16.2.18

As primeiras chuvas


(In História de amor com guerra ao fundo)

Cansados de Verão, respiramos melhor no ar purificado pelos primeiros frios, confortáveis no aconchego da roupa mais pesada, depois da lassidão transpirada dos corpos sob panos leves.
A todo o momento a chuva ameaça surpreender os otimistas que saíram à rua de corpinho bem feito. Olho-os do carro, certo de que a chuva apenas aguarda que eu ponha o pé na estrada para repentinamente desabar sobre mim numa carga de água.
Sei que ela passará por aqui. Sairá daquela porta e entrará no carro para ir ao meu encontro. Quero antecipar o prazer de a ter, olhando-a. Quero ver-lhe os gestos, ou menos que os gestos, apenas o movimento. O movimento é o que a conduzirá a mim, e, posso senti-lo como certo, o movimento dela será o que me dará o maior prazer.
O seu movimento é apenas de garça pousando, quando chega e graciosamente alarga a saia para se sentar na cama. E depois o seu movimento é de gazela quando se ergue, e já de felina quando se levanta. O seu movimento, todo ele de caça e de caçadora, adivinha-se e surpreende, como tudo o que é belo para o olhar e tentador para o espírito. Uma beleza que faz do cérebro a principal zona erógena.
A chuva cai de um odre rasgado, sem dó nem piedade, sobre os desafortunados otimistas, ensopando-os imediatamente. Os pessimistas, esses, repentinamente transfigurados, os guarda-chuvas a transformá-los em cogumelos animados, sempre têm a ilusão de se protegerem um pouco.
Há uma certa perversidade no prazer que sentimos com o conforto de um abrigo como o meu, aqui no carro, enquanto vemos os transeuntes encharcados a correrem na rua.
No carro ao lado, sem, afinal, eu ter dado por ela, e ela sem ter dado por mim, vejo-a como uma inesperada aparição.
Deve ter escapado à torrente da chuva. Parece tão serena, tão disponível. Parada, como se estivesse a dar tempo à transição do ritmo expedito do trabalho que terminou, para o ritmo lânguido do prazer que antecipa.
Sente o corpo no conforto da roupa. Um prazer sexual. Quando tem assim consciência do corpo, sente-se nua. A estranha sensação de estar nua por debaixo da roupa.
Na verdade, somos animais nus, mais nus que os outros animais. Nascemos pelados, sem nada a cobrir a nossa pele, e continuaremos nus até morrer. Só impedimos que os outros vejam a nossa nudez, cobrindo-a com a roupa.
Ela sente-se nua, numa hiperconsciência de si, na reversão do pecado original, na inversão da alegoria do paraíso, na transformação do castigo divino do pudor numa graça de libidinosa impudência.
A chuva, repentinamente, em rajadas, a querer furar o tejadilho do carro; os transeuntes encurvados para a frente, a quererem empurrar a chuva; as árvores furiosas, a quererem enxotar o vento e ela dentro do carro a querer sentir o corpo todo nu no conforto do invólucro erógeno da roupa.
De súbito, um desejo tentador de sair para a chuva, de deixar que a água lhe cole a roupa à pele, de sentir os fios da água a percorrer todas as reentrâncias anatómicas numa escorrência orgástica.
Vê-se a si própria exposta ao mundo, nessa hiperconsciência de si.
Sente algo de excessivo no seu corpo, algo de hiperbólico; algo de flor desabrochando, algo de fruto protuberando a oferecer-se, pronto a ser colhido por um predador incauto que venha mergulhar na sua liquidez suculenta até ser consumido.
Sente a força animal de fêmea no cio, o poder divino da transcendência, a perfídia diabólica da devassidão, numa disrupção inconciliável do seu ser. O Símbolo que une e o Diábolo que separa, o Mal que corrompe e o Bem que redime, o fogo que consome e a água que regenera; e tudo isto junto e simultâneo numa erupção que transborda.
Sente claramente que não deve ir para casa ao encontro do seu marido, do seu homem que faz de si sua mulher, como um direito adquirido; precisa de evadir-se, de rebelar-se, de correr perigo.
Arranca violentamente e acelera o carro como se se masturbasse.
