15.5.18

Saudades de Mueda



São frias as noites em Mueda. São curtas e frias. São húmidas. E tristes.
A manhã chega depressa e traz a guerra. Logo sentiremos os tiros que já não nos assustam, antes nos lembram que estamos vivos. Mas estar vivo num lugar onde o objetivo é matar, não augura nada de bom.
Todos os dias se sofre em Mueda. Todos os dias se sofre e faz sofrer. Morre-se. E mata-se.
Há uma monotonia trágica em Mueda, como se Deus se tivesse esquecido da máquina da guerra a trabalhar enquanto se entretinha com outra coisa. Deus esqueceu-se de Mueda e deixou os homens enlouquecer à vontade; e aqui, a loucura parece ser a maior virtude dos homens.
Todos os dias há alguém que pensa em Deus. Todos os dias há alguém que para desconcertado com a maldade humana e com o alheamento divino, e que depois tem que seguir em frente, invariavelmente na direção em que vai encontrar mais sofrimento e morte, e maior ausência de Deus.
De Mueda sai-se seguindo sempre em frente, só se volta para trás quando se fizer suficiente mal a alguém. Dezenas de soldados, uns atrás dos outros, ordenados, coordenados, alinhados; de helicóptero, de Berliet, ou a pé; sempre sem que Deus pareça interferir na sua determinação de irem em busca da morte.
Tão diferentes, os soldados que saem de Mueda, dos que regressam. Algo no meio da mata misteriosa modifica os soldados, algo lhes tira brilho e cor, lhes assombra o olhar, lhes suja o rosto. Algo os envelhece.
Ver um camarada cair habitua-nos à ideia de que somos perecíveis e a ideia da morte torna-se-nos familiar, não como algo que nos espera adiante, mas como algo que nos acompanha a cada passo que damos. E a cada passo envelhecemos com a ideia da morte.
A coragem às vezes é a única solução. Podemos nunca saber o que é a coragem até não nos restar mais nada para garantir a sobrevivência.
Há quem esteja morto em vida por nunca ter chegado à beira do abismo e nunca ter conhecido o fim do caminho; nunca ter conhecido o rosto de quem caminhou todo o dia à nossa procura para nos matar, porque, na aritmética da guerra um de nós tem que ser subtraído à existência. E estarmos nós à sua espera de arma na mão coloca as coisas em termos simples, em termos fáceis de perceber: somos peças de um jogo.
Mas não podemos fugir de Mueda, porque de Mueda não se vai para lado nenhum, senão em direção à guerra; o mundo acaba aqui. Mueda é uma ilha rodeada de morte por todos os lados.
Há um cheiro de morte em cada cheiro que se nos cola ao corpo. O bedum do óleo e da pólvora queimada da G3, o bafo do escape das Berliets, a catinga da floresta, o nosso ininterrupto odor corporal.
Às vezes tornamo-nos um pouco mais humanos, quando recordamos as coisas que constituíram a vida antes de Mueda. Eu tenho saudade de acordar e sentir logo vontade de correr. Saudade da frescura do café pela manhã, da boroa acabada de cozer, da fragância da relva orvalhada nas manhãs de Inverno . Fazem-me falta os cheiros dos campos, desde a essência doce do pólen até ao fedor bom do estrume.
Agora acordo com a exsudação húmida do cacimbo e adormeço com o hálito metálico da trovoada.  
Quando isto acabar e outra geração se suceder à nossa, vai parecer impossível que nos tenhamos sujeitado à escravidão e que não tenha havido forma de lhe escapar. Vai parecer irrisório que apenas a ignorância tenha sido suficiente para nos impedir de refratar, como faz a luz ao encontrar um meio que lhe dificulta o caminho. E a ignorância é o meio mais eficaz para dificultar a propagação de toda a luz.
Mas não se julgue que a guerra consegue apagar toda a luz de um homem; às vezes é preciso até um pouco de escuridão para descobrirmos se brilha ou não algo dentro de nós.
É de sonho e pesadelo o destino de um soldado, como eu agora aqui, perdido em pensamentos, enquanto voo em direção ao inferno. É de coragem e de medo esta vida cumprida a ferro e fogo.
Com o braço, aperto a máquina fotográfica contra as costelas e seguro a G3 entre as pernas, porque o helicóptero adornou um pouco para a direita. Afasto mais os pés para aumentar a base de apoio e percebo que estamos perto do objetivo. Sinto uma serenidade muito grande, todo o meu ser se prepara para a violência que se vai seguir, não tenho tempo agora para sentir medo, algo em mim se suspende, nada me pode distrair a partir de agora.

Da fundura do tempo venho à superfície como uma rolha  de cortiça que não aguenta muito tempo imersa.
Sei que o helicóptero pairou a três metros do solo, sei que saltámos e que seguimos pela mata dentro como se algo de lá nos atraísse a todos. Sei que se seguiram momentos de perigo e sei que não morri lá, o resto parece apenas um pesadelo difuso que o tempo foi esbatendo a pouco e pouco. Sei também que alguns de nós não regressaram e que a maioria dos que regressaram trouxeram a guerra gravada a fogo na memória, como uma tatuagem na alma, ou sei lá onde, entre a pele e essa luz que encontrámos a brilhar dentro de nós nos momentos de maior negrume no inferno tenebroso da guerra.
Sei que havia um cemitério em Mueda, onde se dissolviam na terra alaranjada de Moçambique os corpos dos que deram tudo a troco de nada, e que nenhuma luz de humanidade devolveu à terra mãe de onde partiram, porque a pátria madrasta que nos obrigou a combater se envergonhava dos mortos sacrificados em seu nome.
Agora dissolvem-se na terra onde foram esquecidos e talvez lá devam ficar para sempre, porque os seus corpos já se confundem com a terra que os acolheu, e ninguém merece que o seu regresso venha a apagar a ignomínia de os lá terem deixado. Que a vergonha dure para sempre.
Estive lá. A guerra não se fez sem mim. Acreditei em oitocentos anos de História, mas a realidade incumbiu-se de me mostrar em poucos meses que quase tudo o que me ensinaram era mentira, não sem antes aprender que não é difícil matar um homem, difícil é viver depois disso; difícil é passar o resto da vida a tentar fazer com que os nossos mortos façam sentido.
Mas o que é estranho, é o nascimento da saudade desses tempos, como se a superação da tragédia fosse glória bastante. É esta a fútil glória do sobrevivente.
Durante imenso tempo, vivi uma vida que não era a minha, uma vida postiça, e fui uma personagem de uma história mal engendrada. Como diabo posso eu ter saudades disso? Poderemos nós ter saudades dos pesadelos de um tempo em que a única coisa boa era sermos jovens?
É de mim que tenho saudades, e olhando para trás confundo a história com a personagem e confundo a personagem com o cenário, ou, de certo, é a humana capacidade de perdoar que procura algo de bom para redimir o passado.
Mueda revisitada e perdoada, nós, os que sobrevivemos, precisamos de perdoar para continuar a viver.
Que os mortos nos perdoem também.