera; e tudo isto junto e simultâneo numa erupção que transborda.
Sente claramente que não deve ir para casa ao encontro do seu marido, do seu homem que faz de si sua mulher, como um direito adquirido; precisa de evadir-se, de rebelar-se, de correr perigo.
Arranca violentamente e acelera o carro como se se masturbasse.
Sente a conjugação do seu corpo com a máquina, o domínio da sua vontade sobre a máquina; sente a potência do motor, a voracidade do motor; sente o frémito da velocidade, a vertigem da velocidade, o delírio da velocidade. E a estrada a ser absorvida numa invaginação de presa devorando o pregador.
À frente só céu e mar. A chuva de fim de Verão vencida, por um momento, pelo sol. E o carro finalmente em roda livre até parar junto à areia, como besta cansada, como macho em extenuação orgástica. Abriu a porta do carro sem sair para sentir a maresia que inundava tudo em redor, em vagas de odor seminal da rebentação convulsa do mar sobre a avidez feminina da praia.
E o mundo todo, que até agora era um vago esboço em torno de si, ganhou densidade, e a pouco e pouco, resolveu-se a paisagem e todo o som circundante, enquanto o corpo serena, como terra escaldante que o Sol esbraseou numa tarde de Verão tardio, e que começou a despertar com a frescura das primeiras chuvas.
Um homem jamais saberá o que é ser mulher, jamais entenderá a força contida na delicadeza de um só gesto feminil. Bendita a abissal diferença dos géneros que gera o mistério mais virtuosa da natureza.
Vejo-a ali, ao fundo, junto ao mar, como uma amante saciada em leito de luxúria; mas sinto-a tão intocada e íntegra para o mundo; enquanto eu, a sua antípoda abominação, congemino desejos secretos, fraquezas carnais, e desço ao estado de predador impotente perante a sua nobre condição de fêmea superior.
Abre a porta do carro e sai. Livra-se dos sapatos, mal chega à areia molhada da praia, e caminha em direção ao mar.
O vestido leve esvoaça ao ritmo da espuma, que a ressaca das ondas deixa ao sabor do vento, e oferece a beleza das pernas nuas.
Desejo-a, não como presa, não como fruto; desejo-a como algo que jamais se poderá possuir completamente, e que assim, não se esgote nunca esta tentação de sabê-la; mais que possuí-la ou tê-la.
Um bando disperso de gaivotas a estridular, a água quase a chegar-lhe aos pés, num toca e foge provocatório, e o vento impudico a levantar-lhe o vestido. E ela numa imobilidade de esfinge.
Deus, a Natureza - ou a simples conjugação do desejo que o instinto molda, com a forma da coisa humana que vem ao encontro do instinto - fazem dum momento assim o pináculo da beleza imaginada. A única beleza afinal, aquela que o cérebro humano formula; o único sítio do mundo onde se formulam coisas apenas pelo prazer de as formular.
Estar ela ali, entregue toda ela aos elementos, como que protelando o encontro, e estar eu aqui a vê-la, antecipando o encontro é um jogo de predador e presa, e a clandestinidade e o improviso fazem que cada jogo seja sempre o primeiro.
A chuva recomeça, vencendo agora o Sol.
Ela abandona o corpo às primeiras gotas de água, que se confundem com o aerossol da rebentação, como oferecem os ferreiros, o ferro em brasa saído da forja, á água fria, para o temperar. Quem tivesse o rosto colado à superfície afogueada do seu corpo, sentiria a evaporação da água destas primeiras chuvas.
É a sede dessa água que atrai toda masculinidade do meu ser. Sem essa líquida feminilidade nenhum prazer seria possível na aridez do mundo.
De repente, a urgência de a sentir perto.
Escrevo uma SMS para lhe mandar: "Estou a caminho", mas não carreguei na setinha para enviar, fiquei a olhar ora para a SMS ora para ela a dirigir-se para o carro, mas sem fugir da chuva que ia engrossando.
Ela agora dentro do carro, recostada no banco, com o motor au ralenti, a chuva forte e o mar revolto, e no peito, imagino, a serenidade que se segue às grandes aventuras. No meu telemóvel a SMS aguardando o toque de envio, mas o dedo pasmado e eu de olhos encandeados, como os olhos da cobra à espera que a ave se mexa para a abocanhar.
Passou uma eternidade de dois minutos e o telemóvel, já esquecido na mão, cantarolou. Acordo do encantamento e leio a mensagem.

ZULMIRA
Hoje não dá. To na escola pra levar o puto p causa da chuva. Bjs

23.1.18

Lucubrações da minha varanda

Muita gente no meu lugar preferia ser feliz, eu quero apenas sentir. A felicidade deve encontrar-se, no máximo, a cinco segundos de acontecer.
