28.1.16

Uma história mal contada


Eu a olhar para dentro do cacifo e a pensar “que diabo vim eu aqui fazer?”
Acabei por desistir, e dirigia-me já para a cama quando me lembrei de ter visto a tua foto descolada. Voltei para trás e tornei a abrir o cacifo.
Parece impossível, mas a tua foto descolou-se de novo. Todas as outras fotos se mantêm no lugar, a tua é a única que teima em descolar-se. Parece bruxedo.
Devo ter estado imenso tempo a olhar para dentro do cacifo, porque o furriel Bastos passou por mim com um carregador de G3 na mão, e disse:
– Parece que tens alguma coisa contra esse cacifo.
Se não fosse cá por coisas mandava-o à merda. Gosta de se armar em esperto.
Agora vim sentar-me na cama. Da cama eu vejo uma nesga da parada e ao longe o refeitório. E depois, árvores e mais árvores. Nada nem ninguém me impediria de me levantar e ir em linha reta até àquelas árvores e depois, não parar, seguir sempre em frente até desaparecer. Levariam muito tempo para darem pela minha falta, o tempo suficiente para eu me pôr ao fresco. Mas claro que não farei isso; não por patriotismo ou falta de coragem, mas pela mesma razão que nenhum dos meus camaradas o fará. É que não há nada para além do refeitório, durante centenas e centenas de quilómetros. A não ser árvores, claro.
Estamos presos neste lugar danado, numa prisão sem muros, sem nada que nos impeça de fugir. A não ser a distância. Estamos a uma distância louca de qualquer sítio para onde possamos fugir.
O furriel vem aí de novo, agora com a coronha da G3. Vem longe e já vem a arreganhar-se. Vai dizer mais uma piada, pela certa.
– Deixa lá, não fiques assim, ainda vais encontrar um cacifo que te entenda.
Às vezes penso que o senso de humor pode ser um disfarce para a estupidez. Que anda ele a fazer, levando uma peça da G3 de cada vez?
Reparo agora que estou sozinho na caserna, e a nesga da parada não tem ninguém. Parece que neste fim-de-mundo só estou eu e o furriel. Eu a magicar naquela coisa estranha de a tua foto se descolar a toda a hora, e o furriel que parece andar a roubar uma G3 peça a peça.
É tudo tão estranho quando a nossa vida é vivida fora do seu lugar. É como tentar usar um carregador de uma Kalash numa G3.
Dou por mim a pensar: não sou daqui, estou aqui a mais, e parece que ninguém se sente feliz por eu aqui estar; e no entanto, se eu tentar fugir podem até matar-me.
Não sou muito inteligente, não sei muitas coisas, é verdade, mas entendo que isto não faz sentido, e por isso não pode acabar bem. E as muitas pessoas que sabem mais do que eu já entenderam tudo há muito tempo, e é isso que mais me chateia. Nós aqui a aguentar esta guerra como se ela fosse para durar sempre, e as guerras são para ganhar ou para perder, percebes Zulmira? Nós fomos atirados para a fogueira e depois esqueceram-se de nós. Por isso sinto uma raiva enorme por eu valer tão pouco; por eu ser obrigado a estar aqui e mesmo assim fazerem de conta que eu não existo. Eu sou um carregador de uma Kalash metido numa G3, mas sou tão pouco importante que ninguém dá por isso. Sou uma personagem de uma história mal contada.
De repente lembrei-me do que queria do cacifo e voltei a abri-lo. E lá está a tua foto de novo descolada. A fita-cola é igual à das outras, mas só a tua foto é que se descola. Descola-se no bordo de cima, depois cai, presa no bordo de baixo, e fica de costas para mim com a dedicatória de pernas para o ar: “Gardo-me para ti”. Fiquei imóvel a olhar para aquilo ignorando novamente o que vim fazer.
– Gosto de vos ver assim amigos de novo.
O palerma do furriel a escangalhar-se de riso, agora com o cano da G3 a passar por mim, em direção à parada. Ele deve entrar pela secretaria mas quando sai, passa de propósito pela caserna, para me chatear. Vejo-o durante uns segundos a caminhar na parada e depois desaparece.
Dou conta que ficou aqui o maior silêncio. Não se ouve nada.
Nunca me senti tão só.
Para lá do refeitório a floresta sem fim. Um mundo vegetal que esconde um universo misterioso feito de coisas que me são estranhas e que me fascinam.

