18.7.16

O último olhar do Dentinho

Pouco mais do que o seu olhar regressou com ele de África. Nem um gesto completo. O olhar, o movimento do rosto, um único dedo que obedecia à sua vontade e dentro do pesado escafandro do corpo que o aprisionava, um teimoso sopro de vida que aguentou 45 anos, e que ontem, cansado de lutar, se apeou dessa viagem.
Quanto de um homem se pode tirar para que, ainda assim, o sofrimento continue a ser possível? E quanto precisamos para valer a pena viver? O Dentinho vivia nessa fronteira entre o sofrimento inútil e a vida possível, mas acredito que se lhe tivessem feito essas perguntas, antes do seu ténue sopro de vida se ter esgotado, ele não teria uma resposta categórica para dar. Responderia com o seu último olhar, antes de partir; entre a revolta e a resignação, entre a coragem e a desilusão, entre uma ténue mas persistente vontade de continuar e a avassaladora impotência – esse seu olhar vindo desse centro geométrico onde se gera a dúvida, que é a habitual reação dos sábios às perguntas retóricas dos tolos. Esse olhar sobrevivente, que trouxe de África, com que dizia o que as palavras não dizem. E quando regressávamos a casa depois de o visitarmos, parecia que nos tinha dado uma lição sobre algo tão difícil de entender que nem sabíamos bem o que era, mas que nos tinha modificado para melhor, ou fosse lá o que fosse, que sentíamos no peito, como, às vezes, em dias de chuva, quando um pouco de sol rompe as nuvens e nos faz sentir um ténue afago de luz. Era o olhar do Dentinho. Um olhar de gratidão, de camaradagem, tão genuíno que o afago de luz que sentíamos era a nossa gratidão por nos sentirmos importantes na sua vida. Ontem esse olhar foi-lhe tirado também.

45 anos. O corpo inerte, inútil, insensível sobre a cama, a não ser por uma dor permanente que o atormentava. Um cérebro que guardava a cartografia íntegra do corpo que já morrera há muito e que lho ressuscitava em forma de dor. Esse maravilhoso cérebro humano que nos recria o mundo numa representação virtual cheia de beleza, dando-nos a ilusão de que é o mundo real que conhecemos. O cérebro teimoso a sobreviver ao próprio corpo e a dizer-lhe perversamente que o corpo ainda estava lá, não para as coisas boas que um corpo nos pode dar mas apenas para a dor. A dor fantasma dos amputados, em que o cérebro nem precisa do corpo para gerar dor, a fazer crer que a dor é a derradeira consciência que temos de nós.
Choraram na sua partida, mais porque as partidas fazem sempre chorar, do que por esse desfecho ter constituído uma enorme tragédia para alguém. De que nos apetecia chorar a todos? Do pesadelo que foi a sua vida ou da morte que o libertou? Uma jovem ao meu lado perguntava não sei a quem, talvez a Deus, o que teria feito ele para merecer a vida que viveu, depois deu um suspiro, que deve ter sido a melhor resposta que conseguiu encontrar.
Perguntar ao Deus omnipotente uma coisa destas é quase uma acusação. Se um cidadão pudesse e não tivesse salvo o Dentinho, poderia ter sido acusado de omissão de auxílio à vítima. Se um pai negligenciasse os seus deveres que estivessem assim ao seu alcance para acudir a um filho em sofrimento atroz, seria decerto acusado de violência doméstica e a Segurança Social retirar-lhe-ia o poder paternal.
É impossível resistir a esta filosofia barata quando nos sentimos impotentes perante estes mistérios existenciais sem solução, mas inventar um deus psicopata para os explicar é ainda o mais estúpido que podemos fazer.
O seu funeral atrapalhava o trânsito na rua estreita do Casal Novo de Meãs do Campo, o último incómodo que o Dentinho provocou a este mundo, ele que, condenado à vida confinada a um corpo morto, teve o amor de uma mulher prometido para o resto da sua vida vazia, e recusou. Pode oferecer-se amor recusando-o, ensinou-nos assim o Dentinho, ao libertar a sua namorada da prisão de que ninguém o libertou a ele.
Hoje, descansou finalmente o Dentinho, se o sono que dele se apossou não for, ele também, um sono povoado de pesadelos. Se a dor persiste num corpo insensível, se persiste mesmo para além do corpo, será que sobrevive algum tempo à própria morte?
Que um Deus piedoso exista, ao menos só por hoje, para ti, camarada; e que seja um deus à altura da tua lição de amor, e que te liberte definitivamente da vida de dor em que te manteve preso, ou então que se cumpra a Natureza e que regresses ao lugar de onde vieste, a esse lugar nenhum de onde viemos todos, e para onde inevitavelmente regressaremos todos um dia, e que a vida não passe de um dramático pestanejar do infinito onde, por um maravilhoso acaso se gerou a consciência humana, esta consciência que nos faz delirar de prazer e horrorizar de dor.
Nós, os teus pares, cobrimos a cabeceira do teu caixão com a bandeira do teu país, para termos uma última ilusão da sua gratidão por ti. Quando um soldado morre não deviam chorar apenas os que dele terão saudades; alguém devia, em nome do seu país, prestar-lhe homenagem pela dádiva de sangue que lhe exigiram. Se se medisse a importância de um soldado pelo seu sofrimento, terias honras de general, porque não conhecemos ninguém a quem a dor tivesse condecorado com tão grande distinção.
Mas, não fosse a bandeira verde-rubra que te levámos e ninguém se lembraria que um dia acreditaste que valia a pena lutar por este país.
Lembrámo-lo nós que combatemos contigo. Na guerra, e depois da guerra pela dignidade possível; e levámos-te também a nossa bandeira, que criámos para esse combate do pós-guerra, para cobrir-te modestamente os pés e, claro, a faixa rubra do teu clube, que ao menos na despedida é preciso respeitar as paixões mais irracionais de um homem.
À noite, reparei na lua enorme e fui olhá-la do terraço. Ali, sobre o Tovim, onde as ondas eletromagnéticas do Sol, a que chamamos luz, traduzidas pelo meu cérebro, me faziam ver, não o enorme calhau redondo que regula as marés e o ciclo menstrual das fêmeas dos mamíferos, mas sim a face iluminada da deusa da noite aprisionada pelo abraço gravitacional da Terra, que inspira os poetas e maravilha os tolos como eu.

É difícil conceber tudo isto sem um motivo transcendente, é difícil aceitar este mundo – que hoje o nosso irmão de armas abandonou, vítima de uma guerra já distante, por nada nem ninguém lhe merecer o seu sofrimento – é difícil aceitar este mundo sem propósito nem poesia nenhuma, não fora o maravilhoso cérebro humano que no-lo recria pleno de beleza para que a vida não seja apenas um erro inútil do cosmos.

Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.