Sente a conjugação do seu corpo com a máquina, o domínio da sua vontade sobre a máquina; sente a potência do motor, a voracidade do motor; sente o frémito da velocidade, a vertigem da velocidade, o delírio da velocidade. E a estrada a ser absorvida numa invaginação de presa devorando o pregador.
À frente só céu e mar. A chuva de fim de Verão vencida, por um momento, pelo sol. E o carro finalmente em roda livre até parar junto à areia, como besta cansada, como macho em extenuação orgástica. Abriu a porta do carro sem sair para sentir a maresia que inundava tudo em redor, em vagas de odor seminal da rebentação convulsa do mar sobre a avidez feminina da praia.
E o mundo todo, que até agora era um vago esboço em torno de si, ganhou densidade, e a pouco e pouco, resolveu-se a paisagem e todo o som circundante, enquanto o corpo serena, como terra escaldante que o Sol esbraseou numa tarde de Verão tardio, e que começou a despertar com a frescura das primeiras chuvas.
Um homem jamais saberá o que é ser mulher, jamais entenderá a força contida na delicadeza de um só gesto feminil. Bendita a abissal diferença dos géneros que gera o mistério mais virtuosa da natureza.
Vejo-a ali, ao fundo, junto ao mar, como uma amante saciada em leito de luxúria; mas sinto-a tão intocada e íntegra para o mundo; enquanto eu, a sua antípoda abominação, congemino desejos secretos, fraquezas carnais, e desço ao estado de predador impotente perante a sua nobre condição de fêmea superior.
Abre a porta do carro e sai. Livra-se dos sapatos, mal chega à areia molhada da praia, e caminha em direção ao mar.
O vestido leve esvoaça ao ritmo da espuma, que a ressaca das ondas deixa ao sabor do vento, e oferece a beleza das pernas nuas.
Desejo-a, não como presa, não como fruto; desejo-a como algo que jamais se poderá possuir completamente, e que assim, não se esgote nunca esta tentação de sabê-la; mais que possuí-la ou tê-la.
Um bando disperso de gaivotas a estridular, a água quase a chegar-lhe aos pés, num toca e foge provocatório, e o vento impudico a levantar-lhe o vestido. E ela numa imobilidade de esfinge.
Deus, a Natureza - ou a simples conjugação do desejo que o instinto molda, com a forma da coisa humana que vem ao encontro do instinto - fazem dum momento assim o pináculo da beleza imaginada. A única beleza afinal, aquela que o cérebro humano formula; o único sítio do mundo onde se formulam coisas apenas pelo prazer de as formular.
Estar ela ali, entregue toda ela aos elementos, como que protelando o encontro, e estar eu aqui a vê-la, antecipando o encontro é um jogo de predador e presa, e a clandestinidade e o improviso fazem que cada jogo seja sempre o primeiro.
A chuva recomeça, vencendo agora o Sol.
Ela abandona o corpo às primeiras gotas de água, que se confundem com o aerossol da rebentação, como oferecem os ferreiros, o ferro em brasa saído da forja, á água fria, para o temperar. Quem tivesse o rosto colado à superfície afogueada do seu corpo, sentiria a evaporação da água destas primeiras chuvas.
É a sede dessa água que atrai toda masculinidade do meu ser. Sem essa líquida feminilidade nenhum prazer seria possível na aridez do mundo.
De repente, a urgência de a sentir perto.
Escrevo uma SMS para lhe mandar: "Estou a caminho", mas não carreguei na setinha para enviar, fiquei a olhar ora para a SMS ora para ela a dirigir-se para o carro, mas sem fugir da chuva que ia engrossando.
Ela agora dentro do carro, recostada no banco, com o motor au ralenti, a chuva forte e o mar revolto, e no peito, imagino, a serenidade que se segue às grandes aventuras. No meu telemóvel a SMS aguardando o toque de envio, mas o dedo pasmado e eu de olhos encandeados, como os olhos da cobra à espera que a ave se mexa para a abocanhar.
Passou uma eternidade de dois minutos e o telemóvel, já esquecido na mão, cantarolou. Acordo do encantamento e leio a mensagem.

ZULMIRA
Hoje não dá. To na escola pra levar o puto p causa da chuva. Bjs