Agora que sei, tantos anos depois, Zulmira, que te perdi no dia em que fui para África, penso que estive numa terra que me deslumbrou mas que nunca conheci, onde estive preso sem cadeias, e que combati numa guerra onde morri embora tenha regressado.
Mas o que regressou de mim foi apenas um restinho que a guerra não matou.
A tua foto foi comigo e voltou comigo. Enquanto isso, tudo a mudar à nossa volta. O mundo inteiro enlouquecendo à nossa volta, e o teu sorriso na foto sempre igual. Morreram pessoas, e as que sobreviveram mudaram tanto que se pode dizer que também morreram e que vieram outras no seu lugar.
Quanto de mim recebeste tu de volta, Zulmira? E quanto de mim guarda ainda a memória do meu amor por ti?
A dada altura, tive uma certeza tão grande – uma certeza absoluta – de que deveria fazer qualquer coisa, mas fiquei parado vendo apenas as coisas deixarem de fazer sentido à minha frente.
Parado, como o teu sorriso na tua foto, o teu sorriso que teimava em se esconder como um mau agouro.
A tua foto a querer dizer-me alguma coisa, como um sinal teu atravessando o mundo todo para chegar até mim. Mas que pode fazer um soldado em que ninguém repara, embora não pudesse estar mais fora do seu lugar? Como um carregador de uma Kalash metido numa G3.
Um soldado preso à guerra, sem ter para onde fugir.
Morri em África, Zulmira; o que regressou de mim foi a parte que resistiu à loucura do mundo, porque não sofre nem ama.
O dedo no gatilho e as mãos já não me tremiam. Deixei de se eu, Zulmira, quando as mãos deixaram de me tremer ao disparar a G3.
Voltava a África se pudesse, voltava ao passado para fazer alguma coisa. Alguma coisa que me fizesse hoje ter a certeza de que não morri lá.
Gostaria de voltar a África para conhecer África sem guerra, sem o peso do perigo que não deixava apreciar a paisagem.
Voltava, para ver como era a largueza da terra sem o cansaço do corpo e a fadiga do olhar, para ver como era a paciência do tempo sem a ansiedade e sem o medo da morte.
E sem a saudade de ti, que me ia modificando lentamente, transformando-me em alguém que fui deixando de conhecer.
Voltava para um tempo onde ainda havia alguma coisa em mim que sofria e que amava, quando olhava o teu sorriso na foto. Um tempo em que o nosso amor ainda fazia sentido.
Voltava, se tu pudesses ir comigo para corrigir a história das nossas vidas. Uma história mal escrita, com uma guerra pelo meio.
Uma história que eu sei, como se ma tivessem contado, sobre um amor de que já não me lembro bem. E o amor precisa de ser lembrado, porque o amor é uma coisa da memória.
Uma história que continuou até hoje, mas que nunca se livrou da guerra.
Esta nossa história, Zulmira, que vamos vivendo e de onde se vê sempre a guerra ao fundo.
Sempre, sempre ao fundo.

Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.

26.1.16

Palavras como que de amor

Eras vaga e indecifrável
casta na minha ignorância
Via-te desprovida de biologia
sem excreções nem ânus
E do sexo
apenas o desenho imaginado
da tua púbis
na confluência suave das coxas
sem os pormenores imperfeitos  da animalidade
Não sei quando foi que acordou em mim
a bestialidade vertiginosa
de te canibalizar

Não nos conhecíamos
e conhecemo-nos
Não nos amávamos
e amámo-nos
Mas a vida tomou conta de nós
e o tempo desgastou
o cimento entre as pedras
a pouco e pouco
até ficar uma ruína
até ficarmos soltos
a desabar
E finalmente
voltámos a desconhecer-nos

Quando cruzavas as pernas
os teus gráceis
ou ao subires as escadas
os teus glúteos
tocavam-se num átimo feliz
e depois estremeciam a acomodarem-se
insatisfeitos com as leis da inércia
Tal e qual os meus olhos a segui-los
e as minhas mãos inquietas
Mas não é o impacto do estalo
que recordo
são as ondas de choque
a corrente telúrica
por sob o teu vestido

