20.12.11

Nunca se regressa de África


Os soldados baixaram-se todos, o furriel Bastos começou a espreitar pela máquina fotográfica e o cabo Bento sozinho lá à frente na picada a tentar levantar a mina anticarro.
Parece um filme na minha cabeça. Sempre a repetir a mesma coisa: o palerma do furriel a tirar fotos a tudo, os soldados alapados e o Bento ajoelhado como se estivesse a rezar.
A minha G3 cheirava à máquina de costura da minha mãe.
Não ouvi o rebentamento da mina. Não me lembro. Dizem que andei à procura dos restos do Bento, mas também não me lembro. Dizem de tudo. Cada um a sua versão, mas eu que estava a olhar para o Bento, não me lembro de mais nada. Só mais tarde, um poncho enrolado com qualquer coisa lá dentro, e o enfermeiro Costa desfigurado, abanando a cabeça.
Será que Deus apaga da nossa memória aquilo que acha que é demais para nós? Parece que estou a ouvir o furriel a dizer "Ó Sousa, se Deus pode fazer alguma coisa, que acabe a Guerra de uma vez e pronto!" Às vezes parece parvo, para que quer ele as fotos daquelas desgraças?
A minha G3 depois de oleada cheirava tal e qual a máquina de costura da minha mãe.
Se calhar é melhor assim, se Deus não pôde acabar com a guerra ao menos que apague as lembranças que nós trouxemos.
Mas às vezes parece-me muito estranho que não me lembre de certas coisas, como quando te vi a falar com o Adelino. Tenho a certeza que vi qualquer coisa: uma mão, um sorriso, um gesto. Fiquei para morrer. Tu ali, de frente para ele, debaixo do alpendre.
- Estavas a falar com quem?
E tu: - Ninguém, era o Adelino.
Eu fiquei em silêncio uma data de tempo, e tu: - Qual é o problema? Ele parou para saber se estava tudo bem comigo, e eu disse-lhe que sim.
E eu, nada.
E passou mais uma data de tempo, e tu: - Isso não te passa nunca, é?
E foste embora para o trabalho.
Não passa não, Zulmira. Parece que são borboletas no meu peito. Borboletas a gritar. Sei que nunca entenderias. Elas gritam batendo as asas. Milhões de borboletas dentro do meu peito.
Parece que os pesadelos nunca passam. Que foi que eu vi, Zulmira? O que vi eu na picada em África, que me plantou um cardo no peito que me faz sangrar, sem eu saber porquê, e que vi eu no alpendre que me faz sentir as asas das borboletas a ferver, a ferver sem descanso? Não sei, mas é como acordarmos de um pesadelo. Não sabemos bem com que sonhamos, mas sabemos que foi um pesadelo porque sentimos o coração aflito e falta de ar. Mas não passa, não desaparece. É como se fosse uma memória encravada, que não anda nem desanda. Uma tatuagem feita com um ferro em brasa não sei onde, mas que me queima a alma. Uma alma tatuada. Tatuada com uma memória invisível que dói.
A minha G3 era uma máquina de costura.
Sinto-me cansado. Tão cansado. Queria abrir uma janela no peito e tirar os cardos e deixar sair as borboletas.
Que pena não me teres amado antes, Zulmira. Que pena não me teres amado quando viajávamos sem este fardo e estávamos no princípio da viagem.
Tu chegavas devagar, sempre tão devagar, que parecia uma aparição, e abria-se uma janela algures quando tu chegavas. Quando eu olhava para ti, parecia dia de festa, e ficava quedo e mudo, porque eu não estava preparado para a tua beleza.
Se eu dizia "Ó Zulmira, uma mulher linda como tu não tem o direito de estar triste", tu zangavas-te. É que era estranho que a tua beleza fizesse os outros felizes e a ti não.
O furriel um dia viu a tua foto e disse que tinhas um ar de mulher fatal.
E depois disse: - Coitada!
E eu: - Coitada, porquê?
E ele: - As mulheres fatais matam de amor e morrem de solidão.
Falava de mais o furriel.
A nossa história é só um desencontro Zulmira, nunca deu certo. Quando eu te amava, tu até troçavas de mim; agora que me procuras de noite na cama, eu sinto um frio tão grande como se o meu corpo fosse um cadáver e tu tivesses vindo chorar sobre o meu caixão.
Gostaria de contar a nossa história a alguém, gostaria de escrever a nossa história para fazer chorar alguém com ela, de maneira a não me sentir tão só, mas como não serei capaz de a escrever, hei de plantar uma árvore que dure quinhentos anos, e hei de pôr-lhe o teu nome; sempre que o vento passar por entre os seus ramos ficará a saber um pouco de nós.
Já não te amo, Zulmira, mas lembro-me bem de te ter amado, e por baixo das borboletas e dos cardos, trago no peito um grande amor por ti. Um amor que ainda tenho dentro de mim, mas já não sinto, como uma dor de cabeça que deixou de doer por causa do remédio, mas que a gente sente que ainda está lá.
A minha G3 era uma máquina de costura, não era mais do que uma máquina de costura.
O furriel a tirar fotografias àquela desgraça. A cara do enfermeiro Costa desfigurada. Toda a gente aterrorizada. Às vezes penso que tudo aquilo foi um pesadelo que tive. Um pesadelo como os que ainda tenho, onde vejo tudo sempre a repetir-se, mesmo a meio do dia. Mas nunca vejo os rostos nem ouço os gritos. Como não me lembro da mina a explodir.
Depois deu-me uma vontade de destruir. Não era vontade de matar, Zulmira, era uma vontade de destruir. Destruir a guerra, se fosse possível.
O Bento desapareceu. Não morreu, desapareceu. Só encontraram uma bota com um pé lá dentro e um fio de ouro com a Nossa Senhora de Fátima.
- Se Deus existe, anda a gozar connosco. - Disse o furriel.
E eu olhei para o poncho a embrulhar a bota do Bento e depois virei-me prá malta ali à volta e disse que queria ser enterrado na minha terra, como devia ser.
E ele: - Não achas que deves morrer primeiro?
Porque precisava ele de dizer aquelas coisas?
Que se vê naquelas fotos? Floresta, soldados, mortos e feridos. Coisas paradas como se não tivessem alma. Uma foto não apanha o cheiro da minha G3, não apanha a dor, não apanha o último pensamento do soldado que vai morrer.
Em que pensou o Bento, quando estava debruçado sobre a mina como se estivesse a rezar? Que foto pode guardar isso? Será que o furriel vai mostrar essa foto a alguém e depois vai dizer "Este gajo morreu logo", como fazem os caçadores com os troféus de caça?
Depois rebentou a emboscada e eu descarreguei a G3 para o capim. Não sei se matei alguém. Só apertei o gatilho.
Eu disparava a G3, e ela trabalhava afinadinha como uma máquina de costura. Ta-ta-ta-ta. Era tão fácil. Ta-ta-ta-ta. Costurava o medo.
Depois: silêncio. Quando penso nisso, fico com a ideia que desde então não se passou nem se disse nada, só silêncio. Alguns vultos a passar à frente da luz, mas eu encandeado, não distingo mais nada. Não sei se me estou a lembrar da guerra ou do pesadelo da guerra. Há luz a mais, não vejo bem o que se passa. Ficou um vazio cheio de uma luz que cega. E esse vazio tem vozes e gritos tão dolorosos que eu não os ouço. Tem dores e medos tão assustadores que eu não vejo os rostos das pessoas assustadas.
Às vezes eu sei que é um pesadelo, um pesadelo apenas, mas quero acordar e não sou capaz. Quero sair dali, quero vir embora e não é possível; a gente vai à guerra e nunca mais sai de lá. Nunca se regressa de África. Nunca se regressa da guerra, Zulmira.
Que medo é este? Que dor é esta que Deus, por piedade de mim, me impede de conhecer? Sinto que não é um medo meu. Sinto que é o medo de todos os mortos da guerra, todos juntos, a sentirem medo de si próprios.
Só me lembro do furriel a tirar fotos, o Bento ajoelhado, a cara do Costa desfigurada, eu a disparar a minha G3 para o capim, tal e qual a máquina da minha mãe. A costurar o medo. E enquanto disparava não sentia medo, nem raiva, nem nada. Será que morreu alguém por causa disso? Será que matei alguém?
E depois o silêncio. Um silêncio como uma luz que encandeia. É esse silêncio que me mata.
Não matei ninguém, os turras eram fantasmas, estavam lá apenas para nos meterem medo a nós, e nós estávamos lá também só para assustarmos esses fantasmas.
Ta-ta-ta-ta!
Era só a máquina de costura da minha mãe. Ta-ta-ta-ta.
Ninguém morria com uma máquina de costura, pois não mãe?

10.11.11

Encontros e desencontros


Neve
Não hei de amar a neve que há de cair amanhã. Haveria de amar vê-la cair contigo a meu lado. Nada neste mundo é belo ou feio, é apenas mundo. A beleza está em eu poder dizer-te isto enquanto a neve cai.

Janela
Passo à tua porta.
A tua janela entreaberta. A luz coada pela cortina. Entre a janela e a parede um risco nítido de luz. Às vezes, a luz quase se apaga porque a tua sombra se projeta na janela.
Passo à tua porta.
A solidão é uma noite com a tua janela inacessível e a tua sombra nela. Entre essa sombra e eu há um espaço vazio, um infinito sideral, a irreversibilidade de um momento já passado.
Passo à tua porta…
Agora que conheço o teu quarto, a tua janela já não tem mistério nenhum.

Miragem
Não há um tempo para nós. Não há um lugar para nós. Somos duas metades de duas peças diferentes que nenhuma oportunidade unirá. Cada um de nós é o sonho do outro, mas na vigília é que sabemos o quanto dói entender a impossibilidade de ser feliz e ter imaginação.
Mas é por isso que o nosso amor é perfeito. Nada pode pôr fim de facto ao que ainda não começou senão em desejo.
Se nos tivéssemos amado livremente e saciado os nossos corpos famintos, que fome nos restaria para nos continuarmos amando? Que outros caminhos tomaríamos nesta busca incessante pela miragem a que pusemos o nome de felicidade?
Os amores bem sucedidos morrem lentamente, como a tarde morre no crepúsculo, sofrendo em cinzento com a saudade do dia colorido.

Despojos
Sinto claramente que cheguei tarde. Tens um ar de fim de festa, como se já tivesses gasto todo o champanhe e agora estivesses a água mineral para a ressaca.
As tuas palavras são de náufraga e as tuas roupas, pousadas no corpo com negligência, criam em mim a imagem de despojos de uma batalha abandonados à pilhagem.
Tentas um sorriso que morre antes de se ver, e não te ocorre uma única palavra que possa salvar este encontro.
Há, no entanto, nesse teu desalinho, uma poesia crepuscular, uma beleza sobreviva que comove, como o sol em certas tardes dramáticas de outono a oferecer a última reserva de calor.
Sinto claramente que cheguei tarde, ou então, não soubeste esperar por mim.

Bipolaridade
Tudo é uma coisa e o seu contrário. Tudo vale pela sua presença, tanto quanto pela sua ausência. Crescemos sucumbindo ao prazer, mas é superando a dor que somos grandes.
Desgraça e fortuna, amor e ódio, derrota e vitória fazem-nos de igual modo viver intensamente, e, nesse ganho de intensidade, é que crescemos para além da mera cápsula de gozo a que nos reduz a monótona fiada de prazeres que parece ser a promessa de felicidade.
É por isso, percebes? …que distante, estás às vezes mais perto que as pessoas que chocam comigo no passeio.
É por isso, percebes?