Três dioptrias separam-me da felicidade de gozar da beleza da mulher que passa na estrada, 15,5 Khertz de um acufeno impedem-me a felicidade de gozar o silêncio circundante e falta o teu metro e 67 para eu gozar da tua companhia nesta varanda.
Sou apenas quase feliz, não corro o risco de um clímax castrador.
Não acredito em muita coisa mas as poucas coisas que tenho como certas, aprendi-as por acreditar em alguém, porém, soam todos os alarmes do meu ceticismo quando uma pessoa diz despudoradamente que é muito feliz. Estando eu em conformidade com o lugar onde estou, estando eu de acordo com o que me rodeia, sinto esse equilíbrio como a coisa mais gratificante que se pode ter.
Os ambientes são para mim como um vestuário que se vai fazendo ao corpo. Há sítios à minha medida e sítios que me não assentam bem. Este lugar no meio da serra ainda não me assenta bem. Ainda não sou daqui, sou de Coimbra, mas foram precisos 31 anos e 17 dias para eu ser de Coimbra e deixar de ser de Aguim. Deixei de ser de Aguim no exato momento em que vi a nova capela de S. José. Eram cinco e vinte e três da tarde. Nesse momento fiquei sem referências. Os amantes precisam de referências comuns. Os familiares também. E os amigos. De que falaríamos, sem referências comuns? Agora, eu e Aguim ainda temos uma relação afetiva forte, mas não temos assunto para grandes conversas.
Aquilo a que chamam o "espírito do lugar" é a modelação do nosso sentimento às coisas que nos rodeiam. Se nos ausentarmos e voltarmos anos mais tarde nunca encontramos o que deixámos, o tempo profana a relação de familiaridade com o cenário; a ausência torna-nos estranhos àquilo que apenas existe na nossa memória. A nossa terra não é aquela em que vivemos, mas a que vive em nós.
Se ser feliz é estar plenamente satisfeito, viver plenamente é estar constantemente insatisfeito; qualquer bêbado sabe isso.
Pouco depois de acabar o beijo, acaba o prazer; o segundo já não dá o mesmo prazer que o primeiro; e ainda bem, porque a humanidade há muito se teria extinguido se o prazer do beijo fosse cem por cento saciante.
Cultivo a insaciedade como um sádico que leva a tortura a noventa e nove por cento, para poder continuar a fazer sofrer sem matar a vítima.
É por isso que o livro repousa espalmado, com as páginas 76 e 77 sobre a tua cadeira, aguardando, para que se me não esgote o prazer da leitura, e também porque gosto de estar sem fazer nada, quase tanto como de ler.
Fazer coisas entretém; mata-se o tempo. Só a ociosidade não mata o tempo, cada segundo é um segundo de vida. Estou vivendo intensamente agora mesmo, aqui nesta varanda, ociosamente tiquetaqueando o tempo.
O pecado da preguiça é um pecado virtuoso. Na verdade, é um pecado que quando praticado com grande frequência chega a impedir que tenhamos força de vontade suficiente para praticar os restantes.
É preciso ter a paciência das árvores. É preciso deixar que os frutos aconteçam ao ritmo das estações do ano. Dividir o tempo em frações mais pequenas foi o maior disparate da humanidade. Cada vez dividimos em parcelas mais pequenas a nossa vida. Os nossos relógios marcam tarefas ao segundo. A precisão é a escravidão do século XXI. Eu quero a velocidade de uma árvore a gerar um fruto, eu quero a maravilhosa imprecisão da Natureza.
Ver a Natureza a acontecer é das coisas mais emocionantes que há.
De Aguim via a serra do Bussaco, de Coimbra via o Vale de Canas, daqui vejo um laranjal e uma plantação de abóboras. Uma mulher cava na plantação de abóboras a 686 metros e oitenta centímetros de mim, porque o som está atrasado exatamente dois segundos em relação ao golpe da enxada e estão 20 ° de temperatura. E porque é de desprezar a velocidade da luz. É pena não saber a humidade do ar, para ser mais preciso.
A mulher cava a terra fazendo lembrar um filme com a banda sonora dessincronizada. E o Sol começa a esboçar um poente.
Não existe nem ordem nem estética na natureza, só no espírito e na obra humana. O “Campo de Trigo sob Nuvens de Tempestade” de Van Gogh é belo, a paisagem que lhe serviu de modelo, no entanto, era apenas o resultado aleatório dos acidentes naturais, da interação ecológica e das condições atmosféricas.
