31.7.10

Uma História que não Aconteceu


Ela olha os catorze degraus da Sé Velha. Parece contá-los.
Agora o seu olhar está a subir devagar pela fachada. Parou e ficou muito tempo naquela posição, talvez admirando as ameias. Deve tê-las achado feias. Uma catedral com ameias não lhe deve ter parecido bem, nem a bela torre-lanterna do cruzeiro tão recuada. Que pena na Idade Média não construírem os templos a contarem com os turistas. Apeteceu-me ir dizer-lhe que subisse a rua Borges Carneiro para ter uma perspectiva melhor.
Eu folheava um livro de Lídia Jorge. Ainda não lia: folheava. Nunca mergulho num livro sem lhe avaliar a temperatura. Converso com ele. Leio trechos separados.
Reinicio várias vezes para me habituar ao paladar; deixo que o livro me domine. Só começo verdadeiramente a ler quando não penso em mais nada; e agora não me sai da cabeça o soldado Lourenço a fazer riscos no ferro da cama. Cortava um risco ao meio, com a ponta da faca do mato: mais um dia passado no inferno, menos um dia para o regresso a casa.
Depois ia dormir.
Ela deve ter quarenta anos, caminha com elegância apesar da calçada irregular. Olha sempre para a fachada do monumento. Parece afectada, artificial, como se estivesse a exibir-se para alguém.
O livro tira-me dali por instantes. Uma jovem. Um casamento. Um entardecer em África. Uma atmosfera de doce alienação. A guerra colonial começa a pairar sobre a história apenas como uma trovoada distante. A mulher olhando os degraus da Sé Velha numa pose estudada. O soldado Lourenço a fazer riscos no ferro da cama. Na rua da Ilha um aluno do conservatório tira sons angustiados de uma tuba. Ao mesmo tempo uma voz feminina parece fazer gargarejos.
A mulher ficou a observar os degraus novamente.
Um pé no primeiro, como que a ganhar coragem. Deve ter vindo pela rua íngreme do Quebra-costas. Começa aqui uma história. Uma mulher de quarenta anos parou exausta em frente da Sé Velha. Se subir aqueles catorze degraus e entrar, vai provavelmente passar por uma lápide que tem o meu nome.
Bem, a história não começa aqui. Na verdade, nós sabemos quando a história de alguém acabou, mas não sabemos quando começou. Esta história terá começado quando sepultaram aquele bispo com o meu nome? Quando erigiram a Sé Velha? Talvez as histórias devessem ser contadas do fim para o princípio. Por exemplo, o soldado Lourenço tinha a história da sua passagem pela guerra toda contada.
Setecentos e trinta e um riscos; um para cada dia de comissão.
Maldito ano bissexto que o obrigaria a passar mais um dia na guerra. Depois cortava os riscos no ferro da cama com a ponta da faca do mato. Riscava mais um dia que não viveu.
Depois ia dormir. A mulher subiu os catorze degraus para poder entrar nesta história. Imagino-a a parar junto à lápide e a tentar ler o meu nome em latim. Os meus três nomes.
Aquela mulher vai dizer o meu nome completo. Durante um instante estaremos unidos por um equívoco.
Mas sem equívocos não há história. Se tudo se passar como é espectável – setecentos e trinta e um riscos no ferro da cama, nem mais um, nem menos um – não há história.
Mas a história de guerra do soldado Lourenço tinha demasiados equívocos. Se tivesse riscado todos os dias de comissão com a ponta da faca do mato, teria de acrescentar mais cinquenta e sete riscos, tantos quanto os dias que os seus camaradas cumpriram a mais em Mueda, para depois abatê-los com um traço; porque os dias na guerra não contam como dias de vida. Mas o soldado Lourenço tinha que morrer numa emboscada; e isso fez daquela história contada em riscos, como hieróglifos numa tumba egípcia, um equívoco total.
O livro começa a prender-me. Depois da história inicial, começa a revelar-se a vida por detrás da história. A vida é incomensuravelmente mais complicada do que a história.
A mulher desce já os degraus da Sé Velha, como uma modelo numa passerelle, elegante e sensual, fazendo com que as pernas se cruzem levemente à medida que desce.
Entretanto, passando à minha frente, um homem entradote na idade tenta fazer um traveling com uma câmara de vídeo compacta. Tarefa difícil numa calçada medieval.
– Ficou legal?
– Meio difícil né? Caminho irregular demais! Como é no interior?
– Oras… não deu nem pra ver. Um bocado escuro.
– Tão não dá pra filmar.
E sobem a rua da Ilha sem olharem para trás. Sem levarem nada. No entanto, aquele templo românico tem uma história em cada pedra. Levam um filme das escadas, a única parte que não pertence verdadeiramente ao monumento, construída muito recentemente em substituição de um antigo terraço ao nível da entrada.