Ternura
Ele ajeitou duas farripas de cabelo sobre a calvície, e constatou o insucesso no espelho da pala do carro, enquanto um vulto volumoso de mulher atravessava a rua na sua direção.
Ela olhou de relance a sua própria imagem na parede de vidro do Hotel, conformada com a sua silhueta elefantíaca.
Da esplanada do café alguns olhares medem-lhe o volume do corpo e nem sonham a menina frágil que ali vai. Um coração delicado em busca de um pouco de ternura e prazer.
Ele sai do carro, numa agilidade precária. O coração bate a descompasso, mas não é uma arritmia, é um coração de adolescente antecipando a aventura.
Sorriem.
Que pintor conceberia um quadro onde aqueles dois corpos fossem o símbolo da paixão? E no entanto daqui a pouco, no quarto do hotel, esgrimirão todos os gestos do prazer. Mas depois, exaustos, vão olhar a descompostura dos seus corpos nus sobre a roupa em desalinho, sem o adorno da beleza, e um enjoo tomará conta do resto da tarde.
Ao separarem-se de novo, um relance de ternura promete uma futura redenção do prazer. Mas ela passa junto à parede de vidro do Hotel olhando para o outro lado, e ele recolhe a pala do sol antes de entrar no carro.

Poesia
A minha avó vinha aqui à travessa da rua da loja consultar o Sr. Augusto enfermeiro. O Sr. Augusto enfermeiro era na verdade o médico da aldeia. Eu esperava sentado no chão empedrado da travessa da rua da loja, que fazia as vezes de sala de espera, e achei o livro. Não era grande o livro. Parecia um pequeno taco de madeira suja, de folhas grossas.
"Não faças teu o que não é teu" era o aforismo da minha mãe para que procurasse sempre o dono das coisas que encontrasse e assim perdesse o prazer da descoberta e os favores da fortuna.
Guardei o livro com o gozo de quem lança mão de um furto e todas as noites o olhava secretamente, tentando interpretar as manchas de tinta que sabia chamarem-se letras.
Fui entendendo o que estava escrito à velocidade com que fui aprendendo a ler. Letra a letra, palavra a palavra.
Mas um conjunto de palavras não é um texto, como um conjunto de ramos não é uma árvore. Tem sempre que haver um tronco comum para que as palavras façam sentido. Esse tronco demorou tanto a aparecer que as palavras ficaram soltas na minha memória antes de lhes ter captado o sentido.
As palavras bailavam na minha mente. Não eram uma história, eram um bailado de palavras.
Tenho hoje a certeza: a poesia nasceu em mim, muito antes de eu saber ler.

Vazio
Nunca vi partir um vapor de um cais pela neblina da manhã, onde viajasses, para ir ter com o homem da tua vida enquanto eu ficasse, de cabelo escorrido pela morrinha matinal, olhando as insignificâncias do ancoradouro para não sentir o vácuo que o vapor ia deixando no meu peito, à medida que se afastava.
Nunca vi partir um vapor, porque deixaram de existir antes de eu ter nascido, sinto apenas esta saudade, como se tivesse a memória de ter visto partir um, contigo lá dentro. Partires de uma estação de caminho de ferro no TGV, não seria a mesma coisa; a rapidez tira drama à vida. E até os amores impossíveis precisam de um tempo certo, e, vermos afastar-se um vapor numa manhã de nevoeiro, enquanto a morrinha matinal nos escorra o cabelo, a acentuar o desgosto, é ainda mais doloroso que ver-te partir, porque partires é algo teoricamente reversível; e uma esperança, embora tão ténue e efémera como o fumo do vapor que a morrinha dissolve antes de chegar a mim, ficaria a unir-nos; porém, ver um vapor afastar-se lentamente, quando já não existem a não ser no nosso imaginário, é mais do que doloroso, é simbolicamente doloroso, o que quer dizer que será a conjunção de todas as dores dentro de mim e não apenas a dor de te perder.
A dor de ver-te partir teria ao menos o conforto de ser o reverso de um momento hipoteticamente feliz que, pelo menos na minha memória, ainda persistiria para preencher o vazio que iria crescendo com o tempo e com a distância.
Mas para preencher este vazio não há anverso desta dor, porque não há vapor, nem partida...
Nem tu.

Indignados
Ganhaste direito a escolher, mas não a escolher os que te tiram esse direito; que ao tirarem-to, no-lo tiram a todos. A liberdade é um conceito biunívoco, sistémico e inalienável; quem a use para a destruir perde-lhe o direito, ainda que constitua a maioria.
Chegou a altura de te dizer isto, porque a tua desistência da liberdade começa a ameaçar a nossa.

Metáforas
O que quer que haja de corsa em cada passo que dás, o que quer que haja de gaivota no modo como dizes "Vamos?", o que quer que haja no que quer que seja em ti, não explica nada do que sinto.
Não há uma boa metáfora para o teu encanto.

Milagre
Era de vagar que falávamos:
– Desde quando, mãe?
– Desde que senti o teu coração bater pela primeira vez.
– E como era isso?
– Era um milagre.
– E nunca perdeste a esperança?
– Muita vez.
– E depois?
– E depois a esperança nascia de novo, como quando senti o teu coração pela primeira vez.
(Era de amor que falávamos.)

11.9.11

Crónica de uma operação falhada

Texto de José Raimundo

[...] A manhã estava fresquinha e o orvalho existente na vegetação ia penetrando pelo camuflado, mas o sol começava a raiar tornando aquela caminhada silenciosa em algo surreal, pois ninguém dizia fosse o que fosse, e a coluna movimenta-se como sombras ora mais rápida em campo aberto ora mais lenta em zona densamente arborizada ou com muito capim. Cerca das sete da manhã a coluna parou. Que aconteceu, perguntam lá de trás, nada, responde-se da cabeça da coluna, apenas temos um milheiral pela frente. O Tubarão, elemento que seguia na cabeça da coluna ao sair de uma zona arborizada depa
ra-se com uma plantação de milho de grande extensão e parou. Chamou o Raimundo à frente o qual observou o milheiral que teria forçosamente mais de dois metros de altura e concluiu que o melhor para seguir em frente era atravessar a plantação, solução que foi aprovada pelo Capitão e a marcha seguiu. A companhia esteve toda dentro do milheiral e cerca de 100 homens em fila indiana ainda representam uns bons metros podendo-se aquilatar por aqui a extensão daquela plantação. À medida que iamos avançando no atravessamento do milheiral começamos a distinguir uns sons os quais estavam cada vez mais próximos e que eram nada mais nada menos do que vozes de homens conversando animadamente. Feita a respectiva transmissão para a traseira da coluna, no sentido de haver o máximo cuidado e evitar todo e qualquer barulho fomo-nos aproximando do fim do milheiral. Quando a cabeça da coluna aí chegou, Raimundo e Tubarão pararam, agacharam e mediram a envolvência. A mata desenrolava-se novamente a cerca de cinco-dez metros do fim da plantação do milho, pelo que haveria de se ter o maior cuidado na travessia do campo descoberto. À esquerda do local onde atingimos a orla do milheiral havia uma espécie de banca, com alguma dimensão, repleta de abóboras e outros produtos agrícolas que certamente estavam ali a secar. As vozes ouviam-se mais para a esquerda dessa banca, mas deveriam estar a uma distância relativamente curta tal a nitidez com que se chegavam até nós.
Com o máximo cuidado mas também com a rapidez possível numa situação daquelas embrenhamo-nos na mata tendo toda a coluna feito a transposição sem qualquer problema. As vozes iam agora desaparecendo aos poucos e poucos. E também pouco a pouco a companhia foi avançando na mata rumo ao objectivo. O sol começa a apertar e o ritmo da marcha abrandava um pouco. Perto da oito da manhã chegamos ao local onde em tempos, por altura da operação Nó Górdio, tinha estado estacionada uma bateria de artilharia, pelo que aproveitando o local, foi dada ordem de paragem para descansar. O pessoal espalhou-se pelo terreno, aproveitando os “buracos” dos obuses ou estendendo-se ao longo de um trilho que ali passava, e enquanto uns apenas descansavam outros comiam, outros dormiam ou pelo menos tentavam e outros ainda, escondendo-se nas traseiras de qualquer árvore ou arbusto ali existente satisfaziam as suas necessidades fisiológicas. O local onde tinham estacionado os obuses era, como não podia deixar de ser, uma clareira, onde apenas alguns arbustos e capim tinham crescido naquele espaço, pelo que dada a sua largueza foi aproveitado pelo Capitão e pelos furriéis para fazer uma breve “reunião” tendo em vista o ponto de situação, finda a qual cada um voltou à sua posição.
[...]
Escrito 39 anos depois dos acontecimentos.

Texto de José Raimundo


4.9.11

A Enfermeira que vinha do céu – Final


Custam-me a sair as palavras. Era assim que acontecia sempre que morria um dos nossos. Uma coisa sem sossego no peito e nós todos calados de os olhos postos no chão.
Mas se nos calarmos, que seja por pouco tempo, o minuto cerimonial e mais nada, depois falemos, contemos a toda a gente quem foi a enfermeira paraquedista Piedade Gouveia. Ela merece ser recordada de cabeça levantada e em continência, como só os verdadeiros heróis merecem.
Chamei-lhe "A enfermeira que vinha do céu" e todos os soldados que um dia combateram perceberam logo porquê.
Um dia foi-lhe confiada a minha vida, e na meia hora mais dramática que vivi até hoje, a Piedade cuidou dela com desvelo.
Eram dias dramáticos, tinha-se um sentimento de vida à beira do abismo, de experiência limite, e todos nós, os que combatíamos, obrigados ou não, sentíamos, pelo menos durante algum tempo, que cumpríamos um dever inelutável.
Outros momentos dramáticos se sucederam neste país limítrofe, sempre à beira de um abismo qualquer; mas ser combatente não é só ter capacidade para pegar em armas, e o exemplo das enfermeiras paraquedistas, as únicas mulheres combatentes na guerra colonial, ensina-nos como a coragem para enfrentar o perigo e o medo, e a generosidade e a disponibilidade para com os outros, podem salvar-nos a todos do recorrente abismo. Nós que as conhecemos, não deixemos que os portugueses se esqueçam disso.
Hoje partiu a enfermeira que vinha do céu. Vai só.
O héli que a leva não regressará com ela para nos salvar quando tombarmos de novo. Ficámos mais sós também.

Leia também sobre esta enfermeira paraquedista:

2.9.11

A Mulher na Praia

Texto de José Caseiro

[…]
A notícia de que havia mortos preocupou-me, pelo algo estranho que senti quando os hélis estavam a passar por mim, minutos antes. Tendo um bom relacionamento com o 1º sargento do hospital, na primeira oportunidade que tive fui pedir-lhe que me deixasse ver os nomes dos feridos e dos mortos que tinham dado entrada naquele dia, na esperança de não encontrar lá o nome do meu amigo.
Foi um choque enorme, um nó na garganta, uma raiva. Foram mil e um pensamentos e palavrões que dirigi naquele momento aos autores da morte daquele meu amigo de infância, quando li o seu nome na lista dos mortos.
Pedi para ir ver o corpo mas não foi possível, porque tinha ido para a casa mortuária e esta já se encontrava fechada.
Bastante abalado fui para a flat escrever um aerograma a uma pessoa amiga e vizinha dos pais do falecido, aerograma que levaria, em média, quatro a cinco dias a chegar ao destino, pensando eu, que quando o aerograma chegasse, os pais já eram conhecedores da morte do filho, e aquele aerograma seria a explicação de como aconteceu, o que, segundo a informação que me deram, com a explosão, foi projectado, e ao cair, bateu com a cabeça numa pedra e teve morte imediata. Só que o aerograma chegou no mesmo dia que os dois telegramas que foram enviados aos pais, o primeiro da parte da manhã a dizer que o filho tinha sido gravemente ferido e o segundo da parte da tarde a dizer que não tinha resistido aos ferimentos e tinha falecido.
A pessoa amiga a quem escrevi, quando chegou a casa depois de um dia de trabalho, deparou com os vizinhos aos gritos e com os pais em pranto pela morte do filho, esteve um pouco junto deles e foi depois para casa, onde só então viu na caixa do correio o meu aerograma. Diz-se que as más notícias correm velozes, mas quando chegam todas ao mesmo tempo, fazem pensar que o destino é demasiado cruel.
[...]
Texto de José Caseiro