Pensar que uma paisagem é bela dá sentido à paisagem. O nosso cérebro não está tão preocupado com a ordem das coisas como com o seu significado, só tende a por as coisas em ordem para as perceber melhor. Damos ordem às coisas que não têm ordem nenhuma, porque não concebemos que elas não tenham um propósito, que estejam ali por mero acaso e que sejam absolutamente inúteis. Não concebemos que não estejam lá por nós.
Para além de ser um exercício de estética, a arte não serve para nada, é um luxo do intelecto. Exceto, é claro, que uma vez recriadas por nós, as coisas passam a ter significado; são finalmente o resultado de um propósito. É essa transfiguração que eu acho bela.
Calcular esse propósito primeiro, para executar uma obra depois, isto é, criar segundo uma fórmula, é inverter o processo; é por isso que a arte Kitsch desagrada a algumas pessoas. É como fazer sexo com um manual de instruções na mão. É fazer batota para conseguir uma performance medíocre.
São dezanove e vinte e oito, e passou um pássaro. Agrada-me que os pássaros não passem a horas certas. Gosto de ser surpreendido. Ser surpreendido é ser privado das referências; de certo modo, portanto, agrada-me que tenham substituído a velha capelinha de S. José por um exemplo particularmente orgulhoso de arquitetura kitsch. A arte kitsch tem essa virtude; surpreende-nos sempre pelo orgulho da própria mediocridade.
Daqui a pouco o Sol vai transformar o céu, e um número de pessoas que me é impossível calcular vai maravilhar-se se olhar para Poente, embora um pôr-do-sol não seja lindo nem feio, é como é porque a luz azul é mais refratável que a vermelha.
Gosto disso, porque a beleza que existe neste mundo está cem por cento dentro de nós. Os mais exigentes e perfeccionistas, portanto, têm menos beleza dentro de si. Segundo este cálculo, a nova capela de S. José é mais bonita que a anterior porque tem mais gente que gosta dela e com um conceito de beleza mais abrangente.
Existe um muito maior consenso quanto a referir a beleza de uma paisagem ou de um corpo de mulher do que de uma obra de arte, porque chamamos belo ao que nos agrada e dispõe bem, e a beleza de uma obra de arte pouco tem a ver com a boa disposição com que ficamos depois de a apreciarmos, ou só por masoquismo assistiríamos a uma peça trágica ou apreciaríamos o fresco de Goya “Saturno Devorando um Filho”. É isso que explica o consenso em torno da penalização da pedofilia e simultaneamente a aceitação de obras como "Lolita" e "Morte em Veneza".
Uma obra de arte tem uma beleza intrínseca.
O rosto tosco e enrugado da Madre Teresa de Calcutá, enquanto modelo de um retrato, é esteticamente mais rico e interessante do que o rosto sensual e viçoso da Marilyn Monroe.
É arte uma bela execução de algo que pode ser feio, mas nunca uma feia execução seja do que for.
Mas ter exigências de beleza mais abrangentes e tolerantes, ou, portanto, ter mais beleza dentro de nós, de modo a gostar de mais coisas é só promiscuidade estética. Para gostar de uma coisa é preciso ter educação; quase ninguém gosta da primeira cerveja que experimenta, é preciso educar o palato. É como gostar de alguém; porque gostar de alguém é eleger quem tem merecimento. Trata-se portanto de saber fazer seleções.
Escolher entre uma zurrapa e um bom vinho exige educação; quase nenhum bêbado sabe isso mas um escanção sabe. A arte é elitista, o gosto popular como a justiça popular, sem educação, são dois grandes equívocos civilizacionais, e não podem ser desculpados com a democracia, porque não há democracia sem informação.
A tarde ficou húmida e se calhar vai chover. O tempo que o som da enxada demora a chegar até mim deve por isso ter diminuído. Um número indeterminado de pássaros passou por aqui. Uma incerteza muito grande domina tudo em redor.
As coisas precisas e previsíveis podem dar um falso sentido de segurança; eu prefiro pensar que tudo pode acontecer e que tenho uma grande margem de manobra. Posso ter um plano de ação, mas assim que parto para a ação esqueço o plano. Ou não seja eu um velho soldado português que na guerra tinha sempre à mão uma arma e uma máquina fotográfica, e que disparava a máquina fotográfica nos momentos de maior perigo.


4.1.18

O Sorriso do Santos

Que faço eu aqui?
O céu está estranho hoje. À minha frente os soldados caminham como sonâmbulos. Olho para trás. Sonâmbulos também.
Atrás das duas filas de soldados a longa coluna de viaturas, todas em péssimo estado. Sonâmbulas.