Não há história sem equívocos, mas também não há história sem emoção. Como é possível estarem tão perto de entrar em contacto com a infinidade de histórias daquele templo, e ficarem satisfeitos com a escada de acesso? Tanta riqueza à mão e levam apenas umas imagens insípidas numa câmara compacta.
Confesso que gostaria de ter guardado apenas um vídeo do soldado Lourenço a riscar o ferro da cama. Fechava a sua história numa cassete, num DVD, e talvez a história dele não se intrometesse agora na minha leitura. Mas a história dele nunca mais me largou, porque não dei apenas os passos necessários para entrar nela e os passos necessários para sair dela, sem nada pelo meio. Ele a riscar o ferro da cama com a faca do mato. Setecentos e trinta e um riscos. Maldito ano bissexto. Ele contava a sua história de guerra ao contrário.
Em contagem decrescente. Setecentos e trinta; setecentos e vinte e nove. E depois ia dormir. Aos seiscentos e sessenta e um parou. Nessa altura, a trovoada da Guerra Colonial estalava mesmo por cima das nossas cabeças e um estilhaço de morteiro terminou-lhe o dia a meio.
Uma história com fim prematuro, quando o soldado Lourenço faleceu em Nampula dois dias depois. Eu deveria ter ido riscar esses dois dias no ferro da cama dele, porque se deve acabar a obra de um homem, nem que essa obra seja a contagem decrescente para a vida depois da guerra.
No Largo da Sé Velha a vida também avança sem esperar que alguma história aconteça. A tuba faz vibrar o ar fresco, para os lados do Conservatório. Às vezes ouvem-se os vocalizos da voz feminina, como gargarejos. O casal brasileiro há-de achar estranho aquele desconcerto musical.
Lá vão eles, rua da Ilha acima, talvez em busca do campus universitário. Devem colher algumas imagens em frente à Porta Férrea e pronto. Para quê perder mais tempo com detalhes?
Uma história que não aconteceu. O que mais há são histórias por acontecer. Há uma pedra tumular com o meu nome completo. Há muita gente que já leu aquele nome em voz alta como se falasse comigo, mas só a fantasia humana poderia ligar uma dessas pessoas a mim. O mundo não tem poesia nenhuma. Estética nenhuma. O mundo é um acumulado de ocorrências avulso. Somos nós que organizamos o divino caos universal na vã ilusão de criar beleza e de criá-la perene. Contamos histórias, erigimos catedrais e construímos universidades para que não se perca para sempre a beleza que um dia alguém sonhou. Nem que seja o belo sonho do impossível regresso a casa, quando a trovoada da guerra fazia estalar o céu mesmo por cima das nossas cabeças.


Se gostou deste "episódio" adquira o livro "Cacimbados" para leitura de férias aqui

9.7.10

A Alquimia do Outono

Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho.
Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade madura.
Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.
A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos, que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, a fazer concursos de matar rãs à pedrada.
Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.
– Olh'ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu'é que não calça o raça dos sapatos?
Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço, e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços. Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.

Entretanto nos vinhedos do Solão a alquimia do Outonho transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.
Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco, e os vindimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si. Ora, toda a gente sabe que a necessidade que leva ao acto aguça normalmente o engenho, que por sua vez inspira a tolerância do julgador, mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça e pilhávamos os vinhedos em busca de um cacho ou ao menos de uma esgalha esquecida.
– Serafim, Serafim, s'eu achar é pra mim!
O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde o dia dava mostras de sonolência. E o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à acção.
E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:
–Tarde!
Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto antes. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto antes.
Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.
Um dia na loja da senhora Idalina vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada doméstica para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.
Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície, e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.
Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.