21.6.10

José Dentinho - Quando o corpo é uma prisão

Entrevista para o Jornal Elo da ADFA
O Dentinho tem 65 anos. O Dentinho é tetraplégico há 44, há uma vida inteira. Tanto que, durante toda a conversa connosco nunca reviveu uma única memória anterior ao acidente que em terras de Angola, durante a Guerra Colonial, o privou de quase todos os movimentos e o condenou à prisão perpétua dentro do próprio corpo, como se antes disso a vida que viveu já não fosse sua.
No quarto, para além de uma televisão, de uma aparelhagem estéreo e de algumas fotos nas paredes, um crucifixo e uma imagem da Virgem de Fátima.
Lá fora, na viagem para aqui, sob o sol de Maio, fiadas intermináveis de crentes que receberam a graça da Virgem de Fátima cruzaram connosco enquanto pagavam, passo a passo, cada milagre recebido. Mulheres pelos seus homens, homens pelas suas mulheres, mães pelos seus filhos, a caminho da Cova da Iria. E ali a dois passos de nós uma velhinha, que já não pode dar um passo sob o peso dos seus 81 anos, parece desmentir as virtudes da fé.
Que terá feito para não ter merecido a graça de receber o seu filho de volta como o conhecera? Não acredito que não tenha pedido fervorosamente, a julgar pela imagem da Virgem num lugar de destaque.
– A minha mãe sofreu muito, sofreu muito.
Que me desculpem os muitos religiosos mas eu recuso-me a aceitar que esta mãe tenha feito alguma coisa a menos ou a mais, que todas as outras que seguem hoje para Fátima, para ter merecido a indiferença da Virgem.
Mas não façam caso, é difícil evitar a ingenuidade dos lugares-comuns ou a blasfémia fácil perante os grandes dramas da vida. E a verdade é que estávamos ali perante um dos mais difíceis de tolerar.
Um jovem, que me atrevo a dizer que era bonito, a julgar pelas fotos na parede, num instante da sua vida, num átimo da sua existência, tem um acidente e perde o controlo do seu corpo para sempre, e passa por uma via-sacra de incompetências e de indiferenças que parecem não ter parado nunca; nem agora no Portugal que acrescentou a sua estrelinha à constelação da bandeira europeia.
– Primeiro mandaram-me para ortopedia onde eu me feri todo, e só mais tarde é que descobriram que o meu caso deveria ser tratado no serviço de Neurologia. Depois um braço caiu-me contra a parede, eu não sentia nada, que até estive algum tempo em coma, e apanhei uma artrose no cotovelo e fiquei sem poder mais mexer o braço. O outro braço que estava melhor, uma enfermeira ao virar-me fez-me outra artrose no outro cotovelo.
Passados uns anos fiz novamente exames à coluna e disseram-me que se eu tivesse sido logo operado que era capaz de ficar até, não se diz a andar pelo meu pé; mas ao menos a comer pela minha mão, poderia ficar.
E agora acabaram com o Hospital Militar de Coimbra aqui a 40 Kms e como faço quando precisar de ajuda? Vou ao Porto? Há dias tive que ir ali ao Hospital dos Covões e deixaram-me lá mais de 24 horas sem me fazerem nada. Nem ao menos me deram um copo de água.
Preciso de ser visto, por causa das dores que agora sinto no abdómen, não são dores, é uma coisa horrível, mas agora tenho que ir ao Porto ou a Lisboa.
O Dentinho tem uma carta escrita para mandar à Ministra da Saúde, ao Primeiro-ministro e ao Presidente da República a pedir-lhes que não lhe tirem o Hospital Militar de Coimbra que lhe tem valido toda a vida. Só esperava que lhe déssemos as moradas certas para a carta chegar aos seus destinatários.
– Depois do acidente, alguma vez tiveste algum médico, algum psicólogo, alguém que te explicasse o que iria ser a tua vida futura e te preparasse para as limitações da tua deficiência?
– Não, nunca.
– Então como ficaste a saber que irias ficar imobilizado para sempre?
– Quando estava no Serviço 6, por causa de outros colegas que já lá estavam e que me diziam"Ó pá, olha que tu prepara-te, que isso nunca mais, nunca mais."
– Mas apesar de teres estado em Alcoitão, onde me dizes que te trataram bem e onde recuperaste um pouco, e de já teres estado num lar, preferes viver aqui na tua casa e com a tua família, não é verdade?
– A minha família tem-me ajudado muito e não quer que eu saia daqui mas a minha mãe já não pode das pernas. Sofreu muito, muito, e eu tenho que ir para o lar da Cruz Vermelha.
Mais tarde, quando regressávamos a Coimbra perante a beleza do Paúl de Arzila e da planura calma e luminosa do vale do Mondego, como não sentir o desejo de ser ave e voar para abraçar no voo todo aquele espaço ao nosso alcance?
Mas aquele espaço vibrante de luz e aparentemente sem limites, ao contrário do que seria de esperar, oprime-nos agora. Talvez por sentirmos a frustração de sermos tão limitados e indefesos. Sobretudo, depois de termos visto como um homem pode ver reduzido o seu horizonte aos limites do seu corpo.
José Dentinho, prisioneiro do seu próprio corpo, reduzido aos movimentos da cabeça e de dois dedos da mão esquerda dirigiu da sua cadeira eléctrica um negócio de venda de produtos agrícolas e um mini-mercado, durante muitos anos, até as escaras provocadas pela imobilidade física o terem feito parar recentemente.
– Eu em Alcoitão era bem tratado. Não é que não gostasse de lá, mas sentia-me inútil, aqui tratava das minhas coisas. Mas foi lá que aprendi a escrever com a mão esquerda numa máquina eléctrica e a assinar o meu nome e a dirigir a cadeira eléctrica.
Até há um ano, mais coisa ou menos, eu movimentava uns milhares de contos por ano com o meu negócio, fora a loja. E na loja sempre falava com as pessoas, agora por causa das fístulas não posso sair daqui e como não uso a mão começo a perder o movimento da mão.
Às vezes ouvimos algumas frases bonitas proferidas por alguns imbecis com protagonismo, que dizem que a liberdade é uma atitude e que a vontade de um homem tudo supera. Não é isso que sinto no fim daquilo que pretendia ser uma entrevista e acabou sendo uma lição de humildade face à nossa impotência perante a brutalidade da vida.
Despeço-me do Dentinho junto à barra da cama dizendo banalidades, porque seria inútil um aperto de mão e impossível um abraço, enquanto o Zé Maria e o Álvaro, mais ágeis de entendimento, se despediam do Dentinho com uma carícia no rosto, a única parte sobreviva do corpo que pode ainda reconhecer o afecto de um amigo.
À saída diz-me o Girão: "E às vezes ainda nos queixamos…"
E lá seguimos nós para a carrinha, o Girão e eu, envergonhados por termos apenas falta de uma perna.

