23.1.18

Lucubrações da minha varanda

Muita gente no meu lugar preferia ser feliz, eu quero apenas sentir. A felicidade deve encontrar-se, no máximo, a cinco segundos de acontecer.
Três dioptrias separam-me da felicidade de gozar da beleza da mulher que passa na estrada, 15,5 Khertz de um acufeno impedem-me a felicidade de gozar o silêncio circundante e falta o teu metro e 67 para eu gozar da tua companhia nesta varanda.
Sou apenas quase feliz, não corro o risco de um clímax castrador.
Não acredito em muita coisa mas as poucas coisas que tenho como certas, aprendi-as por acreditar em alguém, porém, soam todos os alarmes do meu ceticismo quando uma pessoa diz despudoradamente que é muito feliz. Estando eu em conformidade com o lugar onde estou, estando eu de acordo com o que me rodeia, sinto esse equilíbrio como a coisa mais gratificante que se pode ter.
Os ambientes são para mim como um vestuário que se vai fazendo ao corpo. Há sítios à minha medida e sítios que me não assentam bem. Este lugar no meio da serra ainda não me assenta bem. Ainda não sou daqui, sou de Coimbra, mas foram precisos 31 anos e 17 dias para eu ser de Coimbra e deixar de ser de Aguim. Deixei de ser de Aguim no exato momento em que vi a nova capela de S. José. Eram cinco e vinte e três da tarde. Nesse momento fiquei sem referências. Os amantes precisam de referências comuns. Os familiares também. E os amigos. De que falaríamos, sem referências comuns? Agora, eu e Aguim ainda temos uma relação afetiva forte, mas não temos assunto para grandes conversas.
Aquilo a que chamam o "espírito do lugar" é a modelação do nosso sentimento às coisas que nos rodeiam. Se nos ausentarmos e voltarmos anos mais tarde nunca encontramos o que deixámos, o tempo profana a relação de familiaridade com o cenário; a ausência torna-nos estranhos àquilo que apenas existe na nossa memória. A nossa terra não é aquela em que vivemos, mas a que vive em nós.
Se ser feliz é estar plenamente satisfeito, viver plenamente é estar constantemente insatisfeito; qualquer bêbado sabe isso.
Pouco depois de acabar o beijo, acaba o prazer; o segundo já não dá o mesmo prazer que o primeiro; e ainda bem, porque a humanidade há muito se teria extinguido se o prazer do beijo fosse cem por cento saciante.
Cultivo a insaciedade como um sádico que leva a tortura a noventa e nove por cento, para poder continuar a fazer sofrer sem matar a vítima.
É por isso que o livro repousa espalmado, com as páginas 76 e 77 sobre a tua cadeira, aguardando, para que se me não esgote o prazer da leitura, e também porque gosto de estar sem fazer nada, quase tanto como de ler.
Fazer coisas entretém; mata-se o tempo. Só a ociosidade não mata o tempo, cada segundo é um segundo de vida. Estou vivendo intensamente agora mesmo, aqui nesta varanda, ociosamente tiquetaqueando o tempo.
O pecado da preguiça é um pecado virtuoso. Na verdade, é um pecado que quando praticado com grande frequência chega a impedir que tenhamos força de vontade suficiente para praticar os restantes.
É preciso ter a paciência das árvores. É preciso deixar que os frutos aconteçam ao ritmo das estações do ano. Dividir o tempo em frações mais pequenas foi o maior disparate da humanidade. Cada vez dividimos em parcelas mais pequenas a nossa vida. Os nossos relógios marcam tarefas ao segundo. A precisão é a escravidão do século XXI. Eu quero a velocidade de uma árvore a gerar um fruto, eu quero a maravilhosa imprecisão da Natureza.
Ver a Natureza a acontecer é das coisas mais emocionantes que há.
De Aguim via a serra do Bussaco, de Coimbra via o Vale de Canas, daqui vejo um laranjal e uma plantação de abóboras. Uma mulher cava na plantação de abóboras a 686 metros e oitenta centímetros de mim, porque o som está atrasado exatamente dois segundos em relação ao golpe da enxada e estão 20 ° de temperatura. E porque é de desprezar a velocidade da luz. É pena não saber a humidade do ar, para ser mais preciso.
A mulher cava a terra fazendo lembrar um filme com a banda sonora dessincronizada. E o Sol começa a esboçar um poente.
Não existe nem ordem nem estética na natureza, só no espírito e na obra humana. O “Campo de Trigo sob Nuvens de Tempestade” de Van Gogh é belo, a paisagem que lhe serviu de modelo, no entanto, era apenas o resultado aleatório dos acidentes naturais, da interação ecológica e das condições atmosféricas.
