15.1.24

Lonjuras

Estás sentado numa pedra olhando o abismo do mar. Sentes a vertigem de quem pode cair, não por efeito da gravidade, mas da lonjura. Levantas-te e caminhas um pouco, como se quisesses ir ao encontro de algo distante.

Portugal é um país de lonjuras, onde geograficamente tudo está perto.

Os portugueses viajaram para longe, atraídos pelo chamamento do mar, criando grandes distâncias que se opusessem à pequenez de Portugal. E ser-se de Portugal à distância criou o sentimento da lonjura, a que demos o nome de saudade.

Olhas a extensão das águas à tua frente, e sentes a dor da lonjura, como se alguém te tivesse morrido do outro lado do mar. Tu não sabes, mas essa dor é a poesia em estado seminal. É isso que ficou guardado na palavra saudade à espera de que os poetas o dessem à luz.

Caminhas na praia, com um ventinho de fim de outono desagradável a ferir-te os olhos, e com as narinas dilatadas pela maresia. O mar calmo parece uma coisa viva a desafiar o que houver nas pessoas de marinheiro. Em ti há. Há algo que te inquieta, como um ímpeto para uma longa viagem. Soubesses tu marear e não caminhavas agora, sairias em busca, fosse do que fosse que estivesse longe, Índia ou Brasil, ou outra longínqua paragem qualquer, como o objetivo único de uma vida, mas na verdade, apenas para poderes ter saudades de casa.

Quem seguisse, agora, os teus passos, veria nas suas marcas irregulares na areia uma guerra longínqua que trazes contigo, como um fardo que aumenta todo o peso do teu ser. Tudo em ti é inquietude e pesar.

Os maus pensamentos são traiçoeiros, aguardam momentos como este para nos assaltarem. Do nada, aparece, quase visível,  uma arma na tua mão. Sentes o metal frio. Sentes o leve cheiro a óleo. E de longe regressou o sentimento de repulsa por aquele objeto feito com o único propósito de matar.

Tu não pegavas na G3 com mãos de soldado. Uma arma transforma as mãos mais inocentes em mãos de soldado, mas nas tuas mãos uma G3 não parecia uma coisa de matar. Olhávamos para ti e víamos um camponês de alfaia na mão.

E são essas mãos inocentes que levas ao rosto, como quem o quer lavar de um mau pensamento, e depois olhas de novo o mar.

O mar repousa, o mar acalma, o mar, no seu contínuo marulhar, transporta-nos para longe e afasta-nos dos maus pensamentos, e tu deixas-te levar por essa doce alienação.

Nestes teus momentos de evasão, as boas memórias, porém, duram pouco, e são as más que perduram. Caminhas na areia da praia da tua infância, mas é a longa picada de Omar, que sentes a passar agoirenta debaixo de ti. Ninguém entende porque no meio de uma confraternização deixas de ouvir as pessoas, como se uma voz distante estivesse a falar contigo, ou então, como agora, porque caminhas na tua praia de infância com medo que a picada de Omar te expluda debaixo dos pés.

A fila de soldados avança como por castigo, com medo do próprio chão, as Fox atrás deles fazem disparos preventivos como se quisessem castigar o capim alto, e o sol sobrevoa a cena e castiga tudo e todos indiferenciadamente. De repente um estrondo. Inesperado, como um trovão a meio de uma tarde calma de verão. Depois, o silêncio. O silêncio que antecede a consciência da tragédia. É este o silêncio que desde então te assalta e te interrompe a vida como uma visita indesejável.

A que distância ocorreu tudo isto? – Longe, no espaço e no tempo. Tu sentes essa lonjura — já nem tanto a memória vívida do perigo, do medo e da morte, mas a distância entre isso tudo e este momento. Sentes em ti a fundura do tempo, há no teu peito a vertigem de um poço que atrai o suicida.

É que, essa lonjura enorme separa-te dum outro que foste. Não sobreviveste. Tu morreste do outro lado do mar. Esse que voltou é um estranho dentro de ti.

À medida que o tempo passava, a alfaia que trazias na mão ia-se transformando numa arma, e as tuas mãos de camponês em mãos de soldado. Bem-vindo à metamorfose regressiva da guerra: qualquer sublime beleza do mundo é desfigurada até à réptil fealdade de lagarta.

Trouxeram-te de volta a casa, como se devolve a garrafa vazia depois de bebido o vinho. Mas tu não regressaste, porque um homem não é só o que se pode mudar de sítio; muito de cada um de nós vive nas coisas que fazem o nosso mundo, com as quais estruturamos afetos e caldeamos paixões, no prazer e na dor, e que nos ancoraram ao sítio onde somos, embora sonhando, possamos ter a vertigem do longe e do infinito. Somos o rio que é do leito onde corre, embora corra irredutivelmente para o mar.

Mas que longe está o último dia em que os teus sonhos te fizeram maior que o casulo do teu ser, pois que, um após outro, todos os sonhos que sonhaste pereceram como nados mortos. Agora, com todos os sonhos sonhados em vão, restam-te os pesadelos.

E a tua memória, cada vez menos te revive momentos felizes; porém, quando isso acontece, pousa sobre ti como que um perfume, como que uma música antiga desfrutada a dois, e que ficou impregnada da felicidade partilhada.

A memória, não tanto da música, mas do estado de alma que a música encontrou em ti, resgata-te hoje a felicidade desse dia. A brisa do mar pela janela entreaberta, refrescando o esbraseamento dos corpos abandonados sobre um leito em desalinho, como se ali tivesse havido um crime, e não a partilha mais íntima que a Natureza inventou, mostrando que se podem fazer maus juízos quando olhamos só para a aparência das coisas.

Mas a felicidade é leve e efémera, e o pesar, com maior densidade, apaga constantemente a luz e a música dos teus dias.

O Sol atingiu a linha do horizonte e começa a deformar-se lentamente, logo, logo, as sombras estender-se-ão sobre o areal, e nada nem ninguém poderá impedir que a noite desça sobre esta parte do mundo, ainda que isso possa ser um grave problema para muita gente. Tu sabes o que é viver com um problema que não tem solução, mas tu já nem procuras soluções, basta que te permitam viver com os teus problemas.

Contudo, às vezes, nos momentos mais sombrios, o sorriso dela ainda ilumina a tua noite.

mcbastos