26.1.16

Palavras como que de amor

Eras vaga e indecifrável
casta na minha ignorância
Via-te desprovida de biologia
sem excreções nem ânus
E do sexo
apenas o desenho imaginado
da tua púbis
na confluência suave das coxas
sem os pormenores imperfeitos  da animalidade
Não sei quando foi que acordou em mim
a bestialidade vertiginosa
de te canibalizar

Não nos conhecíamos
e conhecemo-nos
Não nos amávamos
e amámo-nos
Mas a vida tomou conta de nós
e o tempo desgastou
o cimento entre as pedras
a pouco e pouco
até ficar uma ruína
até ficarmos soltos
a desabar
E finalmente
voltámos a desconhecer-nos

Quando cruzavas as pernas
os teus gráceis
ou ao subires as escadas
os teus glúteos
tocavam-se num átimo feliz
e depois estremeciam a acomodarem-se
insatisfeitos com as leis da inércia
Tal e qual os meus olhos a segui-los
e as minhas mãos inquietas
Mas não é o impacto do estalo
que recordo
são as ondas de choque
a corrente telúrica
por sob o teu vestido

Quase te amo
Sei que quase te amo
Só não sei quanto falta
para não ter convicções nenhumas
e ficar olhando  para o caminho
por onde hás de vir
e sentir uma diferença
algures dentro de mim
entre a epiderme e o infinito
Agora
sinto apenas uma diferença no corpo
quando te vejo chegar

Morremos tantas vezes em Mueda
Morremos sempre que uma voz se cala
por estarmos aqui
Às vezes até acordamos já mortos
por isso à noite
os soldados bebem e cantam
para adormecerem vivos

Meu inimigo
tão íntimo que somos
A vida uniu-nos
sem raiva nem ódio
A nossa arena
e o nosso lar
é  a mata antiquíssima
onde nos tentamos matar
como duas almas gémeas
aguardando uma única vida disponível

O melhor combatente
não é o que tem esperança
é aquele a quem não resta
caminho possível
para um último afeto
Solidário com a Morte
levará consigo
no derradeiro abraço
o seu mais íntimo inimigo
certo que a Vida
é uma patologia do Cosmos
é a pureza inquinada

O dia em que vais morrer já começou
Algures nesta picada tombarás
e deixarás de saber
tudo o que aprendeste
Tornar-se-á inútil
a longa corrente de seres vivos
que te antecederam
para que fosses possível
desde o princípio do mundo
até ao rebentamento da mina

A guerra é a negação de Deus
Que obra imperfeita
faz perfeito o seu criador
Nós
ao menos
temos a desculpa da estupidez

Não os deuses
mas os humanos apenas
são capazes de amor
Os seres perfeitos
não têm faces ou arestas
são as esferas
do mundo etéreo
Amá-los ou temê-los
é-lhes pois
indiferente
Os sentimentos
à escala divina
são uma imperfeição humana
que só noutra imperfeição
se refletem

É péssimo ser otimista
Quanto maior a sede
mais pequeno parece o copo

Comigo
na casa deserta
vivem
não fantasmas
mas ausências
Ausências dos afetos
e das pessoas
e
temo-o seriamente
faltar-me-ão um dia
as próprias ausências
como a insónia
que sucede
às noites mal dormidas
Que me visitem então
os fantasmas

O sobrado da adega
guardou algum tempo
os objetos esquecidos da família
Ficaram ali a desmemoriar
Quando já ninguém se lembrava
das suas histórias
foram jogados fora
como se faz
com as pessoas

A poesia
é a arte de dizer lugares-comuns
pela primeira vez

Por cada comboio que parte
ficam muitas histórias por contar
A minha história
também não embarcou
vou-me afastando irremediavelmente
da vida que vivi
e aproximo-me de quê
eu que viajo de costas para o destino

Quando estiveres perdida
procura-te no meu coração

Às vezes a noite
é um pássaro triste
que crocita saudades
num bosque distante
dentro do peito
Às vezes
um navio fantasma
num mar de brumas
e eu preso
à roda do leme
Em que porto desembarcaste
ou que vaga te levou
ou desencanto
E eu ao leme
náufrago de ti

Num sobressalto da tarde
como se uma onda batesse
no cais da minha alma
ou sei lá que dor dentro de mim
eu percebi que  já é tarde
O que acabou em ti
meu amor
ou para que poente se evadiu
Num sobressalto da tarde
como se uma ave se alvoroçasse
por entre os ramos
ou sei lá que angústia no meu peito
eu percebi que nunca mais
Que morreu em ti
meu amor
Ou será que fui eu que morri
e a onda a bater no cais
a ave agitando os ramos
e o sobressalto da tarde
são apenas saudade
A tua saudade de mim

Nunca o espaço se entrepôs
nunca o tempo
Nunca a dúvida também
que a dúvida
é a maior distância entre dois amantes
Tudo o que afrontou este amplexo
feneceu a uma simples palavra
ou a um olhar só
Que grito profundo
pôs agora em ebulição
a superfície plácida das águas
num repentino alvoroço
de aves em pânico
Que manto de sombra
da face oculta da lua
veio cobrir de medo
a luz tranquila da tarde
que repousava em teu olhar
Que maldição
que rancor
de deuses desconhecidos
querem partir este amor uno
em duas solidões
Não pôde o espaço
nem o tempo
nem a dúvida
não poderá agora o medo
Aqui me ergo
pronto para a contenda
cruzado sem fé nem demanda
os ferros brandindo
a esventrar as trevas
Um pouco mais
um pouco mais
e restituir-te-ei a madrugada

Olhei para o lado e estavas lá
na luz âmbar que vinha do mar
serena como a madrugada
antes das grandes paixões
Toquei-te e o prazer
durou mais que o gesto
Ao meu lado
quando a tarde já exausta
mergulhou no mar
tu suspensa do infinito
por um grito suspenso de ti
e o tempo como que esperando
para acontecer
Abri os olhos e estavas lá
estremunhada de amor
o arfar das ondas ainda no peito
e a luz da tarde
durando nos olhos
porque o tempo não passa
enquanto o amor não envelhece
Sei que estavas lá
serena no âmbar da tarde
porque fui feliz

As marcas do nosso amor
na areia fina
a maré apaga
ou o vento
ou a chuva
Mas a leve carícia
dos meus dedos
na fímbria do teu corpo
ainda perdura
Nem o vento
nem outras mãos
só a dissolução
da memória
no lento suicídio dos dias
O tempo
tudo destrói

Um espaço vazio
minha filha
estaria no teu lugar
Aí não seria sequer um lugar
seria a continuidade do espaço
que agora interrompes
com a tua existência
não fora a cadeia incontável de ocorrências
que te deu origem
quiçá um fator desconhecido
e irracional
talvez o amor
talvez a oxitocina no hipotálamo
talvez a brisa em Olhos d’Água
talvez o olhar da tua mãe
ao cair da tarde

Vieste do Infinito
porque no Mundo
não havia nada como tu
e o Mundo ficou
um pouco mais bonito
depois de tu chegares
No íntimo mais ínfimo de ti
existe uma canção solta de mim
um grito arrancado de mim
um segredo contado por mim
mas que não são meus
vieram do Infinito também
como tu
Recebi-os dos meus pais
assim como o perfume das rosas
que vai passando de rosa em rosa
sempre igual
até ao fim dos tempos
Às vezes fico contente
por te ter dado o Mundo
às vezes fico triste
por não te ter dado algo melhor


Para deficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.

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