Quase te amo
Sei que quase te amo
Só não sei quanto falta
para não ter convicções nenhumas
e ficar olhando  para o caminho
por onde hás de vir
e sentir uma diferença
algures dentro de mim
entre a epiderme e o infinito
Agora
sinto apenas uma diferença no corpo
quando te vejo chegar

Morremos tantas vezes em Mueda
Morremos sempre que uma voz se cala
por estarmos aqui
Às vezes até acordamos já mortos
por isso à noite
os soldados bebem e cantam
para adormecerem vivos

Meu inimigo
tão íntimo que somos
A vida uniu-nos
sem raiva nem ódio
A nossa arena
e o nosso lar
é  a mata antiquíssima
onde nos tentamos matar
como duas almas gémeas
aguardando uma única vida disponível

O melhor combatente
não é o que tem esperança
é aquele a quem não resta
caminho possível
para um último afeto
Solidário com a Morte
levará consigo
no derradeiro abraço
o seu mais íntimo inimigo
certo que a Vida
é uma patologia do Cosmos
é a pureza inquinada

O dia em que vais morrer já começou
Algures nesta picada tombarás
e deixarás de saber
tudo o que aprendeste
Tornar-se-á inútil
a longa corrente de seres vivos
que te antecederam
para que fosses possível
desde o princípio do mundo
até ao rebentamento da mina

A guerra é a negação de Deus
Que obra imperfeita
faz perfeito o seu criador
Nós
ao menos
temos a desculpa da estupidez

Não os deuses
mas os humanos apenas
são capazes de amor
Os seres perfeitos
não têm faces ou arestas
são as esferas
do mundo etéreo
Amá-los ou temê-los
é-lhes pois
indiferente
Os sentimentos
à escala divina
são uma imperfeição humana
que só noutra imperfeição
se refletem

É péssimo ser otimista
Quanto maior a sede
mais pequeno parece o copo

Comigo
na casa deserta
vivem
não fantasmas
mas ausências
Ausências dos afetos
e das pessoas
e
temo-o seriamente
faltar-me-ão um dia
as próprias ausências
como a insónia
que sucede
às noites mal dormidas
Que me visitem então
os fantasmas

O sobrado da adega
guardou algum tempo
os objetos esquecidos da família
Ficaram ali a desmemoriar
Quando já ninguém se lembrava
das suas histórias
foram jogados fora
como se faz
com as pessoas

A poesia
é a arte de dizer lugares-comuns
pela primeira vez

Por cada comboio que parte
ficam muitas histórias por contar
A minha história
também não embarcou
vou-me afastando irremediavelmente
da vida que vivi
e aproximo-me de quê
eu que viajo de costas para o destino

Quando estiveres perdida
procura-te no meu coração

Às vezes a noite
é um pássaro triste
que crocita saudades
num bosque distante
dentro do peito
Às vezes
um navio fantasma
num mar de brumas
e eu preso
à roda do leme
Em que porto desembarcaste
ou que vaga te levou
ou desencanto
E eu ao leme
náufrago de ti

Num sobressalto da tarde
como se uma onda batesse
no cais da minha alma
ou sei lá que dor dentro de mim
eu percebi que  já é tarde
O que acabou em ti
meu amor
ou para que poente se evadiu
Num sobressalto da tarde
como se uma ave se alvoroçasse
por entre os ramos
ou sei lá que angústia no meu peito
eu percebi que nunca mais
Que morreu em ti
meu amor
Ou será que fui eu que morri
e a onda a bater no cais
a ave agitando os ramos
e o sobressalto da tarde
são apenas saudade
A tua saudade de mim

Nunca o espaço se entrepôs
nunca o tempo
Nunca a dúvida também
que a dúvida
é a maior distância entre dois amantes
Tudo o que afrontou este amplexo
feneceu a uma simples palavra
ou a um olhar só
Que grito profundo
pôs agora em ebulição
a superfície plácida das águas
num repentino alvoroço
de aves em pânico
Que manto de sombra
da face oculta da lua
veio cobrir de medo
a luz tranquila da tarde
que repousava em teu olhar
Que maldição
que rancor
de deuses desconhecidos
querem partir este amor uno
em duas solidões
Não pôde o espaço
nem o tempo
nem a dúvida
não poderá agora o medo
Aqui me ergo
pronto para a contenda
cruzado sem fé nem demanda
os ferros brandindo
a esventrar as trevas
Um pouco mais
um pouco mais
e restituir-te-ei a madrugada

