3.6.09

100 Versos do Mato

Órfão

Que faço
nos intestinos da selva
sem uma causa
que me proteja do medo
Eu não sou daqui
sou de uma terra
onde as árvores gostam de mim
e os meus inimigos me conhecem.


Porta dos fundos

Coitados dos ditadores
para parecerem deuses
fazem das soluções fáceis
difíceis problemas
Encolhem a dignidade humana
para parecerem grandiosos
eles que têm medo do escuro
E aqui estamos nós
no fundo das escadas
