31.5.10

Manif


Estava ameaçado o céu nublado mas o sol veio à manif.


Protestar com música porque a crise não é de inspiração.


Coimbra é uma canção, ou l'avril (oublié) au Portugal


O luto ainda não… A luta continua!


Defender… com afecto.


Até agora tudo bem… estamos só a cair. Será que acordamos antes de bater no chão?

12.5.10

Inquietações

Gato
Ontem saí de casa e havia um gato sentado à minha porta.
Pensei todo o dia nisto.
Não é expectável que um gato durma na soleira da porta de um prédio da minha cidade.
Por assim dizer, aquele gato tornou rural a minha urbanidade.
Hoje saí de casa e não havia gato nenhum, mas a cidade não voltou a ser a mesma. A reversibilidade do real não torna reversível uma metáfora.
A partir de hoje vivo numa aldeia onde falta um gato.

Punho
Ela dobrou a esquina e apareceu de repente.
Do muro rasteiro da rua um pedinte ergueu a cabeça para olhá-la. Ia estender a mão no seu hábito humilde de súplica, mas parou o gesto.
Do seu ponto de vista, rente aos pés de quem passa, todas as pessoas são altas. Porém, aquelas pernas de uma elegância interminável elevavam ao inatingível o seu ponto de confluência, onde o sexo seria uma inevitabilidade.
Isso aumentou o seu sentimento de exclusão, e a mão ainda parada a meio do gesto tremeu um pouco.
Por um curtíssimo instante deixou de ser um pedinte.
Foi quando uma foice de raiva lhe cortou o olhar e a mão parada a meio do gesto se ergueu num punho cerrado.

Música
Por entre os corpos dos seus entes queridos que lhe caíram em cima, a criança bijagó viu os soldados portugueses destruírem as tabancas da sua aldeia.
Se fosse um filme americano ouvir-se-ia uma música emocionante. Ouve-se sempre uma música emocionante com o intuito de transformar em arte as cenas de guerra mais obscenas. E os espectadores recostam-se em êxtase no sofá.
Mas o menino bijagó só ouvia o esguichar do sangue a sair do pescoço do seu pai como um javali ferido e o estertor da sua mãe como grunhidos de uma porca a morrer. Lá fora a guerra continuava sem mais estética nem humanidade.
Será que este menino, quando for grande, terá mais ódio aos soldados portugueses, aos sonoplastas americanos ou aos espectadores em êxtase com a matança?

Concavidades
À entrada do Fischmarkt em Hamburgo sentei-me cansado.
Uma canadiana de cada lado e à minha frente a pala côncava do saco da câmara. Do lado esquerdo o tocador de pianola, com o seu chapéu côncavo. Do lado direito os meus companheiros do Hospital Militar de sorriso côncavo adivinhando o desfecho da história.
Chegou uma senhora de alma côncava olhando-nos aos dois.
A senhora mediu a concavidade de cada um de nós: um perneta velho ou um jovem perneta?
Ia a decidir-se por mim quando a câmara reflex de lentes intermutáveis com uma zoom de 200 mm me escorregou para o regaço mal estiquei a mão.
Quando a moeda lhe retiniu na concavidade do chapéu, o velho tocador de pianola olhou-me vitorioso a julgar que levou a melhor por ser mais miserável do que eu.

Mozart
Na parede da sala o piano vertical tem a tampa levantada. Na pequena estante da tampa uma pasta de papel amarelado. Um jovem olha a cidade pela janela e faz estalar os dedos das mãos.
Na cabeça uma pequena confusão de pensamentos. À mistura com os restantes pensamentos, uma partitura de Mozart e uma decisão adiada.
A partitura vê-se bem mas a decisão não. Está adiada.
Ele faz correr as notas de abertura da peça pela memória. A decisão fica encoberta pela música.
Não olha a cidade, apenas dirige para lá o olhar. Quando dirigimos o nosso olhar para o infinito, habitualmente procuramos ver algo no nosso íntimo.
Depois, a réstia de um sorriso atravessa-lhe o rosto e ele senta-se decidido em frente do piano, esticando sempre os dedos. Abriu a pasta amarelada e passou para cima a folha de papel que dizia "Mozart Piano Sonata in C major, K. 309".
As mãos pairaram alguns segundos sobre o teclado.
Enquanto isso as notas de abertura da peça correram de novo pela memória, mas agora a decisão adiada via-se claramente em forma de rosto de mulher com olhar de súplica.
Quando os poderosos acordes se espalharam pela sala como um carrilhão de esperança, a réstia de sorriso abriu-se no rosto e o calor reconfortante do perdão encheu-lhe o peito.

Açucenas
Sei de um pequeno pedaço de terra na serra da Lousã onde nascem açucenas. Ao lado há um bosque que convida a intimidades.
Será que os líquenes sobre as pedras ainda guardam a ternura dos teus dedos? Será que o vento ainda viaja pela serra com as nossas palavras?
Lembro-me que pegaste numa açucena e a puseste no cabelo a lembrar-me que os amantes são sempre ingénuos e gostam de lugares-comuns.
Não fora o peso do Tempo e sentiria ainda o mesmo calor, apesar do vento frio que anunciava o Inverno prestes a chegar.
Porque pesa o Tempo? Porque murcham as açucenas?

Vento
Num canto do parque de estacionamento algumas folhas secas rodopiam. Um saco plástico aparece do nada e rodopia também.
O vento levanta-o e deixa-o cair, quase o faz dobrar a esquina e o liberta, mas volta a puxá-lo para o canto.
Eu fico a olhá-lo por não ter nada que fazer.
O bailado do saco plástico anima o canto árido do parque de estacionamento.
As folhas secas atrás dele marcando o movimento. O meu olhar embalado pelo movimento. O meu pensamento atraído pelo olhar.
Que música tocaria o vento para inspirar aquele bailado?
Tudo tão árido em meu redor, e um alento de poesia sobre o asfalto.
Quase vi o rosto de Deus sorrindo.

Tinto
Não fazes ideia do que estou a falar, pois não? Quando digo que me fazem pena as pessoas felizes, será que me entendes?
Eu sei que bebi de mais, eu sei que fiquei de repente com vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Mas tudo o que está conformado aos seus limites naturais me desgosta profundamente.
Não vês que do ponto de vista do quadrado, um cubo é uma quimera absurda. Não vês que do ponto de vista da baga bairradina, um Frei João tinto é uma utopia delirante?
E se eu fosse feliz, não estava sentado nesta caixa, de copo meio na mão, olhando o fogo em busca da minha transcendência.
É que, quando olho à minha volta, sinto a intransponibilidade dos meus limites perante a formidável incompreensão da tua ausência.


Inquietude
Há uma vantagem em estar acordado: podemos sempre ir dormir. A vantagem de estar a dormir é que não precisamos de grande esforço para sonhar. Já estando acordado, só alguns o conseguem fazer. Porém, só um número ainda mais pequeno é que consegue estar suficientemente acordado para se inquietar com o drama de estar vivo e pensar.