Olhei para o lado e estavas lá
na luz âmbar que vinha do mar
serena como a madrugada
antes das grandes paixões
Toquei-te e o prazer
durou mais que o gesto
Ao meu lado
quando a tarde já exausta
mergulhou no mar
tu suspensa do infinito
por um grito suspenso de ti
e o tempo como que esperando
para acontecer
Abri os olhos e estavas lá
estremunhada de amor
o arfar das ondas ainda no peito
e a luz da tarde
durando nos olhos
porque o tempo não passa
enquanto o amor não envelhece
Sei que estavas lá
serena no âmbar da tarde
porque fui feliz

As marcas do nosso amor
na areia fina
a maré apaga
ou o vento
ou a chuva
Mas a leve carícia
dos meus dedos
na fímbria do teu corpo
ainda perdura
Nem o vento
nem outras mãos
só a dissolução
da memória
no lento suicídio dos dias
O tempo
tudo destrói

Um espaço vazio
minha filha
estaria no teu lugar
Aí não seria sequer um lugar
seria a continuidade do espaço
que agora interrompes
com a tua existência
não fora a cadeia incontável de ocorrências
que te deu origem
quiçá um fator desconhecido
e irracional
talvez o amor
talvez a oxitocina no hipotálamo
talvez a brisa em Olhos d’Água
talvez o olhar da tua mãe
ao cair da tarde

Vieste do Infinito
porque no Mundo
não havia nada como tu
e o Mundo ficou
um pouco mais bonito
depois de tu chegares
No íntimo mais ínfimo de ti
existe uma canção solta de mim
um grito arrancado de mim
um segredo contado por mim
mas que não são meus
vieram do Infinito também
como tu
Recebi-os dos meus pais
assim como o perfume das rosas
que vai passando de rosa em rosa
sempre igual
até ao fim dos tempos
Às vezes fico contente
por te ter dado o Mundo
às vezes fico triste
por não te ter dado algo melhor


Para deficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.

