15.2.11

A Viagem

Texto de José Caseiro

O dia menos desejado chegou, era por volta das cinco, seis horas da tarde que as Berlliet e as Peugeot começaram a chegar e a ficarem alinhadas umas ao lado das outras, lá na parada do Quartel da Barra, já com a frente virada para portão de saída.
Todos sabíamos que ainda era cedo, mas elas já ali estavam esperando por nós, se alguns já tinham as malas e os sacos prontos outros acabaram por dar mais um jeito nas suas coisas, porque dentro de poucas horas iria dar-se o início da viagem para Moçambique.
À hora de jantar, a vontade de comer era pouca mas tínhamos que comer, porque íamos ter uma viagem de comboio durante toda a noite, era longa a viagem, e era necessário levar o estômago cheio.
Após o jantar e um pouco de descontracção, chegou a hora da formatura já com as casernas abandonadas porque as malas já se encontravam nos camiões. Lá fomos para a formatura para nos desejarem boa sorte. Após o destroçar, começámos a dirigir-nos para os camiões, mas com pouca vontade de para eles subir, porque todos tínhamos a consciência que a partir daquele momento se iria dar o início da viagem para o inferno.
A viagem do Quartel da Barra em Viana do Castelo até á estação dos caminhos-de-ferro foi curta, porque ficam perto um da outra. Pouco a pouco fomos descendo das Berlliet e das Peugeot, e com as malas e os sacos pendurados nos ombros, lá fomos caminhando devagar para dentro da estação, para encararmos aquele comboio ali parado á horas, esperando por nós. Quase se podia imaginar nele um ar sínico, como quem gozasse connosco; mas para ele era-lhe indiferente porque a sua função era levar-nos para Lisboa, e desde que até lá nada de mal nos acontecesse, assim ele se livraria de responsabilidades.
Já dentro do comboio e antes de este começar a andar, comecei a notar algo diferente em relação a outras viagens de comboio que tinha feito enquanto militar. Recordo-me que quando ia para a Estação de Campanhã no Porto, para apanhar o comboio da meia-noite, ou o das onze horas, que eram comboios militares, notava um ambiente descontraído, alguns bebiam bastante cerveja e tocavam viola – e a muito mais coisas se assistia naquela Estação de Campanhã – mas nesta viagem nada disso se passava; embora se compreenda, que o motivo da viagem era outro, os militares muito pensativos. Só Deus sabe se alguns até iriam a rezar naquele início de viagem, que sabíamos seria longa mas não sabíamos se teria regresso.
Mas não só isso se notava; notava-se algo mais, mas mais pesado que não sei descrever… sei lá! Talvez fosse a morte a fazer a sua escolha já ali no comboio dos que iriam morrer e não fazer a viagem de regresso.
Foi uma viagem feita de noite, uma noite muita escura. Foram horas de viagem que dariam para pensar em muitas coisas, mas naquelas horas não se deve ter pensado em muitas coisas, porque o que nos ocupava a mente era aquela viagem mesmo, e o que seria de nós depois que ela terminasse quando chegássemos a Moçambique. Foi uma viagem sempre pensando no mesmo. As horas foram passando, o comboio foi andando e lá chegamos a Lisboa.
Fomos para o Cais do Sodré. Aí, foi mais um reviver a despedida dos nossos familiares que tínhamos deixado em casa e que se sabíamos que não estariam ali.
Ao verem tantos militares com os seus familiares e a chorarem, os que não tinham ali as suas famílias fugiam para um lugar onde pudessem estar sós para dar livre curso a mais umas quantas lágrimas e fumarem mais um cigarro, desejando que a família também lá estivesse para mais um abraço, um beijo, um adeus. Em casa, quando da despedia da família, quantos disseram que não era necessário irem a Lisboa, imaginando que seria sofrer duas vezes, mas aqueles que estavam ali com a família mais uma vez, mais uma vez sofreram e mais uma vez fizeram sofrer.
Depois dá-se aquela imagem a que já estávamos habituados a ver na televisão, que era a subida pelas escadas para o barco com as malas e os sacos às costas, que no nosso caso era para o navio Niassa, com a convicção que a viagem para o inferno não começava ali, pois que já tinha começado em Viana do Castelo, e que, quando iria acabar é que ali não se podia saber.
Já dentro do navio e com as malas e os sacos guardados, lá nos juntamos todos para mais uma vez dizermos adeus, alguns aos seus familiares, outros como não tinham lá a sua família, diziam adeus ao cais, à terra firme, àquilo que fora a sua vida até ali, a que davam um nome só: Portugal.
Depois, cada um como podia tentava mostrar aos outros que estava ali forte para enfrentar fosse o que fosse, mas só Deus sabe como cada um passou aquela primeira noite a bordo do Niassa.
A primeira de vinte e oito noites nos porões do Niassa nas condições mais degradantes que se podiam dar a um ser humano, quando, mobilizado para a guerra em África, o que precisava no mínimo era de um pouco de bem-estar.
Foram vinte e oito noites a sobreviver naquelas condições, e que noite após noite se iam agravando; uma viagem que para muitos teve regresso e para outros não, viagem igual a tantas outras que foram feitas durante o período da guerra colonial, que hoje recordo, talvez por saber as condições que hoje os nossos militares têm, quando naquela altura não éramos mais que carne para canhão.
Quando passo por um camião com animais para o matadouro vem-me sempre á memória aquela viagem onde homens, filhos do povo feitos soldados, feitos militares do exército português a que nos orgulhámos de ter pertencido, foram tratados assim mesmo, como animais a caminho do matadouro.