7.6.10

Estupidário

Darwinismo
Não há nada inteligente debaixo do Sol. Tudo o que se conhece surge sem saber. Todo o ser que ganha saber apenas reproduz o que aprendeu com a sua espécie ao longo de milénios de evolução.
Às vezes, algo de novo surge, não por um acto racional mas como fruto da mais pura aleatoriedade, ou seja, da estupidez.

Imaginação
Um sardão pasmado ao sol. Um gafanhoto a estrebuchar-lhe na boca. Parecem posar para uma foto. Parados. Só uma perna do gafanhoto a tremelicar no canto da boca.
Deve demorar pouco para o gafanhoto deixar de ser um gafanhoto. O sardão também vai deixar de ser um sardão qualquer dia. E a pedra onde estão esboroar-se-á e deixará de ser uma pedra.
Tudo deixa de ser o que era, mais cedo ou mais tarde. Depois outra coisa quase igual toma o seu lugar. Outro gafanhoto, não necessariamente melhor que este. Outro sardão. Até outra pedra como esta há-de surgir em algum lugar neste universo.
Pelo menos à escala humana isto é estúpido; ou, a sermos governados por um ser inteligente, falta-lhe imaginação.

Calculismo
O matemático filósofo Blaise Pascal dizia-se crente por uma questão de inteligência.
Dado que se Deus não existisse nada lhe aconteceria, quer fosse crente quer fosse ateu; mas se Deus existisse ele seria punido se fosse ateu e seria recompensado se fosse crente.
Não há maior estupidez que evocar a inteligência partindo do princípio que Deus é estúpido.

Perfeição
Ela olha-se ao espelho e gosta do que vê, no entanto, demora-se em retoques de maquilhagem com as minúcias de uma restauradora de quadros antigos. O cabelo leva-lhe mais tempo. Quando se dá por satisfeita, ainda alinha uma madeixa sobre a arcada supraciliar direita com o cabo do pente para pronunciar um efeito de elegante negligência. Afasta-se dois passos para ter uma visão de conjunto e passa as mãos numa carícia sobre as ancas com o álibi de alisar o vestido.
Da cozinha o aroma do arroz de pato vem até à sala e ela aguarda o som da campainha da porta para acender as velas e baixar a luz ambiente.
Tudo perfeito, pensou.
Ele entrou. Passados alguns minutos a travessa do pato ficou reduzida a uns restos, as velas sujaram os candelabros, o vinho sujou os copos, algumas migalhas de pão sujaram a toalha.
Dois sapatos de salto alto à entrada do quarto.
Duas horas depois ele saiu. Ela olhou-se ao espelho de novo. O penteado desmanchado. A maquilhagem esborratada.
Depois, olhou languidamente pela porta a sala em desalinho.
Tudo perfeito, pensou.