Pensar que uma paisagem é bela dá sentido à paisagem. O nosso cérebro não está tão preocupado com a ordem das coisas como com o seu significado, só tende a por as coisas em ordem para as perceber melhor. Damos ordem às coisas que não têm ordem nenhuma, porque não concebemos que elas não tenham um propósito, que estejam ali por mero acaso e que sejam absolutamente inúteis. Não concebemos que não estejam lá por nós.
Para além de ser um exercício de estética, a arte não serve para nada, é um luxo do intelecto. Exceto, é claro, que uma vez recriadas por nós, as coisas passam a ter significado; são finalmente o resultado de um propósito. É essa transfiguração que eu acho bela.
Calcular esse propósito primeiro, para executar uma obra depois, isto é, criar segundo uma fórmula, é inverter o processo; é por isso que a arte Kitsch desagrada a algumas pessoas. É como fazer sexo com um manual de instruções na mão. É fazer batota para conseguir uma performance medíocre.
São dezanove e vinte e oito, e passou um pássaro. Agrada-me que os pássaros não passem a horas certas. Gosto de ser surpreendido. Ser surpreendido é ser privado das referências; de certo modo, portanto, agrada-me que tenham substituído a velha capelinha de S. José por um exemplo particularmente orgulhoso de arquitetura kitsch. A arte kitsch tem essa virtude; surpreende-nos sempre pelo orgulho da própria mediocridade.
Daqui a pouco o Sol vai transformar o céu, e um número de pessoas que me é impossível calcular vai maravilhar-se se olhar para Poente, embora um pôr-do-sol não seja lindo nem feio, é como é porque a luz azul é mais refratável que a vermelha.
Gosto disso, porque a beleza que existe neste mundo está cem por cento dentro de nós. Os mais exigentes e perfeccionistas, portanto, têm menos beleza dentro de si. Segundo este cálculo, a nova capela de S. José é mais bonita que a anterior porque tem mais gente que gosta dela e com um conceito de beleza mais abrangente.
Existe um muito maior consenso quanto a referir a beleza de uma paisagem ou de um corpo de mulher do que de uma obra de arte, porque chamamos belo ao que nos agrada e dispõe bem, e a beleza de uma obra de arte pouco tem a ver com a boa disposição com que ficamos depois de a apreciarmos, ou só por masoquismo assistiríamos a uma peça trágica ou apreciaríamos o fresco de Goya “Saturno Devorando um Filho”. É isso que explica o consenso em torno da penalização da pedofilia e simultaneamente a aceitação de obras como "Lolita" e "Morte em Veneza".
Uma obra de arte tem uma beleza intrínseca.
O rosto tosco e enrugado da Madre Teresa de Calcutá, enquanto modelo de um retrato, é esteticamente mais rico e interessante do que o rosto sensual e viçoso da Marilyn Monroe.
É arte uma bela execução de algo que pode ser feio, mas nunca uma feia execução seja do que for.
Mas ter exigências de beleza mais abrangentes e tolerantes, ou, portanto, ter mais beleza dentro de nós, de modo a gostar de mais coisas é só promiscuidade estética. Para gostar de uma coisa é preciso ter educação; quase ninguém gosta da primeira cerveja que experimenta, é preciso educar o palato. É como gostar de alguém; porque gostar de alguém é eleger quem tem merecimento. Trata-se portanto de saber fazer seleções.
Escolher entre uma zurrapa e um bom vinho exige educação; quase nenhum bêbado sabe isso mas um escanção sabe. A arte é elitista, o gosto popular como a justiça popular, sem educação, são dois grandes equívocos civilizacionais, e não podem ser desculpados com a democracia, porque não há democracia sem informação.
A tarde ficou húmida e se calhar vai chover. O tempo que o som da enxada demora a chegar até mim deve por isso ter diminuído. Um número indeterminado de pássaros passou por aqui. Uma incerteza muito grande domina tudo em redor.
As coisas precisas e previsíveis podem dar um falso sentido de segurança; eu prefiro pensar que tudo pode acontecer e que tenho uma grande margem de manobra. Posso ter um plano de ação, mas assim que parto para a ação esqueço o plano. Ou não seja eu um velho soldado português que na guerra tinha sempre à mão uma arma e uma máquina fotográfica, e que disparava a máquina fotográfica nos momentos de maior perigo.


4.1.18

O Sorriso do Santos

Que faço eu aqui?
O céu está estranho hoje. À minha frente os soldados caminham como sonâmbulos. Olho para trás. Sonâmbulos também.
Atrás das duas filas de soldados a longa coluna de viaturas, todas em péssimo estado. Sonâmbulas.
