14.1.10

O Último Verão da Minha Inocência


Antes do alcatrão, o pó nas estradas e os pés das mulheres encortiçados ignorando as pedras. Eu olhando o meu mundo de criança rente ao chão; tudo visto de baixo para cima. A ouvir o restolho de uma cobra na erva, o sobressalto dos pássaros numa oliveira. A sentir a paciência das vinhas, quietas, a aguardarem que as uvas amadurecessem.
– Tudo a seu tempo.
A minha avó, especialista em paciência, compreendia as vinhas. Eu não: – Queria um cacho, vó.
– Tudo a seu tempo.
E eu desistia porque o Verão era longo.
Os adultos falavam de coisas estranhas. Falavam depressa de mais. E tinham sempre que fazer.
– Porque demoraste tanto Zé?
E o meu pai: – Fui abicar as couves.
Só o meu avô se deixava às vezes ficar a fingir que dormia a sesta. A fingir: porque a mão enxotava as moscas como o rabo do cavalo. De vez em quando o cavalo resfolegava, amarrado à velha figueira, com o saco de ração pendurado nas orelhas para não ter de dobrar o pescoço para comer, e o meu avô com o máximo de ternura que lhe conheci: – O que é? – E ele acalmava-se. O meu avô falava frequentemente com o cavalo. Não admira, passavam muito tempo juntos.
As moscas inquietas, e zás, a mão a enxotá-las de um lado e o rabo do cavalo a enxotá-las do outro. O zumbido das moscas a fazer-me sono. E o restolho da erva. O sobressalto das oliveiras. A paciência das vinhas.
Às vezes, sem eu contar, havia festa e toda a gente deixava de trabalhar. Tudo cheirava de modo diferente. Eram os mesmos cheiros, mas mais alegres. As mulheres aperreavam os pés encortiçados em sapatos enormes, só por uma questão de elegância, o que lhes dava um andar torturado, e os homens usavam com orgulho uma tira de pano pendurada ao pescoço, elevada à categoria de gravata, e um raminho de limonete atrás da orelha para dar um toque de classe. Então é que eu notava que mal se lavavam, que apenas se desenxovalhavam. Passavam uma água pelo corpo, tiravam a maior, mas o encardido ficava. A marca do castigo, da labuta, da tortura habitual do trabalho. Tão habitual que havia um certo desassossego nos dias de festa, como se os corpos habituados ao esforço se sentissem descontrolados sem o lastro pesado do trabalho.
As festas apanhavam-me sempre de surpresa. Num dia tudo tinha os mesmos vagares, e no outro tudo acordava eufórico, e, quando eu me habituava, lá voltava tudo inesperadamente à mesma rotina. Os cheiros acalmavam de novo, familiares de novo, como uma cama já afeita ao corpo.
O cheiro hormonal do cavalo, o cheiro nutritivo do estrume, o cheiro cáustico do lume, o cheiro acre da massa lêveda a fazer adivinhar o cheiro sem adjectivos supérfluos da boroa fresca.
Quando não fingia dormir o meu avô assobiava; só uma nota, incessante, distraída. Ele a olhar para um lado e as mãos a fazerem as coisas numa destreza mecânica para o outro. E o assobio sempre igual, só interrompido para tomar fôlego. Do outro lado da rua o Ti Zé Sécio batia, batia, assobiando também uma nota só. E o ferro gritava a cada marretada, e depois num arrepio cortante fazia ferver a água fria da pia ao lado da forja. Saía a chiar e sem fôlego daquela têmpera rude e o Ti Zé observava-o com minúcias de ourives, e às vezes insatisfeito reiniciava a tortura.
[...]
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4.1.10

Dor Fantasma - Casa de Teatro de Sintra




Dor Fantasma
15 e 16 de Janeiro; às 21:30

Casa de Teatro de Sintra
Rua Veiga da Cunha 20 - Sintra
2710-627 SINTRA

PRODUÇÃO
Teatromosca - Teatro Focus

ACTORES
Susana Gaspar
Filipe Araújo

ENCENADOR
Mário Trigo

AUTOR
Manuel Bastos


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