Ignorância
Meu amor, amo-te porque não sei que te amo. Se soubesse, amar-te-ia por um motivo que me fosse grato e não por amor. O amor vive da ignorância de si.
Chegas, e as coisas perdem sentido à minha volta. Olho-te, e fico em êxtase como Narciso perante o espelho das águas. Falas, e toda a música se torna desnecessária. Ficas a meu lado, e o mundo já não poderá melhorar mais.
Mas não sei porquê.

Previsão
O meu modesto barbeiro antecipa-me todos os grandes fenómenos sociais enquanto me corta o cabelo. Não me lembro de alguma vez ter acertado nas suas previsões.
Chego a casa e ligo a TV em busca de alienação para a frustração de continuar a pagar o mesmo, e cada vez ter menos cabelo para cortar
Na TV um professor catedrático debita, mas com mais detalhes inúteis, as mesmas previsões falhadas do meu barbeiro.
Finalmente sinto um pouco de conforto, porque eu pago muito menos ao barbeiro que a televisão ao professor, para o mesmo resultado.
Será que ao menos o professor sabe cortar cabelo?

Senilidade
O Mondego ao fundo era uma cobra de prata. O sol mostra a realidade e a ilusão. Os nossos olhos aceitam ambos.
Ela sorriu com a tristeza que só um sorriso pode ter. Ele demorou a entender a tristeza vestida de sorriso.
Só a luz do meio-dia parecia entender tudo: o rio, a tristeza, o sorriso, e a mulher e o homem sorrindo um para o outro.
Todos os dias, como hoje, vinham à varanda, dir-se-ia que, para verem o rio fingir de cobra de prata transvestido de luz; mas ela vinha apenas ensaiar um sorriso e ele tentar entendê-lo.
Quando ao fim do dia, as empregadas do lar de Penacova lhes vieram mudar as algálias, o homem e a mulher sentiram uma ténue felicidade, com a memória, embora imprecisa, de terem tido uma história de amor.


O Zé da cadela, enquanto pôde, foi a Fátima a pé. Pagou a prestações anuais um empréstimo que contraiu com a Virgem. Ela concedeu-lhe a vida na Guerra da Guiné, e ele ia rezar meia dúzia de ave-marias no dia 13 de Maio em frente do santuário, sem juros nem spreads nem outras alcavalas. Ficou-lhe cada ano de vida à razão de 6 ave-marias e os 30 Quilómetros, palmilhados de Leiria à Cova-da-Iria.
Hoje morreu o Zé da cadela com todas as contas saldadas com a Virgem.
Porque me custa adormecer esta noite, não conformado com os mistérios da fé? Será que, não havendo um único resquício em mim, eu preferisse, intimamente, ser capaz de ignorar a quantidade de mortos que teriam pago mais ave-marias e ido de mais longe rezá-las e até com mais convicção, a troco de sentir no lastro da minha alma o dormente conforto de não pensar?

Estupidificação
O chefe avalia o subalterno, o subalterno bajula o chefe, o chefe recompensa o subalterno, o subalterno chega a chefe.
Nesta regressão natural das espécies premeia-se a prevalência do mais esperto e prepara-se o futuro para chegar à estupidez generalizada.
Finalmente, depois de quase um milénio de existência, Portugal terá condições para chegar em primeiro lugar.

Previsibilidade
Fortes convicções têm-nas os fracos. Certezas absolutas os tontos. Coerência de princípios os fanáticos previsíveis de todos os credos.
Abre os olhos só o necessário para não chocares com a liberdade de pensamento sem a reconheceres.
Não acredites demais em ti. A tua única manifestação de inteligência possível é a de questionares o rumo do rebanho de que fazes parte.
Destrói o GPS, rasga todos os mapas e fecha os olhos. Aprende com os cegos a ver na escuridão, e vai a corta-mato.
Depois sim, puxa da arma e dispara.
Vale mais atirar à sorte num inocente do que suicidares-te por impotência.

Heroísmo
Pegue-se num homem ainda novo.
Macere-se a sua carne e rale-se o seu espírito com uma educação alienante e manipuladora.
Junte-se em doses iguais: demagogia, religião e romantismo.
Tempere-se com patriotismo quanto baste.
Reserve-se a marinar durante alguns meses num quartel ou base militar para apurar do tempero e ganhar a consistência moral maleável típica de soldado.
Finalmente, leve-se a cozinhar numa guerra em lume alto, para reduzir rapidamente e ficar bem passado.
Serve-se em cadeira de rodas.

Agnosticismo
Há uma coisa muito estúpida: ter a certeza que deus existe e ser crente. Há uma coisa ainda mais estúpida: ter a certeza que deus não existe e ser ateu.
Mas se quer ser o mais estúpido que é possível, faça como eu: conforme-se com a sua própria estupidez e seja agnóstico.