15.7.12

Fotografias faladas - 2






O mistério da foto da capelinha de S. José 


O sótão da casa da adega é um amontoado de lixo. E este amontoado de lixo é a arqueologia da minha vida. Objetos mortos; amortalhados de pó. Cadáveres de objetos. Objetos quietos no tempo à espera que os esqueçam de vez, para que possam finalmente dissolver-se na terra mãe de onde vieram.
Avanço furtivamente, com o sentimento de quem profana um túmulo. Afasto as teias de aranha que parecem panos impregnados com a alma do tempo, e que boleiam a forma dos objetos, como um lençol cobrindo um cadáver.
Sopro o pó de uma enchó do meu avô, e ela parece que acorda, ganhando humanidade. Um foicinho da minha avó. Uma podôa do meu pai. Um bastidor da minha mãe. Sem a mortalha de pó, ressuscitam e parece que procuram as mãos dos donos, as mãos que calejaram, as mãos que os moldaram a eles. Não são objetos em série, são objetos feitos pelo uso, que ganharam o jeito do dono; noutras mãos seriam maljeitosos. Eram prolongamentos dos braços, como próteses ortopédicas; partes sobrevivas dos meus antepassados.
Caiu-me à frente uma caixa de papel levantando uma nuvem de pó.
Quando a nuvem de pó se dissipou, um grupo de pessoas olhou-me de frente. Imóveis. À medida que os meus olhos procuram os pormenores da fotografia, parece que se movimentam um pouco.
A sua imobilidade dá-lhes um ar sarcástico, parecendo desafiar-me, e dou por mim a pretender apanhá-los na fraqueza de um movimento. Desvio o olhar para uma mancha do papel e volto a prestar-lhes atenção. Esta disputa demora uns segundos; o suficiente para se tornar uma patetice. Mas não consigo dominar-me. Os meus olhos traem¬ me e voltam sempre àquele jogo, como que atraídos por aquelas figuras que parecem zombar de mim, olhando-me como um friso de espectadores estáticos mas atentos, em frente do palco; suspensos da ação que decorre aqui, onde eu, o ator, devesse dizer a próxima fala, efetuar o próximo movimento.
Há um pormenor da fotografia que acaba por me prender a atenção. A posição carinhosa e protetora do meu avô, segurando-me pelos ombros. O meu avô tinha uma má relação com os seus sentimentos. Não era homem de grandes manifestações de afeto, o que lhe valeu a alcunha de Vinagre. Lembro-me que me embalava cantando canções obscenas; e essas canções são a única manifestação de afeto de que me recordo. Vê-lo assim naquela atitude carinhosa e protetora faz¬ me subir um novelo de saudade, lentamente até à garganta, vindo não sei de que memórias.
O céu ao fundo, entre as árvores, está reduzido a uma ausência de cor, devido ao monocromatismo esquálido da fotografia.
Envolvendo a capela, algumas oliveiras evitam que a fotografia pareça despida. Os ramos pararam para sempre, alheios à aragem da tarde de verão. 
Sim, é de tarde porque as sombras projetam-se para nascente, e é verão porque o meu avô está de camisa de manga arregaçada. Os ramos das oliveiras pararam para toda a eternidade quando o clique da máquina se fez ouvir.
Não é um clique. É o som da cortina, do obturador e do diafragma da máquina em acorde, antes de ser substituído pelo estalido insípido das máquinas digitais. Aquele ruído que fazia com que as pessoas se descontraíssem da pose forçada que mantiveram durante os últimos preparativos do fotógrafo. Mas não se descontraem logo, respiram fundo primeiro, olham umas para as outras e depois é que mudam de posição, como se não fosse permitido ficarem como estavam depois da foto tirada. De seguida as conversas interrompidas continuam pouco a pouco a reformularem-se.
O fotógrafo é amador; um fotógrafo profissional fotografaria o grupo mais de perto, para se conhecerem melhor as pessoas, ou mais de longe para não cortar o pináculo da capela que tem uma estranha forma de flecha com uma cruz em cima.
O fotógrafo é seguramente o meu tio brasileiro, porque só ele reuniria parentes afastados para uma fotografia; para levar como recordação quando voltasse para o Brasil.
O fotógrafo afastou-se um pouco para a direita, muito pouco, só o suficiente para não cair num buraco que está no chão. Atrás do buraco está uma enorme pedra com cerca de meio metro de altura, de forma vagamente paralelepipédica.
Isto não aparece na fotografia; nem nesta, nem em nenhuma outra que eu tenha visto, decerto, devido ao baixo valor estético que os fotógrafos veem naquele conjunto. E por acharem uma falta de bom senso manter-se assim uma pedra daquele tamanho com um buraco à frente, durante todo o verão; desde o dia de S. José, em março, até ao dia da Nossa Senhora das Febres, em setembro, mesmo em frente da capelinha.
Através dos séculos um culto celta veio desaguar assim na minha infância. Um aras onde um druida pontificava a adoração à deusa Eostre, ou um menir, fálico e imponente, celebrando a fecundação da terra, ou uma antes alinhada com o ponto exato em que o equinócio da primavera daria nascimento ao Novo Ano Solar, mal a linha do horizonte partisse a meio o disco do sol.
Um ritual desgastado pela viagem penosa através dos tempos, resistindo a todos os invasores, a todos os novos cultos, à ciência, à técnica…a tudo, até restar esta reminiscência resgatada da vizinha povoação abandonada de Vila Franca, acompanhando a imagem de S. José, resgatada também, quando morreu o último habitante que teimava em acender todos os dias o lume na lareira da sua casa, na povoação assombrada já pelos insuportáveis silêncios dos ausentes.
E, um dia, cumprindo a mais brutal lei da Natureza, essa reminiscência que a tanto resistiu, acabou finalmente por sucumbir.
Sucumbiu à arrogância dos ignorantes e à prepotência dos espíritos pragmáticos, de quem alia as tradições populares à falta de desenvolvimento.
Enquanto estava assim desenterrada, já só servia para marcar a época, de equinócio a equinócio, em que os mais humildes de entre os humildes podiam descansar os seus corpos da fadiga; dos rigores da labuta nos campos e da crueldade do estio, nalguma sombra que a Natureza, mais próxima deles, lhes oferecesse com compaixão, impondo-se à distante e estúpida inclemência dos homens, a mesma inclemência estúpida que lhe deu fim, reduzindo finalmente esse falo monolítico à total impotência, estilhaçado em brita, e enterrado definitiva e ingloriamente, debaixo de uma camada de alcatrão.
O poder local ganhou mais umas eleições e a terra ficou viúva.


(continua)

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