Ida à praia

Ainda de noite, e um alvoroço na casa toda, como se os objetos a acordarem nervosos. Eu a reconhecer o dia especial, com o sono a pesar-me na cabeça e a ansiedade a inquietar-me o peito. A buzina da camioneta de carreira a pôr os meus pais atarantados. De cinco em cinco minutos para não deixar descuidar os mais calaceiros.
A minha mãe atarefada e sem mãos a medir – Ó Zé, no estrobes q’eu no agarro o cu às mãos ambas.
O meu pai tropeçando nas coisas como se os membros todos lhe estorvassem – Entropiquei aqui no tapete – e depois preocupado com o tempo – Vai estar rõe este ano.
E eu agora já mais desperto, mas o rosto ainda empoeirado de sono. – Ó mãe, tenho fome.
Lá fora a camioneta ainda à espera, buzina, e de cada vez que buzina a Costa Nova mais perto.
O largo do Sobreirinho ainda com a calma do sono só sobressaltada pela corrida dos retardatários, a camioneta impaciente chamando, os meus pais parecendo ter ainda um dia de trabalho pela frente e eu num incómodo bipolar, eufórico e ensonado. E a Costa Nova, afinal, ainda tão longe.
Finalmente, acomodados na camioneta, afogueados da canseira. A minha mãe a tentar uma desculpa – Nestes dias é sempre munta tagarela.
O meu pai num sobressalto – Destes a lavagem à porca?
– Estroceguei-le umas covitas. Co as patarrabas e um punhado de farinha já ficou bem assalgalhada.
Por fim a camioneta a arrancar num estertor de tísica, mas logo um alvoroço nos passageiros ao verem um último calaceiro correndo atabalhoado e largando as coisas pelo caminho.
O alvoroço acalma com o embalo da carreira e o pigarro do motor. Os passageiros a tentarem acabar o sono interrompido e eu ainda ansioso, antecipando na minha imaginação a chegada à praia nas várias versões possíveis.
O meu pai ainda desassossegado – Estou c’uma fraqueirazita.
A minha mãe com um sorriso de vitória – Toma Zé, q’eu é que tenho d’olhar por ti.
Depois o meu pai mastigando de boca seca com receio de se queixar e a minha mãe castigadora por baixo de um sorriso maternal – É isto que tu queres? Estás aí a engrolar o pão proque nem te lembrastes da pinga.
Agora sim, o silêncio e a serenidade tomam conta de todos, embora eu ainda dividido entre a preguiça e a excitação.
O melhor da viagem é a paisagem com alguns traços de outono num setembro já cansado de verão. E o meu pai agoirento – Vai estar rõe este ano.
A paisagem num desfile de imagens corrige todos os anos o álbum da minha memória. Eu a lutar com o peso na cabeça e a poeira do sono e, agora ainda, o ranço pesado das pessoas. Quando eu já prestes a sucumbir, o hálito fresco do mar a despertar-me, ainda tão levezinho, que se calhar só ilusão.
Mas de repente o bom cheiro fecal da ria, o bom aroma pútrido do moliço, o bom perfume cáustico das pirâmides de sal. E a luz que cega.
A camioneta para antes da ponte de madeira. Toda a gente a pé e depois, do outro lado, a ver a camioneta avançando a apalpar terreno com medo de a ponte cair. Agora chegando junto a nós com alívio, entre palmas e risos.
Ao longe sobre um lençol de seda azul o eterno priapismo do farol da barra.
O mundo a mudar aqui. Para trás, as coisas da vida conhecida, com densidade, familiares para os sentidos e o entendimento; para a frente, as coisas de um outro mundo que só vejo durante quinze dias por ano, feito de coisas mais limpas, sublimadas e leves, que a mente não perde tempo a tentar entender porque os sentidos as abocanham sôfregos.
Tudo cândido e sereno, salvo a inquietude do mar.
A calma das águas, a inquietude das águas; a paradoxal vida das águas a deslumbrar os tolos, os poetas e as crianças, que as pessoas com tino e responsabilidades têm mais em que pensar.
Os operários nos estaleiros numa azáfama de formigas em volta do esqueleto de um barco. Os marnotos correndo de cuecas, correndo sempre, entre a salina e o monte de sal. Os moliceiros como gôndolas gigantes a mirarem-se no espelho da ria. E a praia agora já perto.
A Barra de Aveiro passa num instante, preciso de olhar com atenção. O farol fálico a passar por nós. De noite, risca a escuridão com um longo dedo de luz a esquadrinhar o negrume em busca dos barcos que se aproximem de mais dos seus quebra-mares e nos dias de nevoeiro ronca até nos enlouquecer. A passarem por nós também as pessoas, que parecem não ter propósito nenhum senão estar ali. Nem nos olham.
Férias é não ter propósito nenhum; nós agora ainda temos um propósito, quando chegarmos ao nosso destino ficaremos também só ali. 
Em breve a areia fina da praia. A areia como moeda de troca do sal. Dizem. Os navios nórdicos em busca do sal traziam-na como lastro e despejavam-na aqui. O sal, o lastro de areia e muitos séculos fizeram a praia da Costa Nova só para nós passarmos lá quinze dias.
Finalmente o mar. Uma luz tão limpa e um ar tão leve, que as pessoas a acordarem uma a uma. As cores das barracas a decorarem a praia. Listas feitas de barracas. Barracas feitas de listas. Casas feitas com as listas das barracas. Tudo tão arrumado. Tudo tão limpo.
O som do mar ininterrupto. O enorme lençol das águas a desdobrar-se até à praia em orgasmos de espuma.
A alma a levitar.
A camioneta parou e tudo parou dentro dela, como se as pessoas pasmadas com o bulício do lado de fora. Fora da camioneta o mundo diferente, dentro da camioneta ainda o mesmo mundo que veio connosco desde o largo do Sobreirinho.
Abriram as portas e os dois mundos a misturarem-se. E nós deixámos logo de ser os mesmos. A nossa alma a misturar-se com a alma da Costa Nova.
Um moliceiro transformado numa gôndola de transporte público com o barqueiro a empurrar com uma vara o fundo da ria para trás. E o barco parecia avançar para a frente, com ele a correr de cuecas também, na amurada do barco, correndo sempre, a pé descalço, da proa para a popa de vara fincada no fundo da ria e depois da popa para a proa de vara no ar. E de novo a empurrar o fundo da ria para trás, ajudando a vela cansada de tanto se tentar agarrar ao sopro frouxo da brisa.
À espera, no atracadouro de telhado em forma de boné, outra leva de passageiros para as gafanhas.
Ao descer da carreira, as pernas bambas de preguiça, os olhos ainda emboitados de sono. Era isto que eu mais queria. Chegar ao destino e ficar aqui. Não ter propósito nenhum senão sair da camioneta de carreira e ver a Costa Nova à minha espera. Tudo a cintilar de luz e a borbulhar de vida.
E nós pasmados, numa alegria de tontos perante o belo.