O ronronar dos motores, o gemido metálico das carroçarias meias destroçadas, o som áspero das picas a furarem a areia em busca das minas, o ranger da areia debaixo das botas, o respirar do soldado à minha frente; e por cima destes sons todos, um silêncio de funeral. A natureza parece demonstrar uma clara hostilidade contra nós.
Um Fiat passa rasante por cima da coluna.
O soldado à minha frente olha para trás. É o Santos. Eu encolho os ombros. Ele sorriu. Porque nos rimos nós, no meio da guerra? Deve ser por estarmos cansados de caminhar vendo as costas uns dos outros, e termos sido feitos para nos olharmos assim, cara a cara.
À frente de todos, os soldados do ancinho que vão esgravatando a picada. O da esquerda parou. Baixou-se para ver o que o ancinho detetou. Parámos todos.
O Santos aproveitou a paragem para urinar, sem sair do lugar onde estava. O soldado à frente dele rodou a cabeça para trás, sem correr o risco de mudar a posição do corpo, para se certificar de que estava fora do alcance do jato de urina.
O soldado do ancinho levantou-se e continuou a esgravatar o trilho. A fila recomeçou a andar atrás dele, cada soldado um bocadinho depois do soldado da frente, como se fossemos carruagens de um comboio a iniciar a viagem.
O céu está estranho, porque é céu de trovoada. Um trovão ao longe imitando penedos a rolar num sobrado de madeira. Alguns soldados a olharem para o céu em busca de chuva.
O Fiat regressa rasante de novo, deixando um pequeno risco no ar atrás da ponta de cada asa. Vi nitidamente o piloto olhando para nós.
Quando o som do avião desaparece, fica a ouvir-se melhor a trovoada distante, que parece afastar-se.
Avançamos a passo muito lento, e cada um de nós tenta por os pés nas pegadas deixadas pelos soldados da frente, o que obriga a estar a olhar constantemente para o chão. Eu ando a aprender a fazer isso sem olhar para o chão, o que tem duas vantagens: prestar mais atenção ao meu flanco e não ficar cego se pisar uma mina.
De um lado e do outro da picada o capim altíssimo encobre a floresta. Às vezes o Lemos, que leva a MG42, dispara uma rajada preventiva para algum lugar suspeito.
O soldado de trás chama-me e faz-me sinal para parar. Eu passo a palavra, e em breve toda a gente para de novo.
Todos olham para trás para tentar perceber o que se passa.
Estou farto disto.
Sem aviso, a imagem de um corpo nu de mulher ocupa-me a imaginação por algum tempo. A mulher caminha à minha frente de saltos altos e completamente nua. Os glúteos balançam-se e os joelhos afastam-se um pouco quando as pernas avançam, devido aos saltos altos. Tento focar esta imagem o mais tempo possível, mas a dada altura a imagem na minha imaginação começa a desvanecer-se, e acaba por desaparecer, e o que vejo agora são duas filas de soldados de costas para mim, imóveis, como se tivessem parado o filme da guerra.
O suor junta-se ao pó e começa a desenhar riscos nas nossas caras e a pintar manchas escuras onde o pano do camuflado toca no corpo.
Os turras devem detetar-nos pelo cheiro, a quilómetros de distância. Felizmente que a natureza nos dotou de um mecanismo que desliga o sentido do olfato quando estamos muito tempo sujeitos a um odor. É conhecido como “fadiga olfativa” e parece que servia para evitar que os nossos ancestrais não ficassem inibidos de detetar o cheiro dos predadores por causa do seu próprio odor. Agora serve para não desmaiarmos com o cheiro uns dos outros.
A imagem do corpo nu de uma mulher volta a atravessar-me por momentos o pensamento. Mas por pouco tempo; parece que a realidade torpe é mais importante agora, para o meu cérebro, do que a graciosa fantasia.
Não há sinais de podermos recomeçar a progressão e a imobilidade aumenta a temperatura do corpo. O sol marra. O ar sufoca. Os mosquitos divertem-se em torno dos meus olhos. A tensão faz apitar os ouvidos. A G3 aumentou de peso. A própria farda parece de chumbo. É óbvio que um ser humano normal não foi feito para isto.
Olho para trás e giro o indicador junto à cabeça e abro a mão em sinal de pedido de esclarecimento. Em resposta o capitão estica o mínimo e o polegar e encosta a mão ao rosto imitando um telefone e depois bate com o dedo no relógio. Entendo que aguardamos instruções para prosseguir.
A coluna auto que vem de Omar ao nosso encontro deve estar com problemas.
O Fiat volta a aparecer, rasante de novo.
