19.4.07

A Doce Ocarina do Vento Norte

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O cigarro já esbraseia ao canto da boca e o isqueiro já esta arrumado. Agora Helena pousa os olhos numa lápide em especial, de granito negro, como se tudo o que fizera até aqui tivesse sido uma encenação ou uma preparação para que o seu olhar não se viesse a distrair com mais nada.
Daqui não se pode ver a foto no medalhão oval, de um rosto masculino, numa coloração errada de excesso de magenta, olhando de frente, com um semblante distorcido de quem tentou um sorriso e quase lhe saiu um esgar de dor; nem o livro em mármore branco com o crachá de uma unidade militar e a frase "Eterna audade" a faltar-lhe o "s" e a inspiração.
A velha passa por ela sempre olhando o chão e murmura um "bô tarde stora" como se estivesse a pedir desculpa por estar ali sem ser convidada.
Helena acompanha-a com o olhar até ao portão e então sente que está só no cemitério. Levanta-se e encaminha-se para a sepultura de granito negro. Agora vê bem a foto com excesso de magenta, olhando para ela de frente e o livro com o crachá. "Eterna audade dos companheiros de Mueda."
Quando o pai morreu Helena sentiu alívio. Mais do que uma vez reparou que a mãe remoçara como se tivesse vivido muito tempo na sombra e de repente tivesse ficado iluminada. E as amigas da mãe, que em vez dos pêsames lhe diziam "Acabou-se a tua penitência".
Se não tivesse sido a isenção de propinas por ser filha de um deficiente militar, Helena dificilmente teria conseguido licenciar-se e a sua gratidão de filha resumira-se a essa constatação, até decidir transformar a campa rasa do pai naquele belo túmulo de granito negro.
A foto com magenta a mais olha-a com aquele sorriso dorido e Helena sente uma enorme pena de não ter sofrido uma única vez com a morte do pai. Queria ter chorado, queria ter passado noites em claro com saudades dele, mas a verdade é que Helena já era órfã antes do pai morrer. Um dia ouviu a mãe dizer entre dentes "Estou casada com um cadáver".
Aquela foi a única foto recente do pai que Helena encontrara. Havia só aquele álbum que ele folheava com desvelo, repleto de fotos da guerra em África. Como era possível que o pai sentisse saudades de um tempo de horrores que lhe roubara tudo? Que procurava ele naquele álbum em que aparecia sempre com um sorriso num rosto de criança? Talvez o rosto de criança, talvez o sorriso. Depois as fotos rareavam e o sorriso nunca mais aparecia. Que terá acontecido para o seu pai se ter transformado naquele homem apagado e taciturno que parecia consumir toda a luz à sua volta, até que um dia se consumiu a si próprio totalmente, não tendo ficado nada a não ser a depressão no sofá onde ele se costumava sentar.

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13.4.07

A chegada a Mueda

A Companhia de Artilharia 3503 foi o que os seus homens foram. Todos sem excepção. E cada um de nós acabou por ser um pouco aquilo que foi cada um dos restantes. É isso a camaradagem. Palavra de ressonâncias militares que significa hoje muita coisa, mas para mim significa o último cigarro partilhado por todos, a última lata de conserva que não matava a fome a um e que dava para todo o grupo de combate, a eminência da morte no olhar de um amigo, a mão a apertar-me o braço enquanto o helicóptero não vinha. ‑Coragem furriel, coragem.

O alferes Silvestre era um desses camaradas. Foi o primeiro comandante da companhia, porque fomos para a guerra sem capitão. Depois veio um capitão mas apenas por algum tempo e o alferes Silvestre voltou a ser o comandante. E depois outro e outro, mas o alferes Silvestre continuou sempre lá. Foi ferido gravemente e voltou. O alferes Silvestre voltou sempre. Posso dizer que foi o nosso comandante várias vezes, enquanto os capitães iam faltando. Tantas vezes, que para todos os homens ele é que era o nosso comandante. O verdadeiro comandante da CART 3503. Tenho a certeza que se nos pedissem para procurar uma palavra para o definir, a palavra mais escolhida seria "camarada". E ser camarada é isso também: voltar sempre a ser um de nós.

É dele o trecho que publico hoje. O espanto e a inocência dos "checas" a chegarem ao mato.
Tudo iria mudar para todos a partir dali e nenhum de nós jamais sairia de lá como entrou.



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6 de Fevereiro de 1972, Porto Amélia

Vista do barco uma baía linda, enorme e a cidade a subir a partir do cais. Fomos saindo do barco de olhos bem abertos e sentidos alerta à espera da guerra e de súbito uma recepção inesperada e ensurdecedora abateu-se sobre nós. Formando duas filas por onde nós teríamos que passar, grupos de homens sujos, roupas em farrapos, cabelos e barbas compridos, olhos esbugalhados e parecendo deitar sangue, gritavam e saltavam como loucos à nossa volta, abraçando-nos e chamando-nos checas. Eram os elementos que sobravam da 2730, companhia que íamos substituir.
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Aqui, um grande ataque inesperado e diferente, tão diferente que apesar de todos os treinos em Portugal, ninguém nos tinha preparado para este. Um enxame de abelhas africanas que terá sido incomodado por alguma das nossas viaturas resolveu vingar-se e cada um fugiu como pode, os que não tiveram tempo chegaram a correr perigo de vida e foram evacuados de helicóptero para Mueda.

Recompostos, seguiu a coluna enfrentando agora novas dificuldades, as chuvas tinham deixado a picada em péssimo estado, pelo que o avanço das viaturas era extremamente difícil.


12 de Fevereiro de 1972, Mueda

Finalmente, as primeiras viaturas entraram em Mueda em 12 de Fevereiro de 1972 e as restantes no dia 13.

À entrada uma grande placa de madeira dava-nos as boas – vindas


© A. Silvestre



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10.4.07

Posfácio

Chamavam esgaseados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África. O povo sempre soube o que os peritos e as autoridades teimaram em ignorar durante tanto tempo: alguns ex-combatentes sofrem do distúrbio psiquiátrico conhecido por PTSD, Transtorno Pós-traumático do Stress. Para eles a guerra não acaba nunca no armistício.
Confesso a pretensão literária dos textos que aqui vos mostrei, pelo que deve ser tomada em conta a intenção de transmitir sensações em vez de veicular informações, isto é, a verdade que transmito não é tanto a dos factos, como a dos sentimentos.

Mueda – Hospital e morgue – Foto do ex-capitão Almeida
último comandante da CART 3503)

[...] Todas as guerras começam cedo demais, todas acabam demasiado tarde. O tempo que duram serve apenas para medir a dimensão da imbecilidade humana.


Última formatura da CART 3503
antes de abandonar Mueda
Foto do ex Alferes Silvestre - ao centro
(o verdadeiro comandante da 3503)


Que estas minhas palavras sejam entendidas como um apelo para que não caia no esquecimento uma guerra que poderia ter sido evitada, ou que pelo menos poderia ter sido terminada com honra e dignidade e para que não volte a acontecer que políticos corruptos, falsos diplomatas e estrategas trogloditas, convoquem o heroísmo genuíno dos vinte e poucos anos de um jovem, para acudir à sua incompetência inoperante e à sua cobarde estupidez.

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