18.12.09

Mueda, a Palavra do Nosso Destino

TEXTO DE: António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503




Mueda - Edifício do Comando - foto de António Almeida


Mueda, escrita com “u”, transformou-se, com o tempo, numa palavra mítica e/ou mística, para quantos por lá passaram, algures no Norte de Moçambique.
Mas, na realidade, Mueda, para nós, passou a deter uma existência muito real e jamais essa realidade deixou de nos acompanhar pela vida fora.
A primeira vez que ouvi alguém referir-se a Mueda, foi no ano de 1968, na Universidade. Um colega que cumpria já o serviço militar, colocado em Lisboa nos Serviços de Informação do Exército, contou-me que das três frentes de guerra que Portugal mantinha, Angola, Guiné e Moçambique, aquela que causava maior número de baixas era a de Moçambique, devido à luta que se travava na região de Mueda.
E, foi exactamente na universidade que voltei, meses depois, a ouvir referenciar, de novo, a palavra Mueda. Era a época dos exames, em plena Crise de 1968/69, estava eu integrado num piquete de greve, procurando impedir o acesso às instalações onde deveriam decorrer as provas, daqueles que pretendiam furar a greve.
Entre estes havia um estudante, forçando a entrada, empurrando e gritando, juntamente com outros estudantes, quase todos trabalhadores-estudantes, dizendo que vinha de propósito de Mueda, onde exercia funções administrativas, para realizar aquele exame, e iria fazê-lo custasse o que custasse.
Só muito tempo depois haveria de escutar novamente alguém a referir-se a Mueda. Foi em Stª Margarida, já em 1973, onde me encontrava a preparar a minha companhia com destino já conhecido, Omar, em Moçambique. Apresentou-se para passar à disponibilidade um oficial, vindo de Moçambique, que foi alvo da curiosidade de todos os oficiais que se encontravam a formar o Batalhão, que já sabia destinar-se àquela região e, a minha companhia, já sabia que ia para um buraco chamado Omar. Às minhas interrogações disse que nunca havia estado lá, mas havia passado por Mueda, mais, tratava-se de uma zona de “porrada” mais ou menos permanente.
Alguns meses se passaram, a preparação da companhia com destino a Omar lá continuava, até que tive um acidente de automóvel quando me encontrava a gozar a licença de 10 dias de que todos beneficiávamos aquando da mobilização para a guerra. Fui hospitalizado e, de seguida, substituído no comando da companhia. Foi assim que disse adeus a Omar, sem nunca lá ter sequer chegado.
Esses militares partiram para África em Agosto de 1973 e, eu, por cá fiquei a guardar ordens e destino.
Cerca de dois meses depois, chegou a minha vez. Embarquei para Moçambique, também, sem conhecer o destino operacional. Fui em rendição individual.
Somente na cidade da Beira, em Moçambique, é que tomei conhecimento, através da “guia de marcha” respectiva, que o meu destino final era Mueda.
Já no avião, lá bem nos primeiros lugares, como calhava aos oficiais, encontrei alguns que regressavam de férias. Procurei obter alguma informação sobre a zona onde estaria esta Cart 3503. Somente um daqueles oficiais sabia que se tratava de uma companhia que estava sediada algures “lá para cima”.
Fiquei, desde logo, a saber que a referência “lá para cima”, significava zona de “porrada”. Mas, na prática, fiquei a conhecer o mesmo que já sabia, isto é, nada de concreto sobre o meu verdadeiro destino.
A chegada a Nampula aconteceu já de noite. Só no dia seguinte, no bar da messe de oficiais, viria a tomar conhecimento, através de quem bem a conhecia, a zona que me foi atribuída.
Foi aí, em Nampula, que conheci o primeiro militar da 3503, nada mais, nada menos, que o, então, alferes Silvestre, que se encontrava no hospital, a quem ouvi, pela primeira vez, referências sustentadas acerca da companhia que me fora destinada na Beira.
Praticamente ao mesmo tempo, encontrava-se na messe um capitão, também com baixa no hospital, o Franklim. A sua reacção, quando se apercebeu que eu iria para Mueda, e para a Cart 3503, começou, quase gritando, “fuja homem, fuja!”, conheço muito bem o buraco para onde o estão a enviar.
Já de posse de alguns dados, transmitidos pelo Silvestre, lá parti para Porto Amélia, última etapa, antes de rumar a Mueda.
Em Porto Amélia, enquanto aguardava transporte para percorrer a última etapa desta viagem, conheci, na messe, um alferes que estava em Mueda, o Raul Carregoso, responsável pelo material auto do Batalhão. Como é evidente, fiquei a conhecer mais alguns pormenores acerca do local do meu destino.
Passados uns dois dias foi o embarque com destino a Mueda.
Finalmente a chegada à “terra prometida”.

Lisboa, 24.09.2009

TEXTO DE: António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503

7.12.09

O Inconveniente da Inteligência

Leia o texto completo aqui


Sofia é uma mulher feliz. Olha-se ao espelho. O cabelo em desalinho. Deixa cair na cama de novo, o corpo ainda dormente de prazer. O chuveiro na casa de banho imita a chuva de verão na varanda, e Sofia deixa os pensamentos soltos fluírem à toa, como fotografias atiradas à sorte para cima de uma mesa.
O homem que toma banho em silêncio, só o fervilhar do chuveiro a competir com a chuva, penetra na sua vida quase só tangencialmente, como uma flecha de luz que a ilumina e aquece mas que continua o seu percurso deixando-a sempre como estava antes de chegar. As vidas de ambos têm muitos momentos de contacto como este, mas não se fundem uma na outra, são a água e o azeite, eternos símbolos das uniões imperfeitas, mas se isso às vezes lhe deixa um travo de incompletude, outras vezes como agora, dá-lhe um perverso prazer. Ele vai sair primeiro, ela depois, como se não tivessem nada em comum. É esse ludíbrio que faz desta sua relação um segredo delicioso. Apenas uma sombra cúmplice atrás da cortina de renda do segundo esquerdo. Depois a cortina ondula e a sombra desaparece.

[...]
– Mas tu lutaste pela sobrevivência, mataste para não morrer.
– Não percebes nada do que estás a falar. Sabes… o melhor soldado não é aquele que luta por um ideal, nem o que luta para sobreviver, o melhor soldado é aquele que luta sabendo que vai morrer. Não é a esperança que faz um soldado matar, é o desespero.
As guerras não têm estética possível, porque só têm um lado: o lado abjecto da chacina.
A cor quente do sangue a destoar na frescura verde da paisagem. O terror a desequilibrar a excessiva harmonia do rosto dos inocentes que nos olham antes de morrer à procura de um resíduo de humanidade.
Tragicamente belo não é? No fim da ópera o público abandona a sala e regressa ao ócio dos salões; no fim do romance fecha-se o livro e regressa-se ao conforto do sofá; no fim do filme desliga-se a televisão e toda a tragédia vai para onde foram os nossos pesadelos de infância ao acordarmos em conforto e segurança na cama dos nossos pais; mas, e se não tivermos como desligar os nossos pesadelos? E se a nossa história for o monstro que temos fechado na cave da nossa própria casa, enquanto tentamos dormir em paz no quarto por cima dele? Pior: esse monstro é a parte de nós que já morreu, à espera que abram o alçapão, para vir tomar posse do que resta de nós.
Procurou de novo o tabaco nos bolsos, como se não tivessem passado dez anos desde que deixara de fumar, como se uma parte de si que tivesse morrido numa guerra antiga tivesse vindo tomar posse do seu corpo.
[...]

Leia o texto completo aqui