O ronronar dos motores, o gemido metálico das carroçarias meias destroçadas, o som áspero das picas a furarem a areia em busca das minas, o ranger da areia debaixo das botas, o respirar do soldado à minha frente; e por cima destes sons todos, um silêncio de funeral. A natureza parece demonstrar uma clara hostilidade contra nós.
Um Fiat passa rasante por cima da coluna.
O soldado à minha frente olha para trás. É o Santos. Eu encolho os ombros. Ele sorriu. Porque nos rimos nós, no meio da guerra? Deve ser por estarmos cansados de caminhar vendo as costas uns dos outros, e termos sido feitos para nos olharmos assim, cara a cara.
À frente de todos, os soldados do ancinho que vão esgravatando a picada. O da esquerda parou. Baixou-se para ver o que o ancinho detetou. Parámos todos.
O Santos aproveitou a paragem para urinar, sem sair do lugar onde estava. O soldado à frente dele rodou a cabeça para trás, sem correr o risco de mudar a posição do corpo, para se certificar de que estava fora do alcance do jato de urina.
O soldado do ancinho levantou-se e continuou a esgravatar o trilho. A fila recomeçou a andar atrás dele, cada soldado um bocadinho depois do soldado da frente, como se fossemos carruagens de um comboio a iniciar a viagem.
O céu está estranho, porque é céu de trovoada. Um trovão ao longe imitando penedos a rolar num sobrado de madeira. Alguns soldados a olharem para o céu em busca de chuva.
O Fiat regressa rasante de novo, deixando um pequeno risco no ar atrás da ponta de cada asa. Vi nitidamente o piloto olhando para nós.
Quando o som do avião desaparece, fica a ouvir-se melhor a trovoada distante, que parece afastar-se.
Avançamos a passo muito lento, e cada um de nós tenta por os pés nas pegadas deixadas pelos soldados da frente, o que obriga a estar a olhar constantemente para o chão. Eu ando a aprender a fazer isso sem olhar para o chão, o que tem duas vantagens: prestar mais atenção ao meu flanco e não ficar cego se pisar uma mina.
De um lado e do outro da picada o capim altíssimo encobre a floresta. Às vezes o Lemos, que leva a MG42, dispara uma rajada preventiva para algum lugar suspeito.
O soldado de trás chama-me e faz-me sinal para parar. Eu passo a palavra, e em breve toda a gente para de novo.
Todos olham para trás para tentar perceber o que se passa.
Estou farto disto.
Sem aviso, a imagem de um corpo nu de mulher ocupa-me a imaginação por algum tempo. A mulher caminha à minha frente de saltos altos e completamente nua. Os glúteos balançam-se e os joelhos afastam-se um pouco quando as pernas avançam, devido aos saltos altos. Tento focar esta imagem o mais tempo possível, mas a dada altura a imagem na minha imaginação começa a desvanecer-se, e acaba por desaparecer, e o que vejo agora são duas filas de soldados de costas para mim, imóveis, como se tivessem parado o filme da guerra.
O suor junta-se ao pó e começa a desenhar riscos nas nossas caras e a pintar manchas escuras onde o pano do camuflado toca no corpo.
Os turras devem detetar-nos pelo cheiro, a quilómetros de distância. Felizmente que a natureza nos dotou de um mecanismo que desliga o sentido do olfato quando estamos muito tempo sujeitos a um odor. É conhecido como “fadiga olfativa” e parece que servia para evitar que os nossos ancestrais não ficassem inibidos de detetar o cheiro dos predadores por causa do seu próprio odor. Agora serve para não desmaiarmos com o cheiro uns dos outros.
A imagem do corpo nu de uma mulher volta a atravessar-me por momentos o pensamento. Mas por pouco tempo; parece que a realidade torpe é mais importante agora, para o meu cérebro, do que a graciosa fantasia.
Não há sinais de podermos recomeçar a progressão e a imobilidade aumenta a temperatura do corpo. O sol marra. O ar sufoca. Os mosquitos divertem-se em torno dos meus olhos. A tensão faz apitar os ouvidos. A G3 aumentou de peso. A própria farda parece de chumbo. É óbvio que um ser humano normal não foi feito para isto.
Olho para trás e giro o indicador junto à cabeça e abro a mão em sinal de pedido de esclarecimento. Em resposta o capitão estica o mínimo e o polegar e encosta a mão ao rosto imitando um telefone e depois bate com o dedo no relógio. Entendo que aguardamos instruções para prosseguir.
A coluna auto que vem de Omar ao nosso encontro deve estar com problemas.
O Fiat volta a aparecer, rasante de novo.
