2.11.03

A Prenda de Natal

O soldado abraça a G3, enquanto caminha pela picada, como se fosse um ícone sagrado ou um amuleto. Era, bem vistas as coisas, o único objecto de valor que transportava consigo. Quanto custaria uma G3? Provavelmente não possuía nada de seu com um preço superior ao de uma G3.
Lembrava-se de, quando criança, ter pedido um triciclo pelo Natal e de os seus pais lhe terem dito que o Menino Jesus não dava prendas tão caras. Apesar disso, nunca pôde deixar de formular o desejo de receber uma prenda que fosse provocatoriamente superior ao orçamento do seu Menino Jesus, embora soubesse que a realidade no sapatinho haveria de ser bem mais modesta.
Nunca a realidade ultrapassou os seus sonhos.
O soldado avança, o agoiro da mina escaldando-lhe os pés, ora abraçando a arma ora atravessando-a, como uma canga, em cima do cachaço e descansando os braços sobre ela, como um crucifixo ambulante. Que pode um soldado crucificado na própria arma desejar para o Natal?


Cada passo é um lance de roleta russa.
Quando se ouve o estampido, mais no estômago do que nos ouvidos; quando se segue o instante de silêncio em que todo o som parece ter sido sugado para um buraco; quando sentimos o bafo fétido da morte que nos traz, num segundo apenas, uma eternidade de medo; então experimentamos um brevíssimo alívio, embora tão grande que não cabe em palavras. Mas quando somos nós a calcar a mina não se ouve nada, não se sente nada; tudo se apaga simplesmente.
E o soldado acordou. Nem dor, nem angústia, nem medo. Só um lento despertar. Uma dilacerante suspeita de não estar a acordar de um simples pesadelo, de cujos contornos não se recordasse bem, uma obstinada recusa em aceitar a estúpida realidade, crua e descarnada diante dos olhos. E o desejo, desta vez tão modesto, mas tão irrealista como sempre, de receber, como prenda de Natal, ao menos o corpo inteiro dentro das botas.