4.3.11

A caminho do Norte

A tarde numa tristeza de pássaros pousados num fio elétrico. Pousados como uma fiada de farrapos abandonados, com o vento norte a levantar-lhes a ponta das penas. Um prenúncio de tempestade nos pingos de chuva esparsos. Grossos e tão esparsos que parece possível passar por entre eles sem nos molharmos. Mas não há pássaros nem chuva, de onde fui eu buscar isto agora?
Porém, eu sinto a tristeza na tarde, sinto-a como se costuma sentir no quarto de um doente terminal – uma tristeza que se adivinha por ali pairando, um relento de moribundo que as visitas percebem como se fizesse parte da composição do ar.
As pessoas passam umas pelas outras sem se verem. Estranhas. Ausentes. Apetece dar um grito ou partir qualquer coisa para as acordar da apatia.
Um sem-abrigo cabisbaixo, sentado no passeio, com a mão semiaberta pousada no chão. Uma mão cansada da indiferença dos transeuntes, onde se vê uma moeda de 50 cêntimos a pedir companhia, embora a mão semiaberta pareça recear que lha roubem.
Um dia em África senti essa tristeza do ar, essa dor impessoal, esse abandono das coisas a divorciarem-se das pessoas, como se as pessoas lhes metessem medo. Foi daí que me veio isso à ideia agora; porque havia um fio elétrico com pássaros pousados como farrapos, e um prenúncio de tempestade nos pingos grossos da chuva. Grossos e esparsos.
E ao meu lado uma prostituta oferecia-me suruma. Ao longe um pequeno grupo de pessoas rodeavam uma fogueira embora fizesse um calor de sufocar.
A prostituta ora me oferecia suruma, ora me perguntava se eu estava com medo de ir para o Norte. Não – respondo à prostituta 38 anos depois – não tenho medo. Talvez amanhã tenha medo no meio dos tiros, mas agora não. Agora sinto que estou no meio de um romance, e que o autor acabou um capítulo inesperadamente; deixou a história em suspenso e prepara-se para falar de outra coisa só para aumentar a expectativa.
Mas o que é verdadeiramente estranho, é que, 38 anos depois, o que me resta disso tudo seja apenas uma raiva incontida, não bem uma raiva, mais uma vontade de lutar, uma vontade de partir qualquer coisa para fazer as pessoas acordarem da apatia. Roubar os 50 cêntimos ao sem-abrigo para o obrigar a acordar também. Procurar um fio elétrico onde haja pássaros pousados e espantá-los à pedrada.
Na Fernão de Magalhães o trânsito flui como uma coisa automática. Os peões atravessam as passadeiras quase a correr, parecendo temer ser assassinados pelos automobilistas. Ao meu lado na mesa da esplanada uma mulher tem o braço esquerdo esticado e olha as costas da mão enquanto faz rodar no anelar uma aliança de ouro. Uma chávena de café esquecida ao lado. No braço direito várias marcas roxas denunciam violência doméstica. Roda a aliança. A bica arrefece. O trânsito automático. Eu a contas com a tristeza de uma tarde na minha memória. O eco de uma prostituta perguntando se tenho medo. Sim – respondo à prostituta de novo – um medo a haver. Quando chegar ao Norte; agora não. Agora sinto que algo ainda distante me atrai, algo perigoso e fatal; mas imperioso, como só imperioso assim é um dever a cumprir.
Quando passei pelas pessoas em torno da fogueira pareciam fantasmas, olhei ainda para trás e vi a silhueta da prostituta na luz amarelada da rua; a prostituta fumando suruma. Eu a caminho do Norte. Um prenúncio de tempestade. Uma tristeza como um componente do ar, para além do oxigénio e dos restantes 16 gazes principais. Com o tempo, estas coisas parecem mentira.
Pensei: será que um dia vou sentar-me ao sol no meio de gente que goste de mim e me vou lembrar desta tarde como um pesadelo do passado? Mas não. Nunca me lembro dessa tarde em África quando está sol e eu estou entre amigos. Agora sim. Agora que as pessoas passam com pressa, como se fugissem de uma tempestade que ameaça cair sobre a cidade, ou dos automobilistas que as parecem querer assassinar. E dá-me a ideia que algo imperioso me chama, e que estou de novo a ir para o Norte, e que o romance só parou um pouco para mudar de capítulo.
Mas aqui, na Fernão de Magalhães, não há romance nenhum, nem há um miserável fio elétrico onde poisem pássaros a criarem na nossa imaginação a impressão de que é o ar da tarde que tem tristeza na sua composição química, nem pessoas à volta de uma fogueira apesar do calor sufocante, nem uma prostituta de subúrbio a tentar adivinhar o medo da guerra escondido no coração dos soldados.
Na esplanada da Fernão de Magalhães a mulher puxa a aliança um pouco e esfrega o local onde ela deixou uma marca no dedo, como os escravos faziam com as marcas das grilhetas. Puxa a aliança mas a aliança não sai. Contenta-se em esfregar a marca no dedo. A bica já fria.
Aqui há apenas gente que não se conhece. Pedintes com medo que lhes roubem a moeda que usam como isco para atrair uma caridade que não existe. Parecem todos órfãos de uma esperança fora de validade que ainda não acordaram para a realidade de uma vida sem opções.
Uma apatia que gera em mim esta vontade visceral de lutar, de pegar novamente numa arma, puxar a culatra atrás, depois soltá-la e senti-la introduzir a primeira bala na câmara, e ir defender o Império. Ter ao menos a ilusão de um dever a cumprir. Olhar em volta e ter a sensação que quem escreveu este romance estúpido acabou abruptamente o capítulo da esperança só para criar uma falsa expectativa.
Depois, abrir um capítulo novo, ganhar coragem, e partir finalmente para o Norte.




(Segundo o acordo ortográfico)