14.8.12

O mistério da fotografia da capelinha de S. José (continuação)


Embora fora de cena, a pedra da sesta aguarda ali, um pouco atrás do fotógrafo, a festa da Nossa Senhora das Febres, em setembro, para ser enterrada. A festa que mais se aproxima do novo equinócio, depois de o Sol ter cumprido a sua incansável missão de mostrar aos homens as etapas do tempo.
Então terminará mais uma etapa para os humildes, a do descanso depois do almoço; ou melhor, depois do jantar, que assim se chamava a segunda refeição do dia em Aguim, pois a bucha é parca mas é comida com orgulho, e as palavras, se não alteram a essência das coisas, podem até fazer-nos crer que chega para empanturrar o estômago, aquilo que na realidade não enche a cova de um dente.
O almoço é de manhã, com o resto da ceia da véspera, e por isso não é, nem lhe chamam pequeno, que a enxada é pesada e não se mexe sozinha.
O enterramento da pedra é um ato pouco festivo. A festa é em Anadia, aqui parece mais um funeral; ou não se tratasse de oficializar a perda de um direito laboral, o descanso da sesta.
No dia de S. José, a 19 de março, é uma festa dentro de outra festa. Os jazes, como começam a ser chamados os pequenos grupos musicais em que os metais veem substituindo os acordeões e os instrumentos de corda, ficam a tocar sozinhos ao despique, nos coretos do Largo do Sobreirinho, e as pessoas veem juntar-se em torno da entrada da capelinha para assistir a uma outra competição: uma parelha de cavadores tenta superar em rapidez os que no ano anterior desenterraram a pedra da sesta.
E ela ali está ainda, fora do enquadramento da fotografia, ela e o seu buraco, aguardando o equinócio do outono para fecundar a terra que há de germinar no próximo equinócio da primavera.
A mancha do Arvoredo apenas salpica a margem esquerda da fotografia. O Arvoredo não é um arvoredo, é o Arvoredo. O substantivo comum ganhou dignidade de topónimo ou até de nome próprio. Se procurar entre as páginas dos meus sonhos de infância, a silhueta daquelas árvores são o papel de cenário de todas as minhas aventuras imaginadas.
Neste dia não era domingo, nem feriado, apesar das roupas domingueiras. Era dia de festa, porque o meu avô está de gravata. E como sempre, com a cabeça inclinada para o lado. Progressivamente passou a incliná-la também um pouco para trás, o que lhe dava, não sei porquê, um ar importante. Aparece assim, em todas as fotografias que lhe conheço, com aquele torcicolo patriarcal.
As crianças, no primeiro plano da fotografia, têm blusas brancas, por ser um dia especial. Um dia de festa em pleno verão. Seguramente era dia da N.ª Sr.ª do Ó.
As crianças não olham para a máquina para ficarem na fotografia. A fotografia para elas ainda era uma arte desconhecida, por isso, não dão qualquer importância ao fotógrafo, não olham para a máquina como esperaríamos de quaisquer crianças; estão mais interessadas naquele grupo de pessoas que ficaram quietas e caladas de repente, e viradas todas para o mesmo lado.
Alguma coisa, no entanto, chama subitamente a atenção de uma das jovens que estão sentadas no primeiro degrau. Deve ser suficientemente interessante, para uma delas chamar a atenção da outra, que no momento crucial da fotografia esquece a pose e olha para trás.
Quisera ser eu que tivesse passado na estrada, e quisera ter despertado, eu, a atenção daquelas jovens. Um olhar apenas, através dos tempos. Eu da idade delas, a caminhar despreocupado, com um fato de festa também, e elas a desviarem o olhar, do fotógrafo para mim, a estragarem a pose porque eu passei na estrada, a cochicharem um segredinho, a sorrirem uma cumplicidade, a incendiarem uma provocação. Tudo em menos de um pestanejar. Uma sinfonia inteira numa única nota.
O som dos foguetes distrai-me o suficiente para que avance demais e não consiga corresponder com naturalidade àquele olhar. Continuo o meu caminho em direção à banda de música que em breve toma conta da rua. Dirige-se para casa de um dos mordomos do ano que vem que os aguarda com vinho e chanfana e vai receber um foguete que guardará como testemunho.
O grupo de pessoas a posar para a fotografia abandonou a pose e aproxima-se para ver melhor a banda.
A minha avó veste roupas muito claras, o que assegura que ainda vivem todos quantos ama. A minha mãe... a minha mãe é muito jovem…
É jovem demais…
É jovem demais, para ser eu quem o meu avô segura pelos ombros...
A banda e toda aquela gente passam por mim, como a água de um rio, que avança contornando, indiferente, os obstáculos. Passam por mim, as pessoas e o tempo, que eu não pertenço a este tempo, ainda não nasci; sou um fantasma de um tempo futuro que olha especado para o passado congelado numa fotografia.
De súbito as formas ganham opacidade. Deixam de ser representações de pessoas e árvores, e regressam à sua condição primária de manchas de tinta sobre o papel; e eu sinto o pânico de Narciso traído pelo tempo, ao descobrir, não a minha imagem envelhecida sobre o lago, mas a imagem de um estranho no meu lugar; que nunca conheci, que jamais conhecerei; que me rouba o carinho póstumo do meu avô. Uma história a que não pertenço. Um lugar e um tempo irremediavelmente estranhos para mim.
Reponho a foto na caixa de papel como quem fecha a tampa de um caixão, para impedir que um cadáver me assombre.
Só a luz do Sol me restitui a confiança, no terraço da casa da adega. Paro um pouco a olhar o casario e a Capelinha de S. José ao fundo.
Ali, um dia, alguém tirou aquela foto à minha família antes de eu ter nascido, antes de eu ter os privilégios de filho único. Um momento no tempo em que tudo existia do mesmo modo, mas sem mim, e em que tudo fazia sentido na mesma. Sinto-me um mero acidente na inexorável consumição do tempo.
Um leve percalço, e tudo teria levado um rumo diferente, um rumo que não me incluiria neste mundo.
E a realidade constrói-se-me sem mistério nenhum, sem transcendência, sem poesia sequer. Eu, ou qualquer outro no meu lugar, não faz a menor diferença.
Parto dali como um proscrito. Fujo em busca de alguém que me conheça. Alguém que me assegure a existência com um átimo da sua atenção; porque só o afeto que recebemos nos garante que não somos apenas um acidente irrelevante; um rosto desconhecido numa foto antiga.


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