José Caseiro

6.2.11

Flash-back


De repente, do nada: saudades da guerra.
Porco e malcheiroso, de mãos sebentas, de G3 nas unhas, fuçando a mata virgem, cheio de fome e de sede, com raiva não sei de quê.
Mais vinte e tal tipos como eu, em fila por entre o capim, mal falando uns com os outros, sabendo que cada passo dado nos aproximava da morte.
Porque tenho saudades disto às vezes? Porque passo dias e dias a escrever, tentando pôr nas palavras que me visitam a recusa de qualquer visão romântica da guerra e de repente a memória me deita tudo a perder?
Os helicópteros a largarem soldados dando a impressão que se sacudiam e que eles caíam de ambos os lados para o chão. E depois, vultos a correrem para a orla da clareira, encurvados, numa coreografia rude de hienas em matilha. Os helicópteros a ganharem altura, um após outro, como insetos pré-históricos, e alguns minutos de seguida, o silêncio feito das batidas dos nossos corações.
Só a massa imensa da floresta à nossa frente. Quem nunca sentiu assim a mata, feita de muitos corpos, uns vivos e outros mortos e outros já apodrecidos, convivendo num corpo só, não faz a menor ideia do que estou a falar. Um corpo enorme que nos reduzia a simples vermes.
Agora assusta-me esta ideia de ter sido verme a esburacar um ser vivo procurando outros vermes como eu para os matar, mas mentiria se dissesse que, talvez por causa de um qualquer elemento químico fazendo parte de mim, não sentia um instinto de felino em busca da presa, não por fome, não por ódio, mas por um desejo desconhecido qualquer, que me impelia para a frente, onde eu próprio poderia encontrar o meu fim.
Não sei de maior desafio que o da superação do medo: encarar a exiguidade da margem que existe entre a probabilidade de sobrevivência e a do aniquilamento, e ter a consciência de que o desespero diminui essa margem; sentir um resquício de amor-próprio a impedir a perda de uma, ainda que aparente, dignidade; como um ator que representasse a coragem, mas correndo mesmo perigo, recusando, por presunção, um duplo. Por assim dizer, um ator representando a própria vida. Ou ainda por outras palavras: a coragem é sempre a fingir, porque sem medo a coragem é apenas um duplo que não sabe que a cena contém perigo.
É tentador aceitar esta saudade que de repente me assaltou. Deixo que a minha memória me conduza até esse tempo em que me sentia do lado da razão, combatendo os inimigos do Império. Como nas aventuras da minha infância: eu, colono e pistoleiro combatendo os índios que teimavam em não gostar de nós.
Perguntei muitas vezes, durante as minhas leituras infantis, porque não gostavam os índios dos colonos. Respondeu-me um dia o Sousa, sentado a meu lado num Hunimog. "Estão cá há mais tempo do que nós, furriel." Não lhe dei crédito, porque eu não tinha o instinto territorial tão desenvolvido como ele.
Continuei por algum tempo mais a experimentar esse sentimento de incompreensão para com a obstinação de alguns indígenas em não gostarem de nós, o que alimentava a minha coragem de ator sem duplo ao serviço de um dever que se tornava desconfortavelmente cada vez mais abstrato. Que ganhava o Sousa, quando voltasse para a Bairrada, com a permanência de Cabo Delgado no Império Colonial Português? "Ganho o mesmo que você, furriel." Que instinto me faltou ali, quando ele me respondeu assim, para não lhe dar crédito de novo?
Será que todos e cada um dos soldados que combatiam em África deveriam saber exatamente porque arriscavam a vida? Ou ter em conta que migalha do Império lhes caberia como recompensa?
Eu, aqui sentado numa cadeira da esplanada do Café Santa Cruz, olhando as pessoas distraídas a viver, sem procurarem razões para os seus atos, acho agora essa questão ingénua. É-me claro agora que a um soldado se pede que aceite dar a vida por uma razão que o transcende quase sempre. O que ainda verdadeiramente me intriga é a facilidade com que ele aceita, pois que os refratários e desertores são normalmente em número desprezível, mesmo tendo em conta que por vezes é mais perigoso desertar do que continuar combatendo.
É certo que o soldado é sempre pouco mais do que uma criança, e que a ignorância do que o espera contribui para que ele se deixe mobilizar, mas mais ainda do que aceitar a mobilização, surpreende-me a facilidade como que ele se torna um matador.
