10.7.20

A minha amante

Hoje vi um caçador com uma arma nos braços e lembrei-me de ti.
Às vezes num abraço apertava-te contra o peito. Tínhamos uma relação muito íntima; mas havia um vago sentimento de perversidade, acho que mútuo, por se tratar de uma história escaldante.
Foste de conquista fácil, peguei-te e entregaste-te logo sem nenhuma resistência, mas claro, naquela vida, com quantos soldados não ganhaste tu experiência antes de mim… 
O nosso primeiro encontro foi logo muito revelador do que esperavas da nossa relação, porque reparei que trazias lubrificante nas zonas mais íntimas. E claro, na primeira oportunidade que tive, peguei em ti e fomos sorrateiramente para a mata. Não sei já quantas vezes disparei, contigo sempre nos meus braços. Estremecias a cada disparo meu. Parecias querer saltar das minhas mãos. Mas nada disto admira, pois éramos ambos muito jovens.
Estivemos juntos cerca de meio ano apenas, mas vivemos coisas que poucos vivem durante uma vida inteira. À luz do dia fizemos coisas de morrer, mas era à noite que te sentia mais minha, porque enquanto dormia, tu ficavas encaixada toda a noite entre as minhas pernas. Às vezes ficavas deitada no chão a servir de almofada, para eu adormecer com a minha cabeça sobre ti.
Sempre que a guerra o permitia gostava de passar óleo por ti, como todos os homens gostam de fazer às suas amantes. Depois ficava a olhar-te admirando as tuas formas robustas, realçadas com o brilho sedoso do óleo.
Contigo junto a mim sentia-me mais homem e mais poderoso. Nenhum inimigo meu estava seguro num raio de centenas de metros. Ilusões inocentes de juventude. Erros de formação que levei anos a corrigir.
Na verdade os nossos atos eram reprováveis à luz dos valores mais elementares da moral e dos costumes, mas em tempos de guerra é comum ignorarem-se esses valores, o que não me serviu de consolo por muito tempo.
É que, na guerra, mais tarde ou mais cedo, acabamos por perceber que a noção de crime é uma regra sem exceções. E percebemos ainda que a lei que faz da guerra uma exceção é ela também um crime.
Não quero ser injusto, mas se te levei por maus caminhos foi porque me tentavas constantemente. Quando te encostava ao meu ombro e o meu dedo procurava, no meio do anel do guarda mato, aquela tua protuberância fatal, sentia um calafrio, porque sabia que logo abrias fogo.
É fácil ser-se casto num convento, como é fácil ser-se pacifista em tempo de paz. Difícil é caminhar o dia inteiro debaixo de fogo, o terreno minado a escaldar os pés, e ter uma arma na mão; tanto, quanto seria guardar castidade vivendo num harém. Desculpa se esta comparação te parecer estúpida, é que eu tenho dificuldade em desculpar-me de ambas as coisas; de ter sido combatente e de não ser casto.
É por isso que quando conheci pessoalmente a Kalashnicova, não resisti. Achei-a mais exótica, mais ágil, e assim que pude também a levei sorrateiramente para a mata. Devo confessar que me deu muito gozo, e embora tenha dado alguns tirinhos comigo,  não foi com a mesma frequência, nem com o teu vigor.
Por fim, como acontece frequentemente na guerra, o caçador virou presa, e a morte quase me levou. Alguém, também com uma russa nas mãos, armou-me uma armadilha traiçoeira. Por pouco não morri contigo nos braços.
Prostrado ainda, na picada do Chindorilho, vi-te desfigurada a meu lado. Não imaginas como me senti indefeso por te saber incapaz de voltar a fazer fogo.
Depois, o helicóptero afastava-se, e, olhando para baixo, vi-te abandonada na berma da picada. Adeus Gê. Três vezes me despedi, adeus, adeus. Mas logo te esqueci.
A guerra uniu-nos e a guerra separou-nos.
Qual terá sido o teu destino? Cruel é o coração dos soldados; ainda o som dos tiros não se tinha calado nos meus ouvidos e já eu te tinha esquecido. Esqueci-te como se esquecem as paixões escaldantes de verão. Sem mágoa nem saudade. Um orgulho idiota de macho, uma arrogância de predador saciado.
Será que ainda te lembrarias do meu nome? Dos quilómetros incontáveis que fizeste pendurada em mim? Das noites que chegavam cedo e das madrugadas de cacimbo, contigo sempre colada a mim? Quantas vezes te transportei sobre os ombros, pelas picadas tão longas que pareciam dividir o mundo ao meio… Os dois braços estendidos sobre ti, a parecer um Cristo crucificado.
Às vezes pedem-me para contar uma coisa boa da guerra, eu ponho-me a pensar, e custa-me lembrar de uma que seja, mas depois vêm-me à memória os momentos em que o medo e a coragem se misturavam de tal maneira, contigo sempre a vibrar bem junto ao meu corpo, que poucas coisas se lhe comparam. Talvez, Gê, três coisas deste mundo em conjunto, que me vêm obsessivamente à ideia: o espanto do primeiro dia de tempestade, o assombro da segunda hora de trovoada e o êxtase do terceiro segundo do orgasmo.

mcbastos 





20.1.20

Uma coisa da memória.