Os soldados torcem o corpo para olhar para trás, sem mover os pés, assim que o ouvem ao longe, e destorcem-no para o seguir com o olhar até ele desaparecer onde a picada se afunila em vértice na linha do horizonte, á nossa frente.
Não entendo o que se passa. Começo a ficar em stress. Na guerra não gostamos de surpresas nem de grandes mistérios.
Agora houve-se a tosse convulsa caraterística do Alouette III. São dois. À medida que se aproximam, a tosse vê-se que é acompanhada da pieira habitual.
Houve merda! Diz o Santos.
Desta vez não sorriu.
Não aguento este silêncio e esta incerteza. Estou a meio da fila de soldados, e ir até à Berliet do capitão para saber o que se passa, constitui um perigo muito grande para mim e para os soldados por quem passar.
Está quase a escurecer. Dentro de pouco tempo não poderemos prosseguir com a coluna porque se fará tarde demais para ir e voltar para um lugar seguro, dado que o local de encontro seria o pior possível para pernoitar.
Baixo-me e esgravato a areia em torno de mim com cuidado para me certificar que será seguro sentar-me. Marco no chão o local perscrutado por mim, para saber onde posso colocar as mãos e os pés. O Santos imita-me.
Pelo canto do olho, vejo, de cima da Berliet, o capitão a fazer um enquadramento sobre mim com a zoom da sua máquina fotográfica, e eu aperfeiçoou disfarçadamente a minha pose. Mais tarde quando me der a foto vou escrever a legenda:
Que faço eu aqui?
O céu estranho foi-se tornando normal à medida que a trovoada distante se desvaneceu. O calor baixou um pouco.
O capitão faz-me sinal para regressar às Berliets e eu passo a palavra para a frente e para trás.
Regressamos agora, pisando as nossas próprias pegadas. Certifico-me que o Lemos e o soldado do ancinho trocam de posição e que ele e o outro apontador de MG42 são agora os últimos, caminhando de marcha atrás com estremo cuidado, de metralhadora apontada para o longo funil da picada.
Lá ao longe, onde a picada parece terminar no lombo de uma colina, o céu prepara as coisas para se fazer noite. Do lado de lá houve merda.
Apesar da humidade perto da saturação, tenho a boca seca. Daqui a pouco o abaixamento da temperatura provocará a condensação da humidade do ar em pequenas gotículas, a que chamamos cacimbo, e o efeito de estufa atingirá o limite. Depois, a temperatura vai descendo até tornar as nossas fardas em farrapos encharcados de água fria sobre o corpo, e pela madrugada a baixa temperatura far-nos-á bater o dente. Adormecemos no verão e acordaremos no inverno.
O Fiat faz longos volteios, como uma ave de rapina sobre uma presa ferida, e depois abala em direção a Mueda. Pouco depois regressam os Alouett III.
Foi um ataque de abelhas. Diz-me o capitão quando subo para a Berliet.
Sei bem o que um simples enxame de abelhas africanas pode fazer a uma companhia inteira, e diz-se que os turras nos atiram sacos com colmeias sobre as colunas para nos atacarem enquanto estamos no meio da confusão.
Será que nada nesta terra nos tolera?
Mas a nós, hoje, ninguém nos fez mal. Hoje, não fizemos mal a ninguém.
Fico a admirar o por do sol em busca de um sinal de reconciliação da Natureza.
Uma paleta de vermelhos, rosas e violetas dão cor a um céu pintado por mão infantil e a floresta luxuriante e o capim alto são um plágio ao traço naïf de Henri Rousseau. Preparo-me para descansar, experimentando um pouco de alívio finalmente.
Penso que daqui alguns anos, estes momentos de serenidade serão o que de melhor teremos para recordar, e não os intensos momentos de ação onde a adrenalina não deixa lugar para o pensamento.
Ponho-me a pensar que haverá algum escritor futuro, que não tendo saído da segurança dos quarteis ou do aconchego dos hospitais; nem tendo disparado uma arma sobre ninguém, nem sentido que a sua cabeça era a muche do alvo de uma kalash, falará de horrores que de facto não sofreu nem fez sofrer, só para dar autenticidade aos seus escritos, e sinto antecipadamente um desrespeito enorme por ele. Não conheço maior indignidade do que plagiar o sofrimento alheio para ter uma boa história para contar.
Preparo-me para dormir.
No meio daqueles soldados todos, o olhar do Santos cruza-se com o meu. Eu ajeito a mochila para me servir de almofada, ele ajeita o poncho de borracha como se fosse uma manta. É preciso tão pouco para dar conforto a um soldado.
Eu encolho os ombros, o Santos sorriu.