Para deficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA.Portugal.com na rubrica Episódios aqui

Dezembro

Gosto de estar assim sentado no carro a ver o Outono, um Outono que persiste pelo Inverno dentro indiferente ao calendário.
No Espírito Santo há uma pequena praça onde agora as folhas dos plátanos decoram o chão e um bando de pombas esvoaçando decoram o céu. Só as decorações pindéricas de Natal não decoram nada; causam o efeito de um bigode pintado a marcador no rosto da Gioconda.
Alguns idosos dão uso aos bancos quase sempre vazios e um grupo de crianças torna útil a superfície lajeada que sem eles parece servir apenas para não sujar os sapatos com o bom chão.
Se um alienígena parasse aqui por minutos pensaria que este nosso mundo é composto apenas por idosos e crianças – às vezes passa um jovem apressado, como um estrangeiro num país hostil, de fones nos ouvidos. Não concebem a vida sem uma permanente banda sonora, e não satisfeitos por se isolarem uns dos outros em casa, vêm isolar-se uns dos outros também para a rua. Prisioneiros do entretenimento permanente, vivem de cabrestos acústicos nas orelhas, moucos para o mundo.
Acho que envelheci por distração, porque não me lembro de quando deixei de criticar os hábitos estúpidos dos adultos para embirrar com os hábitos estúpidos dos jovens.
O sino da igreja transformou por instantes este recinto urbano num recanto rural, depois calou-se, e a urbanidade pousou de novo sobre todas as coisas.
Gosto de estar assim como um espetador fotografando tudo com os olhos, não mais que fotografando, não mais do que com os olhos; as pessoas passam ou estão sentadas, que diferença faz? As crianças brincam e os pássaros voam, as árvores preparam-se para o inverno que tarda. Tentar entender isto seria estúpido, porque a Natureza não tem propósitos. Porém, as decorações de Natal têm. Estão ali para o caso de termos saído à rua sem nos lembrarmos de vestir a efémera bonomia da quadra, mas depois das festas, retiram as decorações e podemos voltar sossegados ao nosso impiedoso individualismo sem sermos distraídos.
Passa uma mulher com uma saia muito curta e a cada dois passos puxa-a para baixo, realçando a longitude provocatória das pernas. A praça parece mais iluminada. Eu sinto um friozinho na barriga, uma pequena vertigem libidinosa; e em todo o dia não me lembro de ter estado mais perto da felicidade.
Amo as coisas insignificantes, como folhas caídas, voos de pomba e nudez de pernas de mulher, mas não quero guardar nada porque o que verdadeiramente amo é a efemeridade das coisas. São preciosas porque não duram muito. Haja o que houver tudo acabará, e outra coisa, igualmente perecível, tomará o seu lugar.
O próprio Sol, como todas as estrelas, extinguir-se-á; só durará mais uns milhõezitos de anos, mas antes dilatar-se-á e esturricará a Terra, e se entretanto a humanidade arranjar forma de viajar à velocidade da luz para fugir a esse dilúvio de fogo, terá que viajar alguns biliões de anos para fugir depois à colisão entre a Via Láctea e a Andrómeda, e desse terramoto galáctico não ficará nem uma sombra da memória de tudo isto.
E então deus deixará de ser amado porque não sobreviverá ninguém para acreditar nele.
Nada há mais precioso e real do que estarmos aqui e termos consciência, mesmo que por pouco tempo. Sentir e pensar, fruir e criar.
É uma grande presunção esta, achar que criamos alguma coisa, que acrescentamos à existência algo que não existia antes, seja um desenho, seja uma epopeia; quando não fazemos mais do que dispor de outra forma o que já existia, isto é, apenas nos divertimos mudando as coisas de lugar; é como redecorar a casa com os mesmos móveis. Móveis, sons, formas ou palavras; ou os desenhos casuais das pombas no cinzento do céu, tem tudo o mesmo valor – nós a mais do que as pombas só temos consciência disso.
