8.7.11

Diário inconstante – 2011



Janeiro, 6

Da fundura do tempo a memória do Dia de Reis, na época em que me cabia a tarefa de desmanchar o presépio. O presépio era uma versão íntima de uma cascata S. Joanina, e o Menino Jesus ainda não tinha envelhecido ao ponto de parecer um pantomineiro de feira com a sua cara de bêbado e barbas de franja de reposteiro, e para cúmulo do mau gosto, envergando um pijama garrido oferecido pela Coca-Cola.
Um dia, lá em casa, por alturas do início da minha escola primária, substituímos as figuras da Natividade por um profano píncaro de pinheiro, esgrouviado e meio torto, enfeitado com neve de algodão e uns penduricalhos de plástico, e rendemo-nos modestamente ao consumismo capitalista. E o Menino Jesus envelheceu subitamente e tornou-se no Pai Natal, com aquela cara de avô gaiteiro. Que mão é esta que reduz todas as coisas que nos enfeitam a vida a objetos sem alma?

Fevereiro, 6
– Os soldados, os homens que um dia combaterem, têm dias assim, em que ficam de olhos parados procurando a distância…
– Vocês fazem isso por terem saudade dos combates?
– Não minha filha, os combatentes não têm saudade dos combates, têm saudade de si mesmos enquanto combatiam.
– Então não deviam procurar a distância com o olhar, deviam procurar dentro de si.

Fevereiro, 10
Há anos que não vinha aqui. Parei o carro e subi a vereda do Monte Grande. Tudo parece pequeno, como acontece com as árvores de Natal: nós crescemos e elas ficaram com o tamanho da infância.
Caminho, ouvindo as pedras a gemerem debaixo dos ténis. Conheço esta música. Sorrio, porque não tenho medo agora.
No outono de 74 vim aqui um dia só para cheirar a urze, ouvir o sussurro do pinhal e fumar um cigarro, e entrei em pânico. As pedras a gemerem debaixo dos pés, e eu ali num trilho deserto, sem arma, sem companhia.
O chão era o nosso inimigo e as picadas de Cabo Delgado traiçoeiras. Não se pode lutar contra o chão, cada passo era um ato heroico de sobrevivência.
Levei anos a reconciliar-me com os caminhos e as veredas.
Só de longe em longe, quando me apanha distraído, ainda a visão das goelas carnívoras da Terra abocanhando-me uma perna.

Março, 8
Os dedos que o cigarro alonga. Uma história que deve vir de tão longe, e de há tanto tempo que são mais as fantasias que as memórias. Uma história que passa por aquela mesa da pastelaria da Avenida e vai continuar até a vida ser um cansaço insuportável.
Um fio de fumo soprado quase na vertical e uma perna esticada devagar, numa provocação um pouco menos que elegante, atraindo os olhares dos homens.
Os olhares dos homens fazem parte da sua forma de vida.
Um dedo negligente no bordo do copo dá a impressão que o resto está ausente: corpo e mente. E um olhar de loba sobre o rebanho. Uma loba olhando os cabritos como se avaliasse o valor nutritivo de cada um deles.
Quando o olhar passou por mim, senti-me reduzido a um almoço.

Março, 28
– As fotos são momentos que ficam presos no papel para sempre. Uma ínfima parte da vida de uma pessoa a desafiar a eternidade…
– Mas nessa foto não se vê ninguém, para que serve então?
– Serve, minha filha, para lembrar o local onde morreram soldados numa guerra.
– É um local triste, achas que ficou assim por causa dos soldados que morreram?
– Não é o que acontece num local que o torna triste, minha filha, é a tristeza que fica em nós que nos faz vê-lo assim.
– Então não devias tirar fotos a lugares onde morreram soldados.

Abril, 13
Paúl de Santa Cristina. A serra sobranceira torna a aldeia mais pequena. Ali há uma casa que tem uma nesga de terreno a servir de pátio. Ao canto do pátio um limonete encosta-se à parede da casa e lança pela janela de um quarto o seu perfume eternamente fresco.
Ninguém vive há muitos anos nessa casa, ninguém dorme já naquele quarto. Será que ainda lá está sobre a cama o colchão de farpelas de milho e a travesseira de sumaúma?
Acordar com o suavíssimo cheiro a erva seca da sumaúma, o odor intenso a aparas de madeira das farpelas de milho e o perfume cítrico do limonete e ter pela frente as Férias Grandes, convidava a não fazer nada.
Pobres dos que nunca aprenderam a amar a vida por terem sempre que fazer.