Ali em baixo passam inúmeros jovens de vinte e poucos anos, estudantes e empregados de serviços a quem criaria um pânico incontrolável, a ideia de pegar numa arma e matar alguém; mas, se o estado precisar, eles fá-lo-ão; como a esmagadora maioria dos jovens de vinte e poucos anos, de todas as épocas, de todos os países do mundo, quando o estado lhes diz para o fazerem. E a nenhum deles o estado se dá ao trabalho de explicar muito bem porque é que o devem fazer. Se o estado não precisa de fazer esse trabalho na hora da mobilização é porque esse trabalho já deve estar feito. E deve ser algo tão simples que nem damos por isso.
Talvez seja preciso apenas ativar um qualquer elemento químico fazendo parte de nós, algum instinto, alguma característica genética adormecida dentro de nós desde tempos imemoriais, que serviu para a preservação do grupo, quando a sobrevivência se fazia à custa do aniquilamento do outro.
Mas quase de certeza que a ilusão de imunidade transmitida através da vulgarização gratuita da violência deve ter um papel importante. Basta ver o subproduto da indústria cinematográfica americana que importamos a baixo preço, onde a visão da nudez e do sexo explícito são mais censurados do que a visão do esventramento e da sanguinolência.
Mas é um processo mais generalizado e aparentemente mais inocente, e por isso mais eficaz, que tem a maior responsabilidade no embuste da imunidade e da impunidade do ato de guerra.
Basta criar um imaginário de aventuras em que os outros são sempre os maus que teimam em não gostar de nós, e que nós temos o dever de aniquilar em vez de os deixarmos em paz.
Mas para entender este processo é preciso ter em conta o efeito manipulador do enredo. Na ficção, a história está sempre sob controlo; o seu autor sabe de antemão como ela vai terminar, apenas se diverte a criar falsos equívocos e falsos labirintos de que possui desde muito cedo a chave. E não é só na fast-food dos filmes de terceira categoria da indústria cinematográfica americana, é a própria História que não passa nunca de um conjunto de enredos e com autores conhecidos.
É certo que o enredo é-nos sempre contado para nos levar a aceitar a conclusão previamente conhecida, mas é já o enredo, ele mesmo, que tem esse papel manipulador de educar para o "ato heroico", ato este que na guerra, muitas vezes só se distingue do crime porque está dentro da Lei. A lei de um dado estado, de uma dada época. E é a lei, sempre temporal, sempre efémera, que confere impunidade ao matador.
Ou então uma dada ideologia ou religião. Deus reduzido ao papel de autor a quem confiamos a chave do enredo da vida, como se Ele já não tivesse dado provas, vezes de mais, de não gostar de finais felizes.
E, evidentemente, há a instituição militar, que, quando não se alimenta gratuitamente do alistamento obrigatório, transformando o serviço militar em trabalho escravo, se locupleta no desemprego, oferecendo aos jovens desempregados uma "carreira de futuro", que não passa de um contrato a termo certo, de trabalho precário e com um futuro de curta duração.
Mas a instituição militar, afinal, só aguarda que lhe entreguem a carne para canhão de mão beijada, e apenas vem dar um último toque de mestre, que tem como finalidade dignificar o ato de matar, transformando-o na arte da nobre profissão das armas.
A minha saudade da guerra acabou desbotada com o caminho que levaram estas minhas mal amanhadas lucubrações. Chegam-me agora apenas alguns flash-backs desconexos, de soldados saltando de helicópteros, soldados correndo para dentro da mata, seguindo depois silenciosamente por ela dentro. As pessoas a passarem lá em baixo, na Praça 8 de Maio, distraídas a viver. Alguns são jovens de vinte e tal anos, soldados a haver. O soldado da frente levanta o braço e depois baixa-o lentamente. Todos se baixam, e seguidamente mudam de posição até ficarem ao lado uns dos outros. Os jovens estudantes e a subirem a rua Visconde da Luz com uma coisa dentro deles. Uma coisa herdada dos seus ancestrais; algo químico que basta acionar para os transformar em matadores. Vozes das pessoas no aldeamento. Distraídas a viver também. Jovens de vinte e tal anos de arma na mão. Valorosos soldados facas-longas prontos a atacar uma aldeia de índios teimosos, que não gostam de rostos-pálidos. É só uma história aos quadradinhos. Tudo a fazer de conta. Somos todos bonecos. Basta fechar a revista. Basta olhar para a Praça 8 de Maio e ver que as pessoas continuam distraídas a viver.
E olho. E de facto está tudo normal. Tudo em paz. Estico lentamente as pernas como quem acorda.
E o pé da minha prótese faz um pequeno ruído seco ao roçar no chão.


(Conforme o novo acordo ortográfico)