Leia o texto completo aqui

7.8.11

O Recobro da Primavera



A chuva a atormentar as folhas da laranjeira, e dentro de casa a ideia que o mundo é diferente: um conforto de mantas e escalfetas e a ausência do vento, só a chuva impotente de encontro às vidraças. O Inverno acaba por passar para os corpos. Os pés e as mãos a escaldarem em frente do lume e um frio cá dentro ainda. O rádio a crepitar estalidos com uma música de piano lá no fundo, tão no fundo, que parecem dois mundos também, o dos ruídos e o da música.
A minha mãe de termómetro na mão a ler o tamanho da minha gripe. O meu pai à porta, à espera de ler nos olhos dela o que ela lê no tubinho de vidro. E depois eu a ler nos olhos dele o que ele leu nos dela.
A minha mãe sacode a minha gripe do tubinho. Sacode, sacode e olha desanimada para o meu pai.
– 39!
– 39?!
– 39.
Esta casa é tão alegre quando não chove. Na sala, os retratos de antepassados defuntos não me tiram os olhos de cima, mas quando não chove nascem flores no cachepô da mesa.
Agora a chuva lá fora a criar bolor nas paredes cá dentro, a humidade a desenhar figuras nas paredes.
Olhando de certa maneira:
– Um cão, mãe.
De outra:
– Uma pomba.
– É a febre, meu filho.
Devia faltar pouco para o Carnaval, porque chegada a noite, lá fora, alguém usava um funil de almude como megafone para lançar pulhas ao namorado de uma vizinha, enquanto um coro ao lado uivava a cada provocação:
– É verdade! É verdade!
E na sala, os defuntos pendurados nas paredes sem tirarem os olhos de mim.
Muitos anos mais tarde, haveria de substituir os retratos todos por telas sujas de tinta com títulos inteligentes para serem tomados por obras de arte. E a minha mãe dividida entre a saudade dos olhos dos defuntos e o afeto pelas minhas manchas de tinta.
Mas nessa altura, ainda, os olhos da minha bisavó, pendurada na parede acima da cómoda, a olharem-me pela frincha da porta. E a aflição das folhas da laranjeira. E os dedos esqueléticos da figueira a lutarem com o vento. E o inverno no interior do corpo, embora tanto calor no rosto. E a minha avó a insultar a gripe:
– Aquela cadela que não o larga!
O sono era um delírio com as cores da vigília em negativo. Só que o quarto não tinha paredes e a mesma imagem teimosa a repetir-se vezes sem conta: um rio de tintas escuras e eu a afogar-me, a afogar-me. Depois desapareceu tudo e passou uma eternidade. Ou um instante, tanto faz; quando se perde a noção do tempo, tanto faz.
Acordei.
E quando acordei, a cabeça tão leve, uma dorzinha de fome tão boa, os sons da rua a enfeitarem o silêncio, uma voz que se aproxima lentamente, tão lentamente. Que passa e continua lentamente, tão lentamente.
As pessoas vão-se levantando e os ruídos da casa repentinos, estremunhados.
Alguma coisa mudou no mundo e não foi só a minha febre, a minha dor de cabeça, a preguiça que me dissolvia todos os músculos do corpo. Sinto uma lucidez que me vem de fora. Da luz que altera as cores do quarto, dos sons que parecem decididos.
Tudo parece ter um propósito qualquer.
Havia um ruído indeciso que desapareceu. Havia uma velatura amorfa que se dissolveu. Uma humidade pesada que enxugou, deixando a superfície das coisas nítida e sólida.
Mas a luz ainda húmida.
Um dedo da figueira toca na vidraça um código de morse a anunciar que algo alegre se aproxima.
Não havia mais música que o som da bigorna do Ti Zé e o perfilar das vozes que vinham todas do lugar e se dirigiam todas para o campo. Primeiro só algumas madrugadoras sem pressa, depois em maior número como um coro no compasso certo, e por fim as tardias, que passavam quase a correr. Não havia mais música do que isso, e se houvesse seria de mais, porque uma alegria amanhecia no corpo, uma euforia de festa que entrava com a luz da janela e que tornaria toda a música desnecessária.
A minha mãe à porta num júbilo de puérpera a ver-me despertar. A minha avó arrependida da imprecação da véspera:
– Aquela cadela! Que deus me perdoe.
O meu pai a aliviar da memória o agouro da pneumónica e a lutar com uma lágrima embaraçosa.
Em breve eu livre dos abafos e das portas fechadas. Em breve a corrida por entre as vozes dos meus pares como um coelho entre coelhos, como um pardal entre pardais.
Será que só retive o essencial ou era tudo verde? Recordo quando muito uns pingos de amarelo sobre o trevo, e umas erupções de púrpura na bungavília que enfeitava com as suas flores de papel o muro do Senhor Afonso Bandarra. Ali, eu sabia um ninho de pintassilgo. Sabia eu e o gato da Ti Maria Adôa.
Uma madrugada, os gravetos e a penugem no chão e uma pintassilga quieta num ramo. Uma comoção de pólen no nariz e lágrimas de alergia nos olhos; ou então, eu a entender o júbilo de puérpera da minha mãe.
Nada acontecia de especial em Aguim quando chegava a Primavera. Tirando o arraial do São José. Uma festa meio cristã meio pagã. As bandas a tocarem ao despique e uma parelha de cavadores a desenterrarem a Pedra-da-sesta.
Mas quando a Pedra-da-sesta ficava ali à espera da festa do Castro para ser enterrada de novo e os coretos, desfeitos no chão em despojos de palmas e açucenas, davam a ideia de que se travara ali um combate, regressava o sentimento de que todo o som era quase música, e que mais música seria de mais; a não ser, às vezes em dias muito especiais, quando o Sr. Manuel da Leonarda decidia acompanhar ao violino o concerto do Ti Zé na bigorna.
Nada acontecia de especial porque o Sol fazia a festa sozinho. Que tinha o Sol da minha infância que nunca mais o vi assim? Nascia mesmo por detrás do Monte Grande e já vinha em festa, e punha-se ainda alegre atrás da torre da capela.
À noite apetecia dormir e de manhã apetecia acordar. Tudo estava certo na Primavera.
Na verdade, tudo me parece ter estado certo nesse tempo. É costume, quando se olha o que já aconteceu, porque as coisas más já não podem fazer-nos mal; como quando olhamos pelo retrovisor desvalorizando as derrapagens perigosas que fizemos e amando já a estrada percorrida.
E nesta viagem em que parei algumas vezes para corporizar esse amor, as cidades foram as minhas verdadeiras amantes: Coimbra, a mulher tricana de todos os meus dias. Lisboa, a promíscua, tão fiel de dia e tão infiel de noite. Hamburgo, a altiva, com as suas cicatrizes de guerra a ensinar-me que há vida depois da morte. Mueda, a grande prostituta, onde desci ao mais baixo patamar da humanidade, que me levou quase tudo e que apesar disso me deixou, não sei em que parte de mim, um amor fatal e doloroso. E Aguim. Aguim trigueira, tisnada do sol, elevada sobre uma colina para parecer mais alta, onde tudo o que há em mim nasceu.
Nasceram as palavras na sua pronúncia um tanto abrupta no início das frases e cantada nas vogais finais, e, onde não havia vogais, a acrescentar um i.
Nasceu a música. O violino velho do meu pai de onde só saía o som dorido da única corda sobreviva, e o milagre da metamorfose do ruído em música, quando em dias especiais o violino do Sr. Manuel da Leonarda transformava a bigorna do Ti Zé Sécio no mais glorioso timbale que se pode conceber.
Nasceu esta minha fidelidade de rafeiro doméstico pelos meus amigos, que julgava tão poucos, e afinal muitos; tanto que, vão morrendo já e continuam meus amigos.
E nasceu esta minha paixão de gato vadio pelos becos e pelos telhados, pela tessitura prolixa das cidades e pelo deslumbramento da Natureza; tanto quanto me lembro, desde que via o Sol a erguer-se por detrás do Monte Grande já em festa e ainda convalescente do Inverno.


8.7.11

Diário inconstante – 2011



Janeiro, 6

Da fundura do tempo a memória do Dia de Reis, na época em que me cabia a tarefa de desmanchar o presépio. O presépio era uma versão íntima de uma cascata S. Joanina, e o Menino Jesus ainda não tinha envelhecido ao ponto de parecer um pantomineiro de feira com a sua cara de bêbado e barbas de franja de reposteiro, e para cúmulo do mau gosto, envergando um pijama garrido oferecido pela Coca-Cola.
Um dia, lá em casa, por alturas do início da minha escola primária, substituímos as figuras da Natividade por um profano píncaro de pinheiro, esgrouviado e meio torto, enfeitado com neve de algodão e uns penduricalhos de plástico, e rendemo-nos modestamente ao consumismo capitalista. E o Menino Jesus envelheceu subitamente e tornou-se no Pai Natal, com aquela cara de avô gaiteiro. Que mão é esta que reduz todas as coisas que nos enfeitam a vida a objetos sem alma?

Fevereiro, 6
– Os soldados, os homens que um dia combaterem, têm dias assim, em que ficam de olhos parados procurando a distância…
– Vocês fazem isso por terem saudade dos combates?
– Não minha filha, os combatentes não têm saudade dos combates, têm saudade de si mesmos enquanto combatiam.
– Então não deviam procurar a distância com o olhar, deviam procurar dentro de si.

Fevereiro, 10
Há anos que não vinha aqui. Parei o carro e subi a vereda do Monte Grande. Tudo parece pequeno, como acontece com as árvores de Natal: nós crescemos e elas ficaram com o tamanho da infância.
Caminho, ouvindo as pedras a gemerem debaixo dos ténis. Conheço esta música. Sorrio, porque não tenho medo agora.
No outono de 74 vim aqui um dia só para cheirar a urze, ouvir o sussurro do pinhal e fumar um cigarro, e entrei em pânico. As pedras a gemerem debaixo dos pés, e eu ali num trilho deserto, sem arma, sem companhia.
O chão era o nosso inimigo e as picadas de Cabo Delgado traiçoeiras. Não se pode lutar contra o chão, cada passo era um ato heroico de sobrevivência.
Levei anos a reconciliar-me com os caminhos e as veredas.
Só de longe em longe, quando me apanha distraído, ainda a visão das goelas carnívoras da Terra abocanhando-me uma perna.

Março, 8
Os dedos que o cigarro alonga. Uma história que deve vir de tão longe, e de há tanto tempo que são mais as fantasias que as memórias. Uma história que passa por aquela mesa da pastelaria da Avenida e vai continuar até a vida ser um cansaço insuportável.
Um fio de fumo soprado quase na vertical e uma perna esticada devagar, numa provocação um pouco menos que elegante, atraindo os olhares dos homens.
Os olhares dos homens fazem parte da sua forma de vida.
Um dedo negligente no bordo do copo dá a impressão que o resto está ausente: corpo e mente. E um olhar de loba sobre o rebanho. Uma loba olhando os cabritos como se avaliasse o valor nutritivo de cada um deles.
Quando o olhar passou por mim, senti-me reduzido a um almoço.

Março, 28
– As fotos são momentos que ficam presos no papel para sempre. Uma ínfima parte da vida de uma pessoa a desafiar a eternidade…
– Mas nessa foto não se vê ninguém, para que serve então?
– Serve, minha filha, para lembrar o local onde morreram soldados numa guerra.
– É um local triste, achas que ficou assim por causa dos soldados que morreram?
– Não é o que acontece num local que o torna triste, minha filha, é a tristeza que fica em nós que nos faz vê-lo assim.
– Então não devias tirar fotos a lugares onde morreram soldados.

Abril, 13
Paúl de Santa Cristina. A serra sobranceira torna a aldeia mais pequena. Ali há uma casa que tem uma nesga de terreno a servir de pátio. Ao canto do pátio um limonete encosta-se à parede da casa e lança pela janela de um quarto o seu perfume eternamente fresco.
Ninguém vive há muitos anos nessa casa, ninguém dorme já naquele quarto. Será que ainda lá está sobre a cama o colchão de farpelas de milho e a travesseira de sumaúma?
Acordar com o suavíssimo cheiro a erva seca da sumaúma, o odor intenso a aparas de madeira das farpelas de milho e o perfume cítrico do limonete e ter pela frente as Férias Grandes, convidava a não fazer nada.
Pobres dos que nunca aprenderam a amar a vida por terem sempre que fazer.

Abril, 18
Era mais ou menos aqui que estava a bomba do arco de ferro. O corpo cilíndrico da cobertura do poço escondia um mundo misterioso e subterrâneo. Ainda se sente a calma das tardes de verão, em que a vida à superfície do mundo, na sua aparente inconsequência, de vez em quando alterava levemente a substância das coisas. Tenho a certeza que a luz era mais doce. Tenho a certeza que o relógio do tempo tinha outros vagares. Tenho a certeza que se vivia mais; não porque os anos fossem mais numerosos, mas porque os segundos eram mais longos, muito mais longos.
O Tempo anda à velocidade por que passamos pelas coisas, e, no tempo em que havia aqui uma bomba de arco de ferro, eu não passava; vivia aqui.

Junho, 4
– Não há a menor equidade neste mundo, por isso é que as desgraças não estão melhor distribuídas.
– Mas nós já tivemos bem a nossa conta, Manel. Dizias tu, parecendo não te conformar com a teoria.
E eu sempre pessimista: – Quando ultrapassamos uma desgraça o contador volta ao zero e tudo começa de novo, sem respeito nenhum pela equidade.
Depois olhámos meio pasmados o casario, naquela arquitetura de mau gosto da Solum e ficamos ambos com pena de eu ter razão.
Finalmente remataste com aquele teu jeito impaciente: – Pois, anda!
Agora veio a notícia. Como o som sinistro de uma mina antipessoal. Ouvi a notícia e baixei-me um pouco como quando isso acontecia na guerra e um dos nossos era ferido.
Passado o choque inicial a que a razão recusa habituar-se, ficou a sensação de que algo ficou a meio, uma conversa adiada, um lugar vazio à mesa. Porque me lembro só de coisas insignificantes? Parte um amigo e só me ocorre que me esqueci de lhe contar a última anedota, que lhe fiquei a dever um almoço. Deve ser o sentimento que me ficou do tempo da guerra, de quando os amigos me eram tirados a meio de uma conversa. Mas nessa altura não havia tempo para o luto, a guerra não respeita sobretudo os que caem. E a esta enorme distância dá a impressão que todos fomos abatidos na guerra, todos morremos um pouco. Mas a verdade, Padilha, é que nós sobrevivemos para podermos ser vítimas de novo, para morrermos de novo.
– Também ganhámos alguma coisa na guerra. Dizias tu, com o teu otimismo teimoso.
Eu torcia o nariz sem argumentos. Hoje reconheço: pelo menos tu ganhaste. Ganhaste esse aprumo e essa dignidade genuínas, que eu sempre achei falsas na tropa. Ganhaste uma verticalidade que na tropa é apenas arrogância. Mas sobretudo aprendeste, por contraste, a ser feliz na vida e a partilhar essa felicidade com aqueles de quem gostas.
Gostaria de te dizer como Cantanhede saiu à rua para te acompanhar, como foram solenes as honras militares que te prestaram, como a tua mulher estava digna, como as tuas filhas são corajosas, como a tua neta estava linda. Devias ter visto, ias gostar!
Não devia recusar-se uma última visão das coisas a que um homem dá valor.
Que pena, Padilha, tinha uma anedota porreira para te contar. Agora fiquei com ela atravessada aqui na garganta e parece-me estúpida.
Se calhar tens razão. Se calhar já tivemos a nossa conta. Se houvesse compaixão neste mundo uma desgraça por pessoa já bastava.

Junho, 6
Na estrada de Vale-de-Cide, daquele lado, onde o muro do arvoredo criava uma cabeceira em que apetecia encostar a cabeça para dormir a sesta, havia um pó finíssimo, sobre o qual os camponeses deixavam uma nítida impressão plantar a cada passada.
Nessa altura homem e planeta eram uma comunhão. No meu egoísmo bucólico ignoro toda a dor precisa para imprimir cada uma daquelas pegadas na poeira da estrada morna, como borralha aquecida na fornalha do Sol.
Hoje ninguém passa a pé naquela estrada com o peso de um dia de lavoura às costas, e sobre o alcatrão não há uma só marca humana.
Há de haver uma forma de sermos felizes sem desumanizarmos o mundo.

Junho, 7
– Onde caíram os soldados, onde tombaram, onde o seu sangue tornou a terra vermelha, nascem às vezes flores…
– Então porque não há aqui flores? Ninguém amava os soldados que morreram?
– Não é por falta de amor que as flores não nascem, minha filha, é por não ser primavera.
– E porque nascem os soldados, por ser inverno?
– Não minha filha, os soldados nascem todo o ano, por falta de amor.
– Então porque não nascem flores todo o ano em vez de soldados?

26.6.11

Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial


Organizada por
Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi
Publicada pelas Edições Afrontamento

Enquadramento da obra
Entre 1961-1974 Portugal manteve com as suas então colónias de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau uma guerra, mobilizando perto de um milhão de homens e tocando praticamente todas as famílias portuguesas. A experiência da participação portuguesa neste evento de indefinida colocação historiográfica, quer pela denegação que oficialmente o caracterizou, quer pela radical reformulação geopolítica do país que a partir dele se engendrou com a descolonização, tornou este acontecimento um dos mais complexos, mas também um dos mais trágicos eventos da contemporaneidade portuguesa.

A experiência colectiva e individual da participação dos portugueses neste evento teve, e continua a ter, o seu registo de expressão narrativa e crítica, e o seu registo estético nas mais variadas formas de arte – da pintura e escultura à narrativa, do cinema ao teatro, da música à poesia. Foi sem dúvida na literatura que este registo de reelaboração colectiva e individual do evento se tornou mais marcante, dando origem a cerca de uma centena de romances e a milhares de poemas. Esta poesia, de autores directa ou indirectamente envolvidos na guerra, e elaborada, ou no momento da vivência do evento bélico, ou em seguida, enquanto espaço de memória e de elaboração pós-traumática, foi objecto de estudo do projecto Poesia da Guerra Colonial: “ontologia” de um eu estilhaçado, que decorreu nos últimos anos no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, sob orientaçao científica dos dois organizadores da presente antologia e o financiamento da Fundação da Ciência e Tecnologia. A Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial é o resultado visível deste projecto, reunindo mais de centenas de poemas de cento e oitenta poetas.
... incluindo o autor deste blog, com dois poemas: O Cacimbo e Nunca Voltarei a Mueda

14.6.11

Estupidário II


Telemóvel

Um casal passa por mim. Ambos falando ao telemóvel. Falam, ela apreensiva e comedida, ele autoritário e exuberante. Fazem sinais para comunicarem entre si. Ele aponta o relógio de pulso a dizer que já é tarde, ela bate levemente no telemóvel e abre a mão em sinal de impotência. Ele estica o queixo em direção ao telemóvel dela a perguntar quem é, e ela abre a mão na direção dele a pedir que espere. E falam sempre para os seus contactos; ele autoritário, ela comedida. Passam por mim e dirigem-se para o parque de estacionamento. Antes de entrarem, cada um em seu carro, ele ainda aponta o indicador para ela e depois estica o polegar e o mínimo como se medisse a distância entre o ouvido e a boca, a pedir-lhe que lhe telefone mais tarde, e ela levanta o polegar a concordar.

Seguem cada um para seu lado, com a certeza que estarão sempre em contacto, porque é facílimo falar com as pessoas ausentes.

Quando terão tempo para sentir o tempo compartilhado como a água quieta de uma lagoa, e as palavras trocadas com todas as frequências da voz humana?

Alguém lhes diga que a voz humana não cabe na largura de banda de um telemóvel. Que a frequência que não se ouve e cria a ereção de todos os pelos do corpo precisa da intimidade sem intermediação; que o que a boca não diz e os olhos mostram se percebe apenas por uma diferença de estado de alma; que há coisas que se têm de dizer com o corpo todo e que precisam do corpo todo para ser entendidas.

Que alguém lhes diga que há um tempo para isso, e que depois esse tempo passa e fica um vazio que levamos para todo o lado; uma viuvez sem o conforto da saudade.


Chaves

Sabia exatamente onde guardavas as chaves: saías, fechavas a porta, mexias no tapete com uma mão só para enganar, e com a outra deixavas cair a chave num vaso. Será que suspeitavas que eu te espiava? Fazias isso tão distraída que a mão que se via melhor era a que levava a chave. Será que era uma precaução extra despida de qualquer critério?

Apetecia-me ir lá, pegar a chave, devassar a tua intimidade, deixar pegadas por todo o lado e depois deixar a chave debaixo do tapete. Irritam-me as diligências inúteis.

Hoje vi-te passar, ainda és bonita. Entras no carro, observas o bilhete do estacionamento, conferes no relógio que ultrapassaste o tempo pago, vais repor a diferença no parquímetro e depois vais embora deixando o estacionamento pago para ninguém.

Fico a ver-te ir embora, com a certeza de que te espiava no passado apenas com a curiosidade com que se olha um macaco numa jaula.


Chato

Tomo a minha bica tentando fingir que presto atenção ao que o meu interlocutor diz. Fala comigo de política, invariavelmente com um tom pedagógico, como se algures no seu passado lhe tivessem atribuído a incumbência de me converter a um credo estranho, usando uma língua que nenhum de nós fala. O mínimo que posso dizer dele é que é um chato.

Quando tem oportunidade de projetar a voz para um número de vítimas que se assemelhe a uma assembleia, é que ele dá largas ao seu gosto doentio pelo discurso inflamado – no registo da cólera; na aceção que se usa para designar de "bebés coléricos" os recém-nascidos insaciáveis de mimo e que levam por vezes os pais ao suicídio.

O seu conceito de progresso que, como uma interminável epifania, tomou conta de toda a sua atividade intelectual pela vida fora, é uma confusão mental que nunca o deixou viver tranquilo. E a aridez dos seus ideais alimentou-se dessa truculência verbal, sem que ele nunca tenha sentido a necessidade de maiores explicações do que a redução do raciocínio à negação primária.

Como se a capacidade de dizer não a torto e a direito, acusando ao mesmo tempo os nossos pares de todas as infâmias, exigisse alguma coragem, ainda que mínima, sobretudo quando sabemos de antemão que podemos contar com a compaixão daqueles que afrontamos.

É óbvio que confunde coragem com desfaçatez; a coragem leva um homem a correr riscos e a aceitar a consequência dos seus atos, a desfaçatez é a pulhice que pode levar um homem a matar pai e mãe, e depois a comparecer em frente do juiz reclamando despudoradamente clemência por ser um pobre orfãozinho abandonado.

É sempre possível dizer tudo de todas as coisas; é sempre possível pôr em palavras o que não realizámos em atos; é sempre possível sentirmo-nos felizes com o que podia ter acontecido se tivéssemos tido a coragem de termos sido, de facto, o que apenas fomos em discurso. E é possível contar com a distração dos outros, de modo a convencê-los por via do sentimentalismo.

Se se der o improvável acaso de leres estas palavras, deixa-me usar a tua argumentação preferida:

– Não!

Não, não basta de vez em quando subires ao púlpito da tua presunção lançando pulhas sobre os que trabalham para ti, na vil ilusão de poderes desculpar a tua indigência, como fazes com a poeira filosófica do teu discurso político, esse patchwork de citações mal assimiladas, para encobrir o vazio que te vai cabeça.


Orgasmo

Ela quer ser feliz, ele quer sexo. Dos dois, só ele vai sentir-se realizado, porque o sexo é uma coisa que toda a gente sabe o que é, a felicidade não.

Ele adormece depois do orgasmo porque se sente farto, ela fica acordada porque apenas teve prazer e não sabe se era isto que queria.

A felicidade é sempre algo que desconhecemos, algo que fica sempre um passo além do horizonte alcançável. Felizmente que nunca a encontramos, para que valha a pena ficarmos acordados a perguntar se era isto que queríamos. Nunca passará de uma lúcida dúvida pós orgástica enquanto ao nosso lado alguém mais estúpido adormece satisfeito.


Bestialidade

E no Palácio soaram de novo as nossas vozes. O nosso castelo – disse o Maia. Para ali, cobardemente, nos apontou as armas o Jaime, ou lá quem era ele; mais uma corja de escravos domesticados, fazendo instantaneamente de nós heróis.

É esse o destino destes robertos caceteiros na sua pantomima patética de feira – matraquilhos fardados, teimosos bonecos de corda com alma de trapos, rancorosos derrotados dos verdadeiros combates, desertores de todas as nobres causas da vida, fraca imitação de gente, arreganhando a dentuça de rafeiros, a mostrarem a sanha por nos julgarem indefesos – é esse o seu destino: fazerem-nos sentir a que enorme altura a sublime humanidade nos eleva, muito, muito acima da sua torpe bestialidade.


Explosão

O cabo Bento era um vulto verde-sujo lá à frente. Um joelho no chão e dobrado sobre si, como um crente em oração. Olhou a mina anticarro por um instante antes de se mexer. O coração dele acelerou e as mãos abrandaram. Cada segundo continha um dia de vida, cada pequeno gesto consumia a atividade mental de uma obra ciclópica.

Não esperávamos ouvir aquela explosão, que aconteceu?

Nunca entendemos o que aconteceu quando morre um dos nossos.

Ficámos a olhar o lugar onde o cabo Bento devia estar, até a poeira assentar e ficar visível na picada, o buraco negro da sua ausência, marcando o nível zero da compaixão divina.


Fealdade

Na homenagem a Otelo ouve-se de repente alguém dizer de si próprio e da sua participação na Guerra Colonial: "Eu era da secreta", e depois com a voz embargada pela autocomiseração perguntar ao herói de abril qualquer coisa sobre o financiamento dos terroristas. Não param de me surpreender estes zombies erguidos do túmulo fascista para emporcalhar com o seu insuportável fedor os atos democráticos de gente asseada.

Está bem, deixemo-los usar a liberdade que nos negaram, porque lhes somos superiores, mas não podíamos ao menos oferecer-lhes um espelho para que morressem de nojo com a sua letal fealdade?


Troika

O que foi que nos escapou? Não estava previsto tudo isto? Não ouvimos nunca dizer que isto ia acontecer?

Mas os previsores económicos e os analistas políticos, cuja profissão é fabricarem as nossas opiniões, não continuam no seu poleiro mediático como se a crise não tivesse vindo provar que não nos servem para nada?

Enquanto nos preparam para pagar as dívidas que foram avalizadas pela sua incompetência, lá continuam eles cheios de cisma com o seu ar didático a explicarem-nos agora o que uma minoria de entre nós já assegurava antes, seguros de que lhes daremos novamente atenção e crédito, porque contam com a nossa comprovada estupidez.

Se tivéssemos alguma inteligência, deveríamos mandá-los todos para o desemprego.

E os nossos responsáveis políticos? E os nossos agentes económicos? Que deveríamos fazer com eles?

Garanto-vos que não iremos fazer nada, porque o mal dos nossos políticos e capitalistas não é serem políticos e capitalistas nem mentirosos e ladrões, é serem ainda mais incompetentes e estúpidos do que nós.

Felizmente que há sempre uma troika que vem ensiná-los a mentirem-nos e a roubarem-nos com competência e inteligência, poupando-nos à humilhação de aceitarmos o castigo por cobardia.

Uff! Que alívio! Já podemos fingir que está tudo bem sem nos sentirmos ofendidos no nosso amor-próprio.

14.5.11

Volúpia dos cinco sentidos




Olfato
Não há uma palavra para o odor do teu corpo; não o teu perfume feito de modulações complexas como uma sinfonia de aldeídos florais, mas o odor do teu corpo por debaixo do teu perfume, com este vestindo-o, cobrindo-o, mas não completamente; deixando à transparência, que a nudez desse odor fresco, fresco mas não por uma questão de temperatura, antes por uma questão de viço, consiga perceber-se, embora apenas levemente, como a nudez de um corpo sob uma túnica de seda fina, ou como uma música que se ouvisse por conseguir atravessar o manto esparso, composto pela tessitura dos ruídos da rua, e viesse despertar em mim a sensação de que o dia voltou a amanhecer, e que algo de inesperado, como uma notícia há muito aguardada e já esquecida de todo, acabasse de ser anunciada, de tal modo, que despertasse em mim esta alegria infantil, e tão inocente que me apetece seguir-te por entre os cheiros dissonantes que emanam das casas e as fragrâncias harmoniosas que se soltam das flores, com o propósito de partilhar essa alegria contigo, só porque sinto que o teu odor é irmão do meu; irmão não: parceiro; algo que me falta e que sobra em ti, ou algo que em mim é convexo e é em ti côncavo, assim como duas mãos que se entrelaçam, como se dançassem, não que alguma vez tivéssemos dançado, não; mas o teu odor parece ter notas musicais que fazem balançar algo em mim, e no entanto há um silêncio no teu odor que me tira a lucidez e me atrai, como o abismo atrai o suicida, como a luz atrai o inseto; porém, agora que falo nisso, se o teu odor tem luz, é aquela luz irreal que existe nas praias frias do Norte, uma luz que não faz sombra, e onde as pessoas, ao imergirem da água, parecem só alma, mal interrompendo a bruma do mar, como o teu odor mal interrompe a torrente de cheiros da rua; mas está presente, ou antes: flui, e isso dá-me uma esperança infinita, como o caminho dá esperança ao caminheiro errante, quando, depois de cansado da lonjura, sente que chegou a hora de regressar a casa, porque nele se fará a viagem de regresso, como pelo teu odor se pode fazer a viagem para ti, sobretudo quando o banho ao fim do dia te despe do teu perfume e te deixa só com o teu odor, um odor que o banho não consegue tirar totalmente, apenas suaviza, deixando-te mais exposta aos meus sentidos; mal comparando, como se sobre ti apenas pousasse um desejo, e esse desejo é feito desse teu odor sem nome, esse odor que te aumenta a nudez, como uma praia matinal na maré-baixa, à mercê do vento, parece mais desamparada, sobretudo, se ainda emana da areia, quase impercetível, o hálito fresco do mar.

Visão
Falavas, e a bem dizer eu não te ouvia, distraído pelos movimentos dos teus lábios e pela forma como sobre a fronte uma pregazinha de pele franzia e alisava, alisava e franzia; para além de estar intrigado pela humidade que se formava junto às têmporas, a fazer adivinhar que se formariam ali, muito em breve, algumas gotículas de suor que tornariam o teu rosto ainda mais sensual; porém, eram os teus lábios que me atraiam mais; embora me surpreendesse que os teus olhos parecessem mais claros agora sob o efeito da luz, assim, entre a cor de avelã e o pistáchio, isto é, um castanho que de tão doce ameaçava esverdear um pouco, a sugerir a tua remota origem celta, ou quem sabe a querer denunciar algum invasor napoleónico que tivesse impregnado a paleta dos teus genes quando se aboletou na casa de alguma distante trisavó tua durante a guerra peninsular, porque mais nenhuma feição nórdica se vislumbra nos teus traços gerais, a não ser talvez na tua tês demasiadamente clara, já que em tudo o mais são predominantes as características trigueiras dos povos mediterrânicos; e daí, talvez nem seja tanto assim, porque há qualquer coisa de oriental no amendoado dos teus olhos que agora me encararam mais, ao mesmo tempo que o teu rosto ganhou uma iridescência de malmequer em que tivesse incidido um raio de luz do sol, talvez porque eu tenha respondido a alguma pergunta tua com um disparate qualquer, por não ter prestado atenção ao que dizias, embevecido que estou pelo encanto do teu rosto, e agora ainda mais, que se acendeu essa luz nele, ao sorrires; que persiste, dado o meu embaraço ao constatar que não prestava atenção ao que dizias, porque estava lendo cada gesto teu, todas as cambiantes da luz nos teus olhos e a mínima mudança de volume sob a pele do teu colo, onde as carótidas pulsam a um ritmo cada vez mais acelerado, levando-me a pensar que o teu ritmo cardíaco aumentou por teres adivinhado que o meu também aumentara, só de nos olharmos um ao outro; o desejo mise en abîme, como dois espelhos frente a frente, que se multiplicam reciprocamente, ao infinito.

Audição
A tua voz à beira-sonho afaga-me, e embala-me, à medida que os meus olhos adormecem, enquanto a mente ainda lúcida apenas se solta um pouco do corpo e se liberta; um tudo-nada como o riso liberta a alma, e nem a censura do bom senso segura a imaginação, de tal maneira, que parece que estou em queda livre por dentro da tua voz; como se houvesse abismos e tentações em cada palavra, que tivessem o sortilégio de redimir em vez de condenar, fosse qual fosse o credo, fosse qual fosse o deus; isto é, ouço a tua voz quando estou neste meio transe, e não há perdões impossíveis: mouros e cruzados ajoelhados numa expiação de todos os crimes mutuamente cometidos ao longo dos séculos, numa comunhão ecuménica que convocasse todo o perdão, mas tudo por dentro da tua voz, tudo a viajar no som das tuas palavras, que chega até bem dentro de mim; não apenas como ondas acústicas, mas como uma vibração da alma, em todas as frequências possíveis, desde a ternura até ao gozo, desde o júbilo até à mágoa, mas tudo de uma forma serena, mais serena ainda que uma asa de ave na noite calma, riscando a pele virgem de um lago sob o rosto complacente da lua, e tudo na tua voz; tal como o apelo do mar, misterioso e antiquíssimo, desde os nossos egrégios avós, aumentando o conceito do longe e da aventura e a ânsia louca de chegar, de chegar seja onde for, só pelo prazer de chegar a algum lado, e tudo na tua voz; na tua voz como numa viagem, onde imagino navegantes seguindo as estrelas, pela noite do desconhecido; na tua voz como numa partida onde eu, perdido numa praia deserta, ouvisse o orgasmo do mar e ardesse com o ciúme de ver partir as caravelas, enquanto ficasse para trás, longe da ação e da aventura, triste e só, masturbando-me ao luar; e tudo, tudo, na tua voz.

Tato
Conheço-te melhor desde o dia em que o teu braço roçou no meu, nem sei se roçou, mas imaginei que sim, pelo menos eu senti uma pequena corrente elétrica subindo até algures na coluna cervical; sim, logo abaixo da nuca, onde ainda hoje sinto prazer quando me tocas, embora depois percorra todo o corpo, mas é dali que emana, especialmente, se não estou a contar que uma mão tua me procure imitando uma gaivota pousando numa arriba como prenúncio de mar bravo, quando ainda a água está calma e os pensamentos distraídos não passam de albatrozes sentados no vento, e é aí que subitamente tudo se agita, porque as tempestades começam quando essa primeira gaivota poisa em terra, quando ainda ninguém espera que o dia se embrulhe todo como um turbilhão de corpos em luta, tal e qual como acaba por acontecer connosco algum tempo depois de nos tocarmos, e depois que um pequeno choque elétrico liga não sei que interruptor logo aqui abaixo da nuca, o que é estranho, porque quando sou eu a procurar a superfície da tua pele, tudo parece tão lúcido em mim, tão lúcido que cada milímetro quadrado é um continente inexplorado, tão lúcido que sinto os teus poros na polpa dos dedos ao percorrer os vãos e desvãos do teu corpo, mal te tocando, não te tocando mesmo, apenas cada mão minha imitando uma ave de rapina em voo rasante sobre a pradaria, não sentindo tu nada, senão por um movimento no ar, senão por uma diferença de temperatura; nem tanto: apenas por uma troca subtil de eletrões entre a minha pele e a tua; ou menos ainda: só pela atração universal da matéria, tão impercetível que nem dá para acreditar que arquitete o Universo todo, e a nós faça com que, perdidos no vácuo cósmico deste quarto, sintamos a gravidade da Terra em cada dedo; de tal forma, que todos os frutos já maduros do teu corpo anseiem por ser colhidos, e a minha fome de tocá-los, não ainda de colhe-los ou de comê-los, mas apenas de tocá-los, crie este magnetismo entre fome e fruto, o que me convence que nós somos um todo, apenas aguardado a conjunção dos nossos corpos, enquanto desde o interior de cada um de nós cresce esta vontade incontrolável de contacto, em mim de dentro para fora, e em ti de fora para dentro, como um vórtice que ora gira para um lado ora para o outro, conforme se encontre de um ou de outro lado do equador, e se alimenta a si próprio até todas as forças eólicas se equilibrarem, mas antes há a tempestade, antes há a agitação, e ainda antes de tudo isso há o toque quase inadvertido do teu braço no meu que desperta em mim a certeza de te conhecer desde sempre, e aciona a ignição de todo o desejo.

Paladar
Acordei na tua boca como fruto intumescido e ardente.
Eu indefeso, tu felina devorando a minha carne eminente.
Tanto prazer até dói.
A tua alma girou dentro do teu corpo como se a Terra invertesse a polaridade.
Neste beijo excêntrico, o que em ti é sul, é norte em mim, cumprindo a lei da atração dos contrários.
Flor carnívora, que esmagas em mim a corola rubra do teu corpo, a que me sabes tu?
Ostra ou açafrão?
E a que te saibo eu?
Jasmim ou maçapão?
Tu em equilíbrios de fogo e gelo. Eu tentando suster a espiral de uma galáxia.
De um lado desfaleces desfolhada, do outro espirro desfeito.
Acabamos, tu pétala a pétala sob o meu rosto, eu gota a gota no teu peito.

(Segundo a nova ortografia)

11.4.11

O Deslumbramento do inverno



O cavaco de cerne fumarento preso na pinça da candeia de lata nunca deixava a Ti Maria Adôa às escuras.
As sombras assombrando as paredes.
A imagem de uma família humilde a comer as batatas da ceia sentada na minha memória para sempre. Um dia reconheci-a num quadro de Van Gogh.
Em minha casa a luz elétrica faltava sempre quando era mais precisa. Virá ainda hoje? Não virá? A incerteza à luz de uma vela é sempre mais vacilante, e as sombras do cavaco de cerne a mudarem-se para as paredes da minha cozinha.
Se não chovesse eu dava uma corrida até ao Rebelho para ver o Ti Zé Quiaios a manejar os fusíveis da cabine elétrica como um organista a puxar os registos de um órgão de igreja. O Ti Zé Quiaios era quase cego, com os olhos dilatados pelas lentes de cu de garrafa, mas as suas mãos tinham uma precisão de milímetros. Ou era ele que conhecia a cabine elétrica, ou então era a cabine que o conhecia a ele.
– Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!
A ferramenta e a mão, o nervo e a eletricidade, a cegueira e a luz. Tudo tão irmanado. Tão afeiçoados um ao outro homem e máquina. E Aguim iluminava-se por fases e apagava-se por fases, e os fusíveis a estourarem, e o Ti Zé Quiaios a reforçar os bornes. Uma luta; não uma luta: um jogo. Um jogo não: um namoro, uma sedução mútua entre a tecnologia e a humanidade; porque nesse tempo a tecnologia casava com a humanidade.
Quando Aguim finalmente ganhava a cintilação dos presépios, o Ti Zé Quiaios regressava a casa dele vitorioso, e eu à minha deslumbrado.
Os invernos eram eternos. E dava a ideia que começavam sempre antes do tempo. Eternos, porque quando ainda não conhecemos suficientemente o presente, ele parece não ter fim; a eternidade é apenas a ignorância dos limites. Habituámo-nos ao verão e de repente o tempo a tomar balanço no outono para a chuva nos apanhar desprevenidos.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
O meu avô e o clima poucas vezes estavam de acordo, mas o meu avô já sabia de mais para se deixar surpreender; só os inocentes têm esse privilégio.
O inverno, na verdade, começava muitas vezes a meio do outono, como a morte começa a meio da vida. Quando começamos a morrer? Sei lá! Mas há sempre uma primeira chuvada que nos estraga a vindima, uma chuvada que nos apanha sempre desprevenidos. Acho que era por isso que o meu avô não gostava do inverno.
Vista do alpendre do pátio a vida na rua era um filme.
O Ti F'lipe batendo com um maço na madeira e transformando uma molhada de aduelas numa pipa de vinho. O novo aprendiz de pé sobre um dos tampos a segurar as aduelas pelo interior como uma margarida de pétalas abertas, enquanto por fora o Ti F'lipe as ia fechando. Quando a margarida se fechava, nascia uma tulipa de madeira que surpreendia o aprendiz, preso lá dentro aos berros.
O Ti Zé Sécio com uma enorme tenaz encaixava um aro em brasa numa roda de um carro de bois. Batia-lhe com o malho à vez com dois ajudantes. O fogo a dilatar o ferro, os malhos a domá-lo e a água a contraí-lo em torno da roda; tudo envolto em fumo, vapor e algazarra.
O Ti Antóino Mateus dedilhando os vimes como um tocador de harpa, e quem havia de dizer que aquela harpa de vimes ia acabar num poceiro para a vindima!
Tudo tão vivo, tudo tão animado. Uma coreografia que olhada assim de perto parecia não ter outro propósito que deslumbrar o meu olhar. Mas olhando de perto nunca se percebe bem o propósito da vida; só muitos anos mais tarde percebi tudo numa ópera de Verdi.
No enquadramento do portão, Aguim desfilava num traveling rápido, com uma banda sonora ao vivo. O Ti Zé Sécio ferreiro nos metais, do Ti F'lipe tanoeiro nas madeiras e o Ti Antóino Mateus cesteiro nas cordas. E a voz de falsete da moça serrana a fazer as camas de lavado sob o olhar oblíquo do meu avô. – Andas-me muito delambida… – Enquanto passava a carda com vagares de barbeiro no lombo do cavalo.
Aos primeiros pingos, a chuva fazia acelerar o filme do portão do pátio, com as pessoas a fugirem e a falarem mais alto, mas logo a abrandarem de novo conformadas. Um saco de estopa com um dos cantos encaixado para dentro do outro, e pronto, aí está um capote reforçado. A chuva molhava à mesma mas pelo menos dava-se-lhe luta.
E nisto o assombro dos trovões. A minha avó a dizer uma ladainha elevando a voz à medida que a trovoada aumentava, não fosse Santa Bárbara não ouvir bem por causa do barulho, e a confirmar se a cruz de alecrim benzida no Dia de Ramos estava atrás da porta para afastar todos os agouros.
E resultava, porque a trovoada afastava-se e ia fazer barulho para outro lado. E depois ficava a chuva apenas, e o som da chuva parecia silêncio.
– Ela é cá precisa.
– Podia esperar que apanhássemos os cachos da Casqueira.
– Este ano vai ter menos grau.
– Pró ano começamos mais cedo.
As conversas à lareira da cozinha do forno só faziam sentido para os adultos. Falavam para si próprios como se estivessem sós, mas cientes de que se falassem todos a mesmo tempo, as várias solidões se uniriam para criar uma confraternidade. Mas eu acho que era o encantamento do lume na lareira que tornava aquelas sombras taciturnas nos rostos luminosos da minha família. O lume a fazer gemer as cavacas molhadas. Às vezes um estalido e os tições a aconchegarem-se uns aos outros. E a trovoada tão longe agora que a ladainha da minha avó era só por mera precaução um simples tremelicar dos lábios.
Dias e dias, noites e noites, sem parar. A chuva era eterna também. Passada a surpresa, as coisas permaneciam para ficar, não davam um único indício de que teriam um fim. Havia lagos no Largo do Sobreirinho e rios que desaguavam na minha valeta. A água era uma constante à face da terra.
Mas uma noite, todo aquele dilúvio acalmava como um pranto de viúva esgotada de mágoa e resignada ao vazio do corpo.
Primeiro começava por nos surpreender o silêncio. O silêncio é o que ouvimos quando termina um ruído. Agora o silêncio era o xilofone das gotas grossas dos beirais a baterem nas latas à porta da oficina do Ti Zé Sécio. O vento norte foi-se embora desvairado pelo Caminho dos Poços abaixo e a noite sossegava finalmente. E logo mais, a madrugada acordava sem outro sobressalto que a brisa a trazer consigo os primeiros frios.
Um vidro a cobrir a água do tanque, a bomba de alavanca que não deitava uma gota, o cavalo a resfolegar na cavalariça, os gatos em novelos pelos cantos e a minha mãe a enchouriçar-me de roupa. Eu tinha que caminhar de braços e pernas abertas por causa das várias camadas de pano que me transformavam numa cebola ambulante.
– Cuidado com as correntes de ar.
Em minha casa nunca havia duas portas abertas ao mesmo tempo. Para mudar de divisão tínhamos os cuidados de um mergulhador na câmara de descompressão de um submarino.
Em breve o frio e a geada passavam a ser eternos também.
E lá faltava a luz de novo.
Logo aparecia uma vela acesa mas quase tudo ficava na escuridão, porém, as coisas importantes sobressaíam a esta luz. Acho que é daí que vem a crença que é mais romântica. Se foi esta incapacidade de ver para além de certos limites que nos permitiu criar a conceção de infinito, foi ela também que nos permitiu criar a da intimidade. Se não, de onde me vem esta ideia de que jantávamos abraçados uns aos outros?
E a luz voltou. Apagávamos a vela e as baratas regressavam ao pátio. E quando nos preparávamos para continuar a ceia, voltava a falhar a luz e acendíamos a vela de novo.
E eu imaginava o Ti Zé Quiaios quase cego enrolando e desenrolando fios nos bornes dos fusíveis, pontificando do seu púlpito da mais avançada tecnologia a eterna luta entre a luz e as trevas, e a dizer sentencioso: – Ai no auguentas? Espera aí que já cospes!

(Escrito segundo o acordo ortográfico)

4.3.11

A caminho do Norte

A tarde numa tristeza de pássaros pousados num fio elétrico. Pousados como uma fiada de farrapos abandonados, com o vento norte a levantar-lhes a ponta das penas. Um prenúncio de tempestade nos pingos de chuva esparsos. Grossos e tão esparsos que parece possível passar por entre eles sem nos molharmos. Mas não há pássaros nem chuva, de onde fui eu buscar isto agora?
Porém, eu sinto a tristeza na tarde, sinto-a como se costuma sentir no quarto de um doente terminal – uma tristeza que se adivinha por ali pairando, um relento de moribundo que as visitas percebem como se fizesse parte da composição do ar.
As pessoas passam umas pelas outras sem se verem. Estranhas. Ausentes. Apetece dar um grito ou partir qualquer coisa para as acordar da apatia.
Um sem-abrigo cabisbaixo, sentado no passeio, com a mão semiaberta pousada no chão. Uma mão cansada da indiferença dos transeuntes, onde se vê uma moeda de 50 cêntimos a pedir companhia, embora a mão semiaberta pareça recear que lha roubem.
Um dia em África senti essa tristeza do ar, essa dor impessoal, esse abandono das coisas a divorciarem-se das pessoas, como se as pessoas lhes metessem medo. Foi daí que me veio isso à ideia agora; porque havia um fio elétrico com pássaros pousados como farrapos, e um prenúncio de tempestade nos pingos grossos da chuva. Grossos e esparsos.
E ao meu lado uma prostituta oferecia-me suruma. Ao longe um pequeno grupo de pessoas rodeavam uma fogueira embora fizesse um calor de sufocar.
A prostituta ora me oferecia suruma, ora me perguntava se eu estava com medo de ir para o Norte. Não – respondo à prostituta 38 anos depois – não tenho medo. Talvez amanhã tenha medo no meio dos tiros, mas agora não. Agora sinto que estou no meio de um romance, e que o autor acabou um capítulo inesperadamente; deixou a história em suspenso e prepara-se para falar de outra coisa só para aumentar a expectativa.
Mas o que é verdadeiramente estranho, é que, 38 anos depois, o que me resta disso tudo seja apenas uma raiva incontida, não bem uma raiva, mais uma vontade de lutar, uma vontade de partir qualquer coisa para fazer as pessoas acordarem da apatia. Roubar os 50 cêntimos ao sem-abrigo para o obrigar a acordar também. Procurar um fio elétrico onde haja pássaros pousados e espantá-los à pedrada.
Na Fernão de Magalhães o trânsito flui como uma coisa automática. Os peões atravessam as passadeiras quase a correr, parecendo temer ser assassinados pelos automobilistas. Ao meu lado na mesa da esplanada uma mulher tem o braço esquerdo esticado e olha as costas da mão enquanto faz rodar no anelar uma aliança de ouro. Uma chávena de café esquecida ao lado. No braço direito várias marcas roxas denunciam violência doméstica. Roda a aliança. A bica arrefece. O trânsito automático. Eu a contas com a tristeza de uma tarde na minha memória. O eco de uma prostituta perguntando se tenho medo. Sim – respondo à prostituta de novo – um medo a haver. Quando chegar ao Norte; agora não. Agora sinto que algo ainda distante me atrai, algo perigoso e fatal; mas imperioso, como só imperioso assim é um dever a cumprir.
Quando passei pelas pessoas em torno da fogueira pareciam fantasmas, olhei ainda para trás e vi a silhueta da prostituta na luz amarelada da rua; a prostituta fumando suruma. Eu a caminho do Norte. Um prenúncio de tempestade. Uma tristeza como um componente do ar, para além do oxigénio e dos restantes 16 gazes principais. Com o tempo, estas coisas parecem mentira.
Pensei: será que um dia vou sentar-me ao sol no meio de gente que goste de mim e me vou lembrar desta tarde como um pesadelo do passado? Mas não. Nunca me lembro dessa tarde em África quando está sol e eu estou entre amigos. Agora sim. Agora que as pessoas passam com pressa, como se fugissem de uma tempestade que ameaça cair sobre a cidade, ou dos automobilistas que as parecem querer assassinar. E dá-me a ideia que algo imperioso me chama, e que estou de novo a ir para o Norte, e que o romance só parou um pouco para mudar de capítulo.
Mas aqui, na Fernão de Magalhães, não há romance nenhum, nem há um miserável fio elétrico onde poisem pássaros a criarem na nossa imaginação a impressão de que é o ar da tarde que tem tristeza na sua composição química, nem pessoas à volta de uma fogueira apesar do calor sufocante, nem uma prostituta de subúrbio a tentar adivinhar o medo da guerra escondido no coração dos soldados.
Na esplanada da Fernão de Magalhães a mulher puxa a aliança um pouco e esfrega o local onde ela deixou uma marca no dedo, como os escravos faziam com as marcas das grilhetas. Puxa a aliança mas a aliança não sai. Contenta-se em esfregar a marca no dedo. A bica já fria.
Aqui há apenas gente que não se conhece. Pedintes com medo que lhes roubem a moeda que usam como isco para atrair uma caridade que não existe. Parecem todos órfãos de uma esperança fora de validade que ainda não acordaram para a realidade de uma vida sem opções.
Uma apatia que gera em mim esta vontade visceral de lutar, de pegar novamente numa arma, puxar a culatra atrás, depois soltá-la e senti-la introduzir a primeira bala na câmara, e ir defender o Império. Ter ao menos a ilusão de um dever a cumprir. Olhar em volta e ter a sensação que quem escreveu este romance estúpido acabou abruptamente o capítulo da esperança só para criar uma falsa expectativa.
Depois, abrir um capítulo novo, ganhar coragem, e partir finalmente para o Norte.




(Segundo o acordo ortográfico)

15.2.11

A Viagem

Texto de José Caseiro

O dia menos desejado chegou, era por volta das cinco, seis horas da tarde que as Berlliet e as Peugeot começaram a chegar e a ficarem alinhadas umas ao lado das outras, lá na parada do Quartel da Barra, já com a frente virada para portão de saída.
Todos sabíamos que ainda era cedo, mas elas já ali estavam esperando por nós, se alguns já tinham as malas e os sacos prontos outros acabaram por dar mais um jeito nas suas coisas, porque dentro de poucas horas iria dar-se o início da viagem para Moçambique.
À hora de jantar, a vontade de comer era pouca mas tínhamos que comer, porque íamos ter uma viagem de comboio durante toda a noite, era longa a viagem, e era necessário levar o estômago cheio.
Após o jantar e um pouco de descontracção, chegou a hora da formatura já com as casernas abandonadas porque as malas já se encontravam nos camiões. Lá fomos para a formatura para nos desejarem boa sorte. Após o destroçar, começámos a dirigir-nos para os camiões, mas com pouca vontade de para eles subir, porque todos tínhamos a consciência que a partir daquele momento se iria dar o início da viagem para o inferno.
A viagem do Quartel da Barra em Viana do Castelo até á estação dos caminhos-de-ferro foi curta, porque ficam perto um da outra. Pouco a pouco fomos descendo das Berlliet e das Peugeot, e com as malas e os sacos pendurados nos ombros, lá fomos caminhando devagar para dentro da estação, para encararmos aquele comboio ali parado á horas, esperando por nós. Quase se podia imaginar nele um ar sínico, como quem gozasse connosco; mas para ele era-lhe indiferente porque a sua função era levar-nos para Lisboa, e desde que até lá nada de mal nos acontecesse, assim ele se livraria de responsabilidades.
Já dentro do comboio e antes de este começar a andar, comecei a notar algo diferente em relação a outras viagens de comboio que tinha feito enquanto militar. Recordo-me que quando ia para a Estação de Campanhã no Porto, para apanhar o comboio da meia-noite, ou o das onze horas, que eram comboios militares, notava um ambiente descontraído, alguns bebiam bastante cerveja e tocavam viola – e a muito mais coisas se assistia naquela Estação de Campanhã – mas nesta viagem nada disso se passava; embora se compreenda, que o motivo da viagem era outro, os militares muito pensativos. Só Deus sabe se alguns até iriam a rezar naquele início de viagem, que sabíamos seria longa mas não sabíamos se teria regresso.
Mas não só isso se notava; notava-se algo mais, mas mais pesado que não sei descrever… sei lá! Talvez fosse a morte a fazer a sua escolha já ali no comboio dos que iriam morrer e não fazer a viagem de regresso.
Foi uma viagem feita de noite, uma noite muita escura. Foram horas de viagem que dariam para pensar em muitas coisas, mas naquelas horas não se deve ter pensado em muitas coisas, porque o que nos ocupava a mente era aquela viagem mesmo, e o que seria de nós depois que ela terminasse quando chegássemos a Moçambique. Foi uma viagem sempre pensando no mesmo. As horas foram passando, o comboio foi andando e lá chegamos a Lisboa.
Fomos para o Cais do Sodré. Aí, foi mais um reviver a despedida dos nossos familiares que tínhamos deixado em casa e que se sabíamos que não estariam ali.
Ao verem tantos militares com os seus familiares e a chorarem, os que não tinham ali as suas famílias fugiam para um lugar onde pudessem estar sós para dar livre curso a mais umas quantas lágrimas e fumarem mais um cigarro, desejando que a família também lá estivesse para mais um abraço, um beijo, um adeus. Em casa, quando da despedia da família, quantos disseram que não era necessário irem a Lisboa, imaginando que seria sofrer duas vezes, mas aqueles que estavam ali com a família mais uma vez, mais uma vez sofreram e mais uma vez fizeram sofrer.
Depois dá-se aquela imagem a que já estávamos habituados a ver na televisão, que era a subida pelas escadas para o barco com as malas e os sacos às costas, que no nosso caso era para o navio Niassa, com a convicção que a viagem para o inferno não começava ali, pois que já tinha começado em Viana do Castelo, e que, quando iria acabar é que ali não se podia saber.
Já dentro do navio e com as malas e os sacos guardados, lá nos juntamos todos para mais uma vez dizermos adeus, alguns aos seus familiares, outros como não tinham lá a sua família, diziam adeus ao cais, à terra firme, àquilo que fora a sua vida até ali, a que davam um nome só: Portugal.
Depois, cada um como podia tentava mostrar aos outros que estava ali forte para enfrentar fosse o que fosse, mas só Deus sabe como cada um passou aquela primeira noite a bordo do Niassa.
A primeira de vinte e oito noites nos porões do Niassa nas condições mais degradantes que se podiam dar a um ser humano, quando, mobilizado para a guerra em África, o que precisava no mínimo era de um pouco de bem-estar.
Foram vinte e oito noites a sobreviver naquelas condições, e que noite após noite se iam agravando; uma viagem que para muitos teve regresso e para outros não, viagem igual a tantas outras que foram feitas durante o período da guerra colonial, que hoje recordo, talvez por saber as condições que hoje os nossos militares têm, quando naquela altura não éramos mais que carne para canhão.
Quando passo por um camião com animais para o matadouro vem-me sempre á memória aquela viagem onde homens, filhos do povo feitos soldados, feitos militares do exército português a que nos orgulhámos de ter pertencido, foram tratados assim mesmo, como animais a caminho do matadouro.

