21.4.06

O Silêncio da Palavra



Texto escrito para o blog da turma do 6º ano da professora de História e Geografia de Portugal, Sónia Cruz, do Externato Maria Auxiliadora de Viana do Castelo.


O que vieram fazer para a rua naquele dia as pessoas de Lisboa, antes ainda do sol nascer e quando os blindados cruzavam as ruas? Porque não faziam o que os soldados lhes diziam, apelando para que ficassem em casa?

Semanas antes, outros soldados saíram à rua em Lisboa, mas não traziam armas nas mãos nem vinham devidamente aprumados. Traziam muletas, cadeiras de rodas, braços ao peito e levantavam um cartaz de protesto sobre as suas cabeças.

Sobre as suas cabeças os soldados exibiam o espaço vazio das palavras por escrever, o silêncio dos gritos por soltar; exibiam o derradeiro protesto dos amordaçados: um cartaz em branco.

Os automóveis na Avenida da Liberdade pararam para os deixarem atravessar e as pessoas pararam para ler o silêncio insultuoso do cartaz, mas em breve outros soldados que ainda tinham pernas e braços e armas vieram fazê-los parar e levaram-nos com eles. Sobre o chão ficou o cartaz em branco rasgado; a palavra duas vezes amordaçada; a palavra banida antes de ser dita; o próprio silêncio da palavra por dizer, que de tão óbvia fora previamente censurada, como um filho que é negado antes de ser concebido porque os pais se odeiam.

Agora as pessoas de Lisboa saíram à rua. E porque enchem as pessoas as ruas de Lisboa só porque os soldados apearam do poder os governantes do país? Porque não ficaram em casa, à espera que tudo se acalmasse? Que vêm dizer as pessoas umas às outras em Lisboa? Que gritam elas na rua?

Hoje nenhuma palavra foi negada. Hoje nenhum cartaz foi rasgado por ostentar a ausência da palavra proibida como se o silêncio fosse o molde da própria palavra e a repetisse incessantemente a toda a gente.

As pessoas gritam em Lisboa a plenos pulmões todas as palavras e todas as palavras são possíveis e de entre todas as palavras que dizem, o povo de Lisboa diz a palavra mais proibida de todas, aquela que foi proibida mesmo quando não foi escrita e o seu lugar em branco num cartaz fez sentir ainda mais a sua falta.

Foi isso que as pessoas foram fazer para a rua naquele dia do mês de Abril, quando as flores costumam abrir ao nascer do sol em busca da luz - enquanto os soldados apeavam do poder aqueles que proibiam até o silêncio das palavras, o povo de Lisboa saiu à rua em busca da Liberdade.

1.4.06

O Cancioneiro do Niassa


Foto do ex-Alferes Miliciano António Silvestre

O alferes Gonçalves vai molhando a garganta entre as estrofes da canção. Leva à boca a garrafa de litro da cerveja, sem deixar de balançar o corpo ao ritmo da guitarra manhosa do cabo Rosmaninho. Dá impressão que acompanha a canção com um instrumento de sopro, donde afinal só saem uns gorgolões sonoros de Cuca mal confeccionada.
A verdade é que nem o alferes tem uma boa voz nem o cabo grandes unhas para a guitarra, e aquela canção do Bob Dylan no português alfacinha do Gonçalves, ganha requebros de faduncho canalha. Mas é o que temos de mais aparentado com a música.
Cada um de nós tem uma “bazuca” de Cuca à frente e, a servir de bucha, um casqueiro e manteiga surripiados à dispensa do rancho geral.
O furriel vagomestre tem aqui a difícil missão de não deixar morrer à fome os soldados com os géneros que conseguirem sobreviver à rapacidade de todos os responsáveis pelo seu transporte, desde Lourenço Marques até lhe chegarem às mãos, em Mueda. Não sem antes ele próprio retirar a sua maquia que, claro está, lhe cabe por direito. Se há alguma coisa que se aprende depressa na tropa é que, se formos tão escrupulosos que não nos apropriemos de nada que não nos seja devido mas que esteja à mercê, é porque somos tansos, dado que somos os únicos a fazê-lo – num código de conduta a que damos o nome de desenrascanço.
O alferes Gonçalves e o cabo Rosmaninho desfiaram, pela ordem habitual, como se fosse um rosário, quase todas as canções do Cancioneiro do Niassa. Essas canções populares com letras adaptadas vão do brejeiro ao revolucionário.
Carpem-se as dores e faz-se a catarse da raiva contida dos combatentes, sob a complacência magnânima dos comandos militares que por vezes até assistem divertidos aos serões e tainadas. Complacência que a mim me sabe a uma espécie de concessão da última vontade aos condenados à morte.
Quando a miséria não é extrema, o vagomestre ainda arranja algo de mais substancial. Mas hoje temos que nos sentir felizes por aquele casqueiro cheio de gorgulho e larvas cozidas que aqui em Mueda, à medida que o tempo vai passando e a nossa repugnância diminuindo, vão perdendo a reputação de porcaria para ganharem o estatuto de recheio, em jeito de boroa merendeira da minha aldeia.
O meu analfabetismo musical só me permite abanar a cabeça e bater umas palmadas nas coxas, a dar a ideia que comungo do espírito de grupo. Mas não me atrevo a engrossar o coro que diz “Estou farto deles, estou farto deles; só mandam vir e não fazem nada”, com a minha voz que levou o padre de canto coral do colégio de Anadia, num acto desesperado de impotência, a propor-me fazer, pelo menos de vez em quando, gazeta às aulas.
Quando a música das diferentes canções já nos parece a todos a mesma, e a guitarra do cabo Rosmaninho não consegue ir além de um doloroso latir de animal ferido, está na hora da cachaça da sossega. A garrafa da cirrose a haver aparece repentinamente em cima da mesa, pronta para uma geral com despudores convidativos de prostituta.
Ou é do álcool ou a Lua está linda hoje, e surpreendentemente a minha voz de falsete esganiçado parece até nem destoar muito das outras. De repente, a noite ganha encantos boémios de fim de festa, enquanto gritamos a plenos pulmões:
“Estou farto deles, estou farto deles; só mandam vir e não fazem nada”, dado que a versão original, “Eles comem tudo e não deixam nada”, seria aqui, em bom rigor, até um pouco injusta.
Separamo-nos à saída da arrecadação onde decorreu o nosso banquete de casqueiro, manteiga, cerveja e cachaça. Os outros vão-se calando à medida que se encontram sozinhos na noite, mas eu sinto-me inesperadamente confiante nos meus dotes canoros e continuo a repetir o estribilho vezes sem conta.
Entro assim na flat, fazendo as despesas da festa sozinho. Os olhares dos meus companheiros de quarto pousam em mim, com um ar de desgosto que eu atribuo à minha crónica inaptidão musical. Mas quando repito “O que foi? O que foi?” ofendido com tanta insensibilidade, as três palavras que me atiram como resposta, dão-me volta ao estômago e fazem-me cair de joelhos num vómito de enjoo, raiva e dor: – O furriel Camões.
Estas frases não precisam de verbos. Aqui, quando se diz o nome de alguém entre dois silêncios, só perguntamos “Uma mina?”, “Um tiro?” – Foi um fornilho.
Acabo de curtir a bebedeira aos pontapés a um bidão, enquanto grito a plenos pulmões que “estou farto deles, estou farto deles”, já sem qualquer vestígio da música do Zeca Afonso.