Os soldados torcem o corpo para olhar para trás, sem mover os pés, assim que o ouvem ao longe, e destorcem-no para o seguir com o olhar até ele desaparecer onde a picada se afunila em vértice na linha do horizonte, á nossa frente.
Não entendo o que se passa. Começo a ficar em stress. Na guerra não gostamos de surpresas nem de grandes mistérios.
Agora houve-se a tosse convulsa caraterística do Alouette III. São dois. À medida que se aproximam, a tosse vê-se que é acompanhada da pieira habitual.
Houve merda! Diz o Santos.
Desta vez não sorriu.
Não aguento este silêncio e esta incerteza. Estou a meio da fila de soldados, e ir até à Berliet do capitão para saber o que se passa, constitui um perigo muito grande para mim e para os soldados por quem passar.
Está quase a escurecer. Dentro de pouco tempo não poderemos prosseguir com a coluna porque se fará tarde demais para ir e voltar para um lugar seguro, dado que o local de encontro seria o pior possível para pernoitar.
Baixo-me e esgravato a areia em torno de mim com cuidado para me certificar que será seguro sentar-me. Marco no chão o local perscrutado por mim, para saber onde posso colocar as mãos e os pés. O Santos imita-me.
Pelo canto do olho, vejo, de cima da Berliet, o capitão a fazer um enquadramento sobre mim com a zoom da sua máquina fotográfica, e eu aperfeiçoou disfarçadamente a minha pose. Mais tarde quando me der a foto vou escrever a legenda:
Que faço eu aqui?
O céu estranho foi-se tornando normal à medida que a trovoada distante se desvaneceu. O calor baixou um pouco.
O capitão faz-me sinal para regressar às Berliets e eu passo a palavra para a frente e para trás.
Regressamos agora, pisando as nossas próprias pegadas. Certifico-me que o Lemos e o soldado do ancinho trocam de posição e que ele e o outro apontador de MG42 são agora os últimos, caminhando de marcha atrás com estremo cuidado, de metralhadora apontada para o longo funil da picada.
Lá ao longe, onde a picada parece terminar no lombo de uma colina, o céu prepara as coisas para se fazer noite. Do lado de lá houve merda.
Apesar da humidade perto da saturação, tenho a boca seca. Daqui a pouco o abaixamento da temperatura provocará a condensação da humidade do ar em pequenas gotículas, a que chamamos cacimbo, e o efeito de estufa atingirá o limite. Depois, a temperatura vai descendo até tornar as nossas fardas em farrapos encharcados de água fria sobre o corpo, e pela madrugada a baixa temperatura far-nos-á bater o dente. Adormecemos no verão e acordaremos no inverno.
O Fiat faz longos volteios, como uma ave de rapina sobre uma presa ferida, e depois abala em direção a Mueda. Pouco depois regressam os Alouett III.
Foi um ataque de abelhas. Diz-me o capitão quando subo para a Berliet.
Sei bem o que um simples enxame de abelhas africanas pode fazer a uma companhia inteira, e diz-se que os turras nos atiram sacos com colmeias sobre as colunas para nos atacarem enquanto estamos no meio da confusão.
Será que nada nesta terra nos tolera?
Mas a nós, hoje, ninguém nos fez mal. Hoje, não fizemos mal a ninguém.
Fico a admirar o por do sol em busca de um sinal de reconciliação da Natureza.
Uma paleta de vermelhos, rosas e violetas dão cor a um céu pintado por mão infantil e a floresta luxuriante e o capim alto são um plágio ao traço naïf de Henri Rousseau. Preparo-me para descansar, experimentando um pouco de alívio finalmente.
Penso que daqui alguns anos, estes momentos de serenidade serão o que de melhor teremos para recordar, e não os intensos momentos de ação onde a adrenalina não deixa lugar para o pensamento.
Ponho-me a pensar que haverá algum escritor futuro, que não tendo saído da segurança dos quarteis ou do aconchego dos hospitais; nem tendo disparado uma arma sobre ninguém, nem sentido que a sua cabeça era a muche do alvo de uma kalash, falará de horrores que de facto não sofreu nem fez sofrer, só para dar autenticidade aos seus escritos, e sinto antecipadamente um desrespeito enorme por ele. Não conheço maior indignidade do que plagiar o sofrimento alheio para ter uma boa história para contar.
Preparo-me para dormir.
No meio daqueles soldados todos, o olhar do Santos cruza-se com o meu. Eu ajeito a mochila para me servir de almofada, ele ajeita o poncho de borracha como se fosse uma manta. É preciso tão pouco para dar conforto a um soldado.
Eu encolho os ombros, o Santos sorriu.