Amar a vida é amar tudo sem fazer juízos de valor. Amar tudo, sem o imperativo de temermos a deus.
Deus, o Inconcebível.
Deslumbro-me com a Sua impossibilidade conceptual. Um ente sem tempo nem lugar para existir antes de criar o mundo, ou então coevo da sua criação: criador e criatura.
Fascina-me a ideia magnífica que tivemos ao concebe-Lo, e depois exíguos, ínfimos e perecíveis amarmo-Lo assim incógnito e transcendente.
Tão incrível como sermos nós um mito criado e depois venerado pelas bactérias que vivem no nosso intestino.
Amo tudo sem a desculpa de deus. Amo os bancos da praça aguardando que os velhos se sentem neles e a bola correndo à frente das crianças, amo os desenhos efémeros e aleatórios que as pombas criam sobre a tela do céu e a saia curta da mulher. Também amo os velhos, as crianças, as pombas e as pernas da mulher, mas menos.
Uma mão bate com os nós dos dedos no vidro da porta do carro. Agarrado a essa mão está um polícia.
- Algum problema senhor polícia?
- Boa tarde! O senhor está estacionado num lugar para automóveis elétricos.
- Estacionei aqui porque não há lugares para deficientes e porque não há carros elétricos para estacionar aqui. Se aparecer algum eu saio.
- Se não vai abandonar o veículo tudo bem.
Também amo a autoridade tolerante dos polícias como amo a aleatoriedade do mundo. Estou aqui estacionado porque um agente da autoridade não levou muito a sério o Código da Estrada e continuo vivendo porque a Natureza não é muito rigorosa a aplicar a seleção natural.
A mulher da saia curta regressa, puxando sempre a saia para baixo; dir-se-ia que não quer mostrar as pernas. Ao lado dela caminha agora outra mulher de saia comprida e botas altas. Parece faltar-lhe qualquer coisa.
Param e olham para trás. Chamam uma menina, que corre para elas. A mulher a que parece faltar qualquer coisa pega na menina ao colo, e atravessam a estrada, desaparecendo na Luís Gonzaga.
A praça parece agora menos interessante, embora os bancos, a bola e os desenhos das pombas sejam os mesmos. Mas falta a iluminura de umas pernas desnudas de mulher.
Passa um cão a correr.
Nesta praça nada me conhece, nada me quer conhecer, as coisas fazem parte deste conjunto sem vontade, emoção ou afeto; estas ou outras não alterariam o caos do universo. Só nós escolhemos os objetos das nossas relações.
Nem um só rosto conhecido à vista. Um rosto amigo que apareça no meio de desconhecidos é o correspondente humano da madrugada.
Um homem pode viver uma vida inteira sem essa revelação, sem uns olhos em que se veja e sem uns ouvidos a quem entregue os seus segredos cansados de silêncio.
Uma ambulância passa a gritar na Circular do Hospital e não parece afligir ninguém, por aqui só o cão levantou as orelhas. Uma desgraça distante pode ser ignorada mais comodamente, como se a distância a que acontecem as coisas mudasse a sua importância. Tudo serve para justificar a nossa falta de altruísmo, como se cada ato de egoísmo se justificasse com a luta pela sobrevivência.
As pombas pousaram no meio da praça, as crianças recolheram a bola, os velhos começam a sentir frio e a ir-se embora e por entre desconhecidos vejo a minha filha que regressa da aula de condução. E o mundo realiza-se perante mim com uma consistência sólida e consequente, ganhando humanidade à medida que o espaço em meu redor me acolhe como a um familiar.

As pombas levantam voo de novo e os seus desenhos no céu revelam-me quase impercetíveis formas fractais.
Se calhar a aleatoriedade é só uma organização de padrões de que ainda não conhecemos os códigos.
E a mulher da saia curta volta mais uma vez a passar à minha frente, e eu sorrio feliz.

Para eficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódiosaqui