15.11.12

Insónia


Tu aqui ao meu lado, Zulmira, e quanto silêncio nos separa. Como podes dormir com este silêncio?
O silêncio é uma coisa estranha. Não é surdez, a surdez é oca e o silêncio é maciço. No silêncio, é como se o ar se tivesse tornado sólido como betão. E tudo fica preso no silêncio. Tudo fica parado. Os móveis parados. As paredes paradas. Eu poderia mexer uma perna, só para quebrar o silêncio, mas a minha vontade parou também, não sou capaz de me mexer.
A tua foto parada sobre a cómoda olha para mim. Um sorriso parado. Tem anos aquele sorriso. Foi a Moçambique e voltou comigo para casa. Atravessou uma guerra inteira e não mudou nada. Um sorriso sem culpa, a desafiar a culpa dos outros.
Tudo parece parado, e no entanto tudo se move, se transforma; mas tão devagar que eu não consigo ver.
As gavinhas da parreira a enrolarem-se nos ferros da varanda como dedos lentos, tão lentos que me canso de olhar para elas e não as vejo crescer, e no entanto sei que crescem mesmo debaixo dos meus olhos. A erva por entre as pedras do terraço. Lenta, tão lenta. Ou então sou eu que vivo depressa demais. Tão depressa, que não me lembro de termos sido felizes.
Não me lembro de ter vivido.
Sei que me amaste Zulmira, mas não serias capaz de cometer adultério para teres um momento de prazer comigo; não serias capaz de te humilhar por mim, ou de humilhares o amor da tua vida por um momento de devaneio e pecado, breve e sem futuro, comigo; de navegares até ao meio de uma tempestade na noite mais medonha só pelo prazer de uma loucura comigo. Eu sou para ti apenas o farol solitário na praia segura; a estaca onde amarras o barco no fim da viagem. E agora dormes em paz como se isso fosse tão natural como as rosas terem espinhos; apenas um contratempo da Natureza. Sem remorso nem mágoa.
Quando às vezes sorrias para mim e dizias "Ó Zé!", eu olhava nos teus olhos e via a mágoa lá no fundo. Mas era a mágoa de teres perdido alguma coisa preciosa quando casaste comigo. Alguma coisa tão secreta e sem perdão, que só no fundo do teu olhar ficou essa mágoa para sempre. Uns olhos alegres com uma tristeza escondida lá no fundo.
Mas o teu corpo era só alegria. O teu corpo era uma festa Zulmira, que até fazia esquecer a mágoa de ver essa mágoa nos teus olhos.
Mas o teu corpo foi ficando triste também, com o tempo. Envelheceste Zulmira, e eu não dei conta. Ainda ontem eras tão jovem. As gavinhas da parreira a enrolarem-se nos ferros da varanda. O tempo a abrir frestas na madeira dos móveis. Areias a caírem das paredes. A tua foto a amarelecer lentamente. E eu a viver depressa demais.
Como pesa este silêncio. Sinto o peso do silêncio no peito como se eu estivesse morto, e alguém se tivesse sentado em cima do meu caixão.
Há um pingo na torneira da cozinha a aumentar o silêncio. Sabes como é? Vai-se juntando a água num cantinho do cano, depois o pingo estica, contrai-se um pouco, estica de novo e acaba por deixar-se cair. E o silêncio aumenta a cada pingo que cai.
És tão inocente Zulmira. Envelheceste sem culpa. Ainda se ao menos te sentisses culpada. Se ao menos te queimasse o remorso de me fazeres sofrer por me teres traído.
Cada pequeno prazer teu sem mim foi um pingo de ferro fundido a cair na minha alma, e agora que já não me trais, envelheceste. É a maior das traições, Zulmira, seres-me fiel por teres envelhecido. Como podes dormir com este silêncio? Como podes dormir sem culpa?
As melgas também aumentam o silêncio. Fazem voo rasante como os T6 lá no mato. Todos ficavam aliviados quando eles chegavam, mas eu enchia-me de terror. Os T6 traziam a morte na barriga e despejavam-na em cima dos turras. E o céu parecia uma pele de tambor a ribombar. Aterrorizava-me a morte Zulmira, fosse de quem fosse a morte. É por isso que odeio as melgas. Elas a aproximarem-se dos meus ouvidos a imitar um T6 em voo picado. Às vezes chego a ouvir o teto do quarto como a pele de um tambor. E tu, tão inocente, a dormir como se não tivesses culpa de nada.
A tua beleza tornava a tua traição suportável. Eu olhava o desenho perfeito dos teus lábios e não conseguia imaginar que fizessem outra coisa além de beijar. Agora parece que só fizeram obscenidades sem escrúpulos.
Sabes Zulmira, eu amava-te com ternura e via em ti uma flor, onde outros viam apenas um fruto. Via em ti a minha sede, onde outros apenas a água de beber. A paixão, Zulmira, onde outros apenas a carne. E depois da paixão regressava lentamente à ternura, onde outros apenas se levantaram.
Mas o silêncio apaga tudo, encobre tudo. O silêncio é teu cúmplice Zulmira, por isso é que tu dormes sem medo, como se as coisas não acabassem por se estragar com o tempo, a caminharem lentamente para a morte.
As coisas morrem lentamente e eu posso não ver isso, mas sinto, Zulmira; há uma diferença nas coisas quando a morte anda no ar. Eu olhava para o mato e sentia a morte. “Ó furriel, isto cheira-me a esturro” e ele a olhar para mim e a encolher os ombros, sem remorsos como tu.
Quando o radiotelegrafista ficou para trás eu vi logo que ele tinha levado um balázio, e fiquei a olhar para ele. Nós íamos a fugir e ele parado de repente. Sabes lá o tempo que um soldado morto leva a cair? Os olhos parados, como se o tiro tivesse desligado um mecanismo qualquer lá dentro. Mas o corpo ainda de pé, e eu no meio da picada a olhar para ele. Quando uma pessoa não pode fazer nada o tempo parece que para. Eu parado, olhando para ele, e ele no meio da picada, já morto, mas ainda de pé. De pé como uma torre de uma catedral onde os sinos apenas se calaram.
Tu és mais feliz do que eu porque não sentes que as coisas se estragam com o tempo. Olho para ti e não sei como me distraí, como não nos vi envelhecer, Zulmira. Bolsas debaixo dos olhos, pregas nas pálpebras, inchaços no rosto, barbelas no pescoço, nos braços, na barriga e uma rede de rugas por todo o rosto, por todo o corpo. Tudo isso a crescer em nós como eras num muro, como as ervas no empedrado do terraço. Tão devagar como as gavinhas da parreira nos ferros da varanda. Tão devagar que a gente nem dá conta. A gente a olhar e a não ver nada, mas tudo a acontecer debaixo dos nossos olhos. O bolor da vida a crescer, o grelado da alma a cobrir o mundo; tudo a transformar-se a uma velocidade diferente da nossa. Todas as coisas que conhecemos a deixarem de ser o que eram e a transformarem-se noutras sem darmos por isso.
Tu foste envelhecendo e foste aprendendo a ser-me fiel à medida que envelheceste. Não vês como isso é criminoso Zulmira? Tu dares-me o que eu queria, quando já não é o que eu queria, quando já nem eu sou o que eu queria.
Pode ser apenas este silêncio, Zulmira, que me transforma num fantasma que já devia ter partido, mas que continua aqui condenado apenas a permanecer.
Se ao menos ressonasses Zulmira, se ao menos os vizinhos de baixo discutissem, ou os de cima fizessem ranger a cama, ou se ao menos a minha cabeça ficasse também em silêncio, e tudo desaparecesse no esquecimento…
Mas a minha cabeça parece ser a única coisa neste mundo que não está em silêncio. O mundo parou, ou anda tão devagar como as gavinhas da parreira nos ferros da varanda, e a minha cabeça vai a 100 à hora, Zulmira. E tu inocente a dormir.
O furriel a gritar "guardem o medo prá 'manhã e venham proteger o enfermeiro", e eu a sentir os pés a escaldar com medo das minas. Mas fui proteger o enfermeiro que tentava ligar o mecanismo dentro do radiotelegrafista.
Nunca ouvi uma frase com tanta ternura: "não me morras, meu filho da puta". Mas os olhos do radiotelegrafista parados.
O enfermeiro gritou de novo: "não me morras, filho da puta". E uma rosa vermelha a desfolhar-se, a desfolhar-se no peito do radiotelegrafista.
E o médico da Liga a dizer que eu sou um cobarde, porque não me sai do peito aquele vazio por ter guardado o medo para mais tarde. Guardei o medo Zulmira, e guardei-o tão bem que ele ficou dentro de mim para o resto da vida; e agora volta todas as noites.
Sabes o que é o medo Zulmira? Não o medo bom de nos descobrirem a cometer um pecado; não o medo de o dinheiro ou a comida não chegarem ao fim do mês; não o medo de chegar a noite, e tu finalmente decidires que não voltas mais – o medo do medo Zulmira. O medo que para o mundo à minha volta, preso no betão do silêncio, que pesa no peito como se alguém se tivesse sentado sobre o meu caixão.
Nunca mais chega a manhã, para o sol começar a desenhar buracos nas persianas e uns fiozitos de luz que apanham grãozinhos de pó, como se o betão do silêncio se dissolvesse no ar.
Olho para trás, Zulmira, e vejo a minha vida toda como um filme. Foi tudo tão rápido visto daqui. Eu de boné e calções, ainda a parreira só um graveto, e os dedos já a enrolarem nos ferros da varanda.
Depois, eu já grande, com as mãos encardidas pelo cimento das obras, escondidas nos bolsos; enquanto outras mãos delicadas pareciam bolear o teu corpo. Estas minhas mãos que só se tornaram limpas na guerra. Acreditas Zulmira, que a guerra me limpou as mãos? Perdi os calos e a pele ficou tão delicada de só pegar na G3.
E eu sem ti. Eu sem poder bolear o teu corpo com as minhas mãos finalmente delicadas por só terem a missão de matar.
Os teus seios tão delicados e as minhas mãos de cortiça que não sentiam nada. No mato, olhava para as minhas mãos e sabia que sentiriam as pontas dos teus seios.
As minhas mãos delicadas de um lado do mundo e as pontas dos teus seios do outro.
Depois, eu a ver o radiotelegrafista morto com o corpo ainda de pé. Os olhos parados. O tempo que um soldado morto leva a cair... Tudo em silêncio de repente. O mundo parado como uma fotografia.
Depois o corpo do radiotelegrafista a tombar numa confusão de membros. Depois a cabeça para um lado. Depois uma rosa de sangue a desfolhar-se no peito. Depois o enfermeiro: "não me morras filho da puta". Depois o furriel: "guardem o medo prá 'manhã". Depois os pés a escaldarem-me com medo das minas. Depois o rádio: "Charlie - bravo, charlie - bravo, daqui alfa - sierra. Diga se me ouve, escuto." Mas os olhos do radiotelegrafista parados.
Depois eu a regressar finalmente a casa e tu com um sorriso triste. E eu a olhar para os dedos da parreira, enormes, a mostrarem que o tempo não tinha esperado por mim.
Ninguém esperou por mim. Eu a fazer negaças à morte, e as pessoas de quem eu gostava a viverem a vida como se nada fosse. Por isso é que quando a noite chega, sinto que alguém se senta sobre o meu caixão. Feito de medo. Do medo que eu guardei para quando tivesse tempo de ter medo.
Sinto que tudo parou. É a morte, Zulmira. Entre cada pingo da torneira da cozinha há uma eternidade de morte.
Os dedos da parreira lá fora na varanda a agarrarem-se à vida, mas tão lentamente que parece que a morte está mesmo prestes a pará-los para sempre.
Se ao menos já tivesse chegado a manhã…



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