Abril, 18
Era mais ou menos aqui que estava a bomba do arco de ferro. O corpo cilíndrico da cobertura do poço escondia um mundo misterioso e subterrâneo. Ainda se sente a calma das tardes de verão, em que a vida à superfície do mundo, na sua aparente inconsequência, de vez em quando alterava levemente a substância das coisas. Tenho a certeza que a luz era mais doce. Tenho a certeza que o relógio do tempo tinha outros vagares. Tenho a certeza que se vivia mais; não porque os anos fossem mais numerosos, mas porque os segundos eram mais longos, muito mais longos.
O Tempo anda à velocidade por que passamos pelas coisas, e, no tempo em que havia aqui uma bomba de arco de ferro, eu não passava; vivia aqui.

Junho, 4
– Não há a menor equidade neste mundo, por isso é que as desgraças não estão melhor distribuídas.
– Mas nós já tivemos bem a nossa conta, Manel. Dizias tu, parecendo não te conformar com a teoria.
E eu sempre pessimista: – Quando ultrapassamos uma desgraça o contador volta ao zero e tudo começa de novo, sem respeito nenhum pela equidade.
Depois olhámos meio pasmados o casario, naquela arquitetura de mau gosto da Solum e ficamos ambos com pena de eu ter razão.
Finalmente remataste com aquele teu jeito impaciente: – Pois, anda!
Agora veio a notícia. Como o som sinistro de uma mina antipessoal. Ouvi a notícia e baixei-me um pouco como quando isso acontecia na guerra e um dos nossos era ferido.
Passado o choque inicial a que a razão recusa habituar-se, ficou a sensação de que algo ficou a meio, uma conversa adiada, um lugar vazio à mesa. Porque me lembro só de coisas insignificantes? Parte um amigo e só me ocorre que me esqueci de lhe contar a última anedota, que lhe fiquei a dever um almoço. Deve ser o sentimento que me ficou do tempo da guerra, de quando os amigos me eram tirados a meio de uma conversa. Mas nessa altura não havia tempo para o luto, a guerra não respeita sobretudo os que caem. E a esta enorme distância dá a impressão que todos fomos abatidos na guerra, todos morremos um pouco. Mas a verdade, Padilha, é que nós sobrevivemos para podermos ser vítimas de novo, para morrermos de novo.
– Também ganhámos alguma coisa na guerra. Dizias tu, com o teu otimismo teimoso.
Eu torcia o nariz sem argumentos. Hoje reconheço: pelo menos tu ganhaste. Ganhaste esse aprumo e essa dignidade genuínas, que eu sempre achei falsas na tropa. Ganhaste uma verticalidade que na tropa é apenas arrogância. Mas sobretudo aprendeste, por contraste, a ser feliz na vida e a partilhar essa felicidade com aqueles de quem gostas.
Gostaria de te dizer como Cantanhede saiu à rua para te acompanhar, como foram solenes as honras militares que te prestaram, como a tua mulher estava digna, como as tuas filhas são corajosas, como a tua neta estava linda. Devias ter visto, ias gostar!
Não devia recusar-se uma última visão das coisas a que um homem dá valor.
Que pena, Padilha, tinha uma anedota porreira para te contar. Agora fiquei com ela atravessada aqui na garganta e parece-me estúpida.
Se calhar tens razão. Se calhar já tivemos a nossa conta. Se houvesse compaixão neste mundo uma desgraça por pessoa já bastava.

Junho, 6
Na estrada de Vale-de-Cide, daquele lado, onde o muro do arvoredo criava uma cabeceira em que apetecia encostar a cabeça para dormir a sesta, havia um pó finíssimo, sobre o qual os camponeses deixavam uma nítida impressão plantar a cada passada.
Nessa altura homem e planeta eram uma comunhão. No meu egoísmo bucólico ignoro toda a dor precisa para imprimir cada uma daquelas pegadas na poeira da estrada morna, como borralha aquecida na fornalha do Sol.
Hoje ninguém passa a pé naquela estrada com o peso de um dia de lavoura às costas, e sobre o alcatrão não há uma só marca humana.
Há de haver uma forma de sermos felizes sem desumanizarmos o mundo.

Junho, 7
– Onde caíram os soldados, onde tombaram, onde o seu sangue tornou a terra vermelha, nascem às vezes flores…
– Então porque não há aqui flores? Ninguém amava os soldados que morreram?
– Não é por falta de amor que as flores não nascem, minha filha, é por não ser primavera.
– E porque nascem os soldados, por ser inverno?
– Não minha filha, os soldados nascem todo o ano, por falta de amor.
– Então porque não nascem flores todo o ano em vez de soldados?