José Caseiro

6.2.11

Flash-back


De repente, do nada: saudades da guerra.
Porco e malcheiroso, de mãos sebentas, de G3 nas unhas, fuçando a mata virgem, cheio de fome e de sede, com raiva não sei de quê.
Mais vinte e tal tipos como eu, em fila por entre o capim, mal falando uns com os outros, sabendo que cada passo dado nos aproximava da morte.
Porque tenho saudades disto às vezes? Porque passo dias e dias a escrever, tentando pôr nas palavras que me visitam a recusa de qualquer visão romântica da guerra e de repente a memória me deita tudo a perder?
Os helicópteros a largarem soldados dando a impressão que se sacudiam e que eles caíam de ambos os lados para o chão. E depois, vultos a correrem para a orla da clareira, encurvados, numa coreografia rude de hienas em matilha. Os helicópteros a ganharem altura, um após outro, como insetos pré-históricos, e alguns minutos de seguida, o silêncio feito das batidas dos nossos corações.
Só a massa imensa da floresta à nossa frente. Quem nunca sentiu assim a mata, feita de muitos corpos, uns vivos e outros mortos e outros já apodrecidos, convivendo num corpo só, não faz a menor ideia do que estou a falar. Um corpo enorme que nos reduzia a simples vermes.
Agora assusta-me esta ideia de ter sido verme a esburacar um ser vivo procurando outros vermes como eu para os matar, mas mentiria se dissesse que, talvez por causa de um qualquer elemento químico fazendo parte de mim, não sentia um instinto de felino em busca da presa, não por fome, não por ódio, mas por um desejo desconhecido qualquer, que me impelia para a frente, onde eu próprio poderia encontrar o meu fim.
Não sei de maior desafio que o da superação do medo: encarar a exiguidade da margem que existe entre a probabilidade de sobrevivência e a do aniquilamento, e ter a consciência de que o desespero diminui essa margem; sentir um resquício de amor-próprio a impedir a perda de uma, ainda que aparente, dignidade; como um ator que representasse a coragem, mas correndo mesmo perigo, recusando, por presunção, um duplo. Por assim dizer, um ator representando a própria vida. Ou ainda por outras palavras: a coragem é sempre a fingir, porque sem medo a coragem é apenas um duplo que não sabe que a cena contém perigo.
É tentador aceitar esta saudade que de repente me assaltou. Deixo que a minha memória me conduza até esse tempo em que me sentia do lado da razão, combatendo os inimigos do Império. Como nas aventuras da minha infância: eu, colono e pistoleiro combatendo os índios que teimavam em não gostar de nós.
Perguntei muitas vezes, durante as minhas leituras infantis, porque não gostavam os índios dos colonos. Respondeu-me um dia o Sousa, sentado a meu lado num Hunimog. "Estão cá há mais tempo do que nós, furriel." Não lhe dei crédito, porque eu não tinha o instinto territorial tão desenvolvido como ele.
Continuei por algum tempo mais a experimentar esse sentimento de incompreensão para com a obstinação de alguns indígenas em não gostarem de nós, o que alimentava a minha coragem de ator sem duplo ao serviço de um dever que se tornava desconfortavelmente cada vez mais abstrato. Que ganhava o Sousa, quando voltasse para a Bairrada, com a permanência de Cabo Delgado no Império Colonial Português? "Ganho o mesmo que você, furriel." Que instinto me faltou ali, quando ele me respondeu assim, para não lhe dar crédito de novo?
Será que todos e cada um dos soldados que combatiam em África deveriam saber exatamente porque arriscavam a vida? Ou ter em conta que migalha do Império lhes caberia como recompensa?
Eu, aqui sentado numa cadeira da esplanada do Café Santa Cruz, olhando as pessoas distraídas a viver, sem procurarem razões para os seus atos, acho agora essa questão ingénua. É-me claro agora que a um soldado se pede que aceite dar a vida por uma razão que o transcende quase sempre. O que ainda verdadeiramente me intriga é a facilidade com que ele aceita, pois que os refratários e desertores são normalmente em número desprezível, mesmo tendo em conta que por vezes é mais perigoso desertar do que continuar combatendo.
É certo que o soldado é sempre pouco mais do que uma criança, e que a ignorância do que o espera contribui para que ele se deixe mobilizar, mas mais ainda do que aceitar a mobilização, surpreende-me a facilidade como que ele se torna um matador.
Ali em baixo passam inúmeros jovens de vinte e poucos anos, estudantes e empregados de serviços a quem criaria um pânico incontrolável, a ideia de pegar numa arma e matar alguém; mas, se o estado precisar, eles fá-lo-ão; como a esmagadora maioria dos jovens de vinte e poucos anos, de todas as épocas, de todos os países do mundo, quando o estado lhes diz para o fazerem. E a nenhum deles o estado se dá ao trabalho de explicar muito bem porque é que o devem fazer. Se o estado não precisa de fazer esse trabalho na hora da mobilização é porque esse trabalho já deve estar feito. E deve ser algo tão simples que nem damos por isso.
Talvez seja preciso apenas ativar um qualquer elemento químico fazendo parte de nós, algum instinto, alguma característica genética adormecida dentro de nós desde tempos imemoriais, que serviu para a preservação do grupo, quando a sobrevivência se fazia à custa do aniquilamento do outro.
Mas quase de certeza que a ilusão de imunidade transmitida através da vulgarização gratuita da violência deve ter um papel importante. Basta ver o subproduto da indústria cinematográfica americana que importamos a baixo preço, onde a visão da nudez e do sexo explícito são mais censurados do que a visão do esventramento e da sanguinolência.
Mas é um processo mais generalizado e aparentemente mais inocente, e por isso mais eficaz, que tem a maior responsabilidade no embuste da imunidade e da impunidade do ato de guerra.
Basta criar um imaginário de aventuras em que os outros são sempre os maus que teimam em não gostar de nós, e que nós temos o dever de aniquilar em vez de os deixarmos em paz.
Mas para entender este processo é preciso ter em conta o efeito manipulador do enredo. Na ficção, a história está sempre sob controlo; o seu autor sabe de antemão como ela vai terminar, apenas se diverte a criar falsos equívocos e falsos labirintos de que possui desde muito cedo a chave. E não é só na fast-food dos filmes de terceira categoria da indústria cinematográfica americana, é a própria História que não passa nunca de um conjunto de enredos e com autores conhecidos.
É certo que o enredo é-nos sempre contado para nos levar a aceitar a conclusão previamente conhecida, mas é já o enredo, ele mesmo, que tem esse papel manipulador de educar para o "ato heroico", ato este que na guerra, muitas vezes só se distingue do crime porque está dentro da Lei. A lei de um dado estado, de uma dada época. E é a lei, sempre temporal, sempre efémera, que confere impunidade ao matador.
Ou então uma dada ideologia ou religião. Deus reduzido ao papel de autor a quem confiamos a chave do enredo da vida, como se Ele já não tivesse dado provas, vezes de mais, de não gostar de finais felizes.
E, evidentemente, há a instituição militar, que, quando não se alimenta gratuitamente do alistamento obrigatório, transformando o serviço militar em trabalho escravo, se locupleta no desemprego, oferecendo aos jovens desempregados uma "carreira de futuro", que não passa de um contrato a termo certo, de trabalho precário e com um futuro de curta duração.
Mas a instituição militar, afinal, só aguarda que lhe entreguem a carne para canhão de mão beijada, e apenas vem dar um último toque de mestre, que tem como finalidade dignificar o ato de matar, transformando-o na arte da nobre profissão das armas.
A minha saudade da guerra acabou desbotada com o caminho que levaram estas minhas mal amanhadas lucubrações. Chegam-me agora apenas alguns flash-backs desconexos, de soldados saltando de helicópteros, soldados correndo para dentro da mata, seguindo depois silenciosamente por ela dentro. As pessoas a passarem lá em baixo, na Praça 8 de Maio, distraídas a viver. Alguns são jovens de vinte e tal anos, soldados a haver. O soldado da frente levanta o braço e depois baixa-o lentamente. Todos se baixam, e seguidamente mudam de posição até ficarem ao lado uns dos outros. Os jovens estudantes e a subirem a rua Visconde da Luz com uma coisa dentro deles. Uma coisa herdada dos seus ancestrais; algo químico que basta acionar para os transformar em matadores. Vozes das pessoas no aldeamento. Distraídas a viver também. Jovens de vinte e tal anos de arma na mão. Valorosos soldados facas-longas prontos a atacar uma aldeia de índios teimosos, que não gostam de rostos-pálidos. É só uma história aos quadradinhos. Tudo a fazer de conta. Somos todos bonecos. Basta fechar a revista. Basta olhar para a Praça 8 de Maio e ver que as pessoas continuam distraídas a viver.
E olho. E de facto está tudo normal. Tudo em paz. Estico lentamente as pernas como quem acorda.
E o pé da minha prótese faz um pequeno ruído seco ao roçar no chão.


(Conforme o novo acordo ortográfico)

15.1.11

Romance imperfeito



A colina relvada descia até ao lago artificial a convidar os veraneantes mais para contemplações do que para intimidades.
A meio da colina um homem parado, olhando uma mulher que sai de um automóvel familiar topo de gama, estacionado à entrada do parque, e que depois se aproxima. Ele firme aguardando por ela, ela débil, aproximando-se dele a custo. Um vulto por detrás dos vidros fumados do carro.
A mulher para à distância de um metro. Não se tocam. Não sentem o convite da colina para contemplar o lago, não vêm as sombras a realçarem as irregularidades do chão, não vêm os veraneantes que tendem a descer para junto da água.
Uma mulher que vem encontrar-se com um homem e fica parada a olhá-lo, numa idade em que as subtilezas dos afetos não dispensam o calor dos corpos.
Um homem e uma mulher amando-se através do olhar. Acabando de se encontrar mas olhando-se como se fosse uma despedida, e quisessem guardar uma última imagem dos seus rostos antes de partirem.
Não ouvem os risos despreocupados das crianças, os chamamentos disciplinadores dos pais. Não ouvem a música que vem do restaurante a meio da colina.
Só os amantes furtivos ficam surdos no meio do ruído. Só os amantes clandestinos se julgam a sós no meio da multidão.
As pessoas passam por eles sem os verem. Um cachorro fareja as calças do homem. Uma borboleta quase pousa no lenço da mulher. Há ali, no meio do bulício, um mundo recatado e íntimo com apenas dois habitantes que se olham mutuamente, como se o tempo fosse um bem tão raro que um só momento sem se contemplarem seria uma perda incalculável.
Que fatalidade irremediável se avizinha? Que contagem decrescente lhes faz sentir este momento como derradeiro?
Um homem de cabelo ralo e uma mulher de lenço a cobrir a cabeça como um turbante, mais a encobrir do que a proteger, olham-se como quem perdeu a maior parte das suas vidas e quer aproveitar os derradeiros minutos.
Tiro a tampa da objetiva e preparo-me para fotografá-los, mas sinto-me como um caçador que exulta perante a visão da peça de caça, mas que perde a coragem quando se prepara para a abater; e recolho a máquina com a consciência pesada de quem esconde a arma de um crime.
Erguem as mãos lentamente e tocam-se, palmas com palmas, como fazem os prisioneiros com os seus entes queridos através de um vidro. Que relação proibida, que amor impossível separa o homem e a mulher a meio da colina, que parecem ter-se encontrado no fim da história, quando já não há tempo para a paixão e lhes resta apenas um olhar de despedida? Com quem desperdiçaram a vida que agora parecem querer segurar em desespero entre as palmas das suas mãos?
É tarde… será tarde? Será que não há tempo para se encontrarem a sós? Será que o eterno desencontro da vida não lhes deu a provar um momento de felicidade e só lhes permite a despedida sem o conforto da partilha, sem a cumplicidade na aventura dos afetos e dos prazeres?
Afastam as mãos. Ela recua alguns passos, sempre olhando para ele, depois vira-se como se quisesse fugir, como se tivesse acabado o seu tempo, e se fosse entregar ao carrasco. A mão tapando a boca a abafar um grito. As pernas inseguras a levarem-na dali. Sente-se daqui a dor que leva no peito.
Ele parado a vê-la desaparecer por entre os veraneantes. Ainda surdo ao bulício, ainda cego a toda a vivacidade em redor. Que crueldade pode separar duas pessoas assim? Que misericórdia permitiu que ao menos se tenham despedido? Que vulto escolheu a velatura dos vidros fumados do carro para ficar aguardando, excluindo-se da história num ato de extrema dignidade?
O homem desce agora a colina até à beira do lago, olhando o chão, como um general que tivesse assistido impotente à chacina de todos seus soldados. Por momentos imaginei que num impulso tresloucado puxasse de uma arma e pusesse fim à vida ali mesmo.
Desapareceu também no meio das pessoas, e a colina ficou imediatamente transformada num deserto onde os veraneantes não conseguiam preencher a solidão. Uma enorme ausência tomou conta da tarde, e a vida naquela colina transformou-se numa história com figurantes anónimos mas sem protagonistas.
As vozes e a música amorfas, desumanas; as pessoas, todas elas estranhas; um mundo hostil sem a familiaridade de um olhar amigo. A colina, como uma vertigem, criando tentações de suicídio no lago artificial.
Mas lentamente os ruídos regressam e preenchem o silêncio. A pouco e pouco as vozes das crianças animam a tarde. A música vinda do restaurante. As sombras a espreguiçarem-se pela colina abaixo convidando de novo os veraneantes a acercarem-se da frescura do lago. A despreocupação da vida ao ar livre a substituir os dramas íntimos. A fazê-los esquecer. Que homem e que mulher estiveram aqui há pouco, onde agora não resta um vestígio? Dois entre mil que se encontraram anonimamente no meio da multidão, e que viveram alguns minutos ínfimos e efémeros comparados com o resto das suas vidas. Será que não foi apenas a melancolia de uma tarde de fim de verão, feita das sombras sobre a relva e de um lago ao fundo, que me levou a fantasiar? Que insignificância foi essa que alterou a minha tarde de domingo? Que memória perdida, vinda não sei de que vivências do passado ou temores do futuro, transformou um encontro casual de duas pessoas num drama?
Será que aconteceu?