Na minha memória a imagem obsessiva de um navio deixando o cais. Nunca vai a lado nenhum, é uma eterna partida. O seu rasto de caracol sobre as águas. O seu rasto brilhando ao sol. E eu vou lá dentro. Eu a ver o cais cheio de lenços esvoaçando adeuses. As gaivotas paradas no ar, voando contra o vento.
Adeus mãe, que eu vou salvar o império e volto já.

Eu levo um barco na minha memória, e o barco leva-me a mim, que o levo a ele. Eu e o barco no abismo infinito de dois espelhos frente a frente mutuamente espelhando-se.
Com o tempo, o barco esbate-se na minha memória, como os sonhos ao acordarmos. A vigília faz perder lucidez aos sonhos, o tempo apaga as lembranças da memória; o que resta afinal do que vivemos?
Mas se nos lembrássemos de tudo, não teríamos tempo para viver.
O barco deixou de navegar e foi já desmantelado. Dele resta agora apenas esta imagem imprecisa que guardo.
O tempo devora tudo. Dor e gozo, afetos e ódios têm o mesmo valor para a voracidade do tempo. Num dia acaba o barco, noutro dia apaga-se a sua imagem sobreviva em mim, depois acabo eu, o planeta… e o universo onde, num pestanejar do tempo, tudo isto aconteceu.
Mas hoje ainda existe muita coisa na minha memória e, porque a memória dos homens é o lugar para onde vão os barcos quando morrem, um barco que já não existe navega, navega em mim, mas nunca desaparece, como se fosse a navegar em vão contra a corrente.
No convés, já não soldados, apenas sombras. Talvez as sombras que dantes iam dentro dos soldados, que tudo o que um soldado leva dentro de si para a guerra são sombras.
Vão salvar o império, mãe.
Há coisas que só existem na memória. Coisas que eram num tempo que já não é. E coisas que nunca foram como as lembramos. A minha memória guarda só o que quer, e o que guarda, retoca e corrige. As minhas lembranças são plágios da realidade interpretados ao gosto da minha memória.
Lembro-me de ter a certeza de não haver diferença entre o teu corpo e a imagem dele no meu pensamento. Cabia à justa no meu desejo.
Quando chegavas, um brilho trémulo nos teus olhos, fazendo lembrar a ansiedade na véspera das grandes viagens. Logo depois, as nossas mãos aflitas em afagos de brisa fresca sobre o areal escaldante.
As pessoas que não entendem de afetos perguntam às vezes se somos felizes ainda. Coitadas, não sabem que o amor é uma coisa da memória. O amor é um barco sempre abandonando o cais, sem ir a lado nenhum, porque amar é um despropósito. O amor com um propósito é como casamento por conveniência. Além disso, “ainda” e “amor” são duas palavras que não vão bem juntas, porque amar é um verbo que só se conjuga no presente mais que perfeito.
As coisas todas, antes de serem devoradas pelo tempo, são constantemente transformadas noutras; constante só o que sentimos por elas, porque o amor é irreversível, ama-se uma coisa e essa coisa fica amada para sempre. Nunca deixamos de amar quem amamos, quem amamos é que às vezes deixa de ser quem era, ou esbateu-se em nós a memória de ter sido.
Muda o mundo, e muda o mundo dentro de nós, mas acreditamos na coerência da nossa memória, porque precisamos de uma narrativa que dê sentido à vida.
Não sei já muito bem como foi quando o Niassa partiu. O rasto de espuma sobre as águas do Tejo, os lenços em Alcântara como asas de gaivotas sentadas no vento e a sombra dentro do peito a ouvir a morte ao longe a chamar por nós. Volto já mãe.
E depois, quando voltamos, somos apenas uma lembrança incompleta de nós, porque os sonhos são sempre maiores que a realidade, e os pesadelos também. Pobres daqueles que realizam os seus sonhos; concretizar um sonho é cortar as asas a uma ave. Há coisas que não se podem apear porque pertencem aos céus. Porém, os pesadelos, concretizamo-los muitas vezes, porque os pesadelos não voam, são do chão.

O som do helicóptero a bater no ar. Os ouvidos ainda a apitar da explosão.
E numa vertigem, o regresso a casa. A insuportável dolência da paz. Só a silhueta em forma de seio de mulher da serra do Buçaco a despertar-me os sentidos. O eco dos tiros a desaparecerem a pouco e pouco.
Depois do último tiro há sempre alguém que pergunta quem ganhou a guerra. Mas quem ganha uma guerra, ganha o quê, se só resta destruição? Só quem nunca combateu é que quer saber quem ganhou a guerra.
De todos os erros humanos, a guerra é aquele que mais viola impunemente todas as conquistas da humanidade, e só é possível porque criámos deus para arcar com as responsabilidades. Deus é o perfeito bode expiatório dos erros humanos porque é uma invenção humana, e, assim, a absoluta inocência perante os crimes que cometemos.

O barco navegando miragens, a despropósito como o amor, é o esforço da minha memória para corrigir a História. Há barcos que nunca deveriam largar do cais, porque há viagens cujos destinos nunca permitem regresso digno.
Fui, mãe, salvar o império, e fiquei lá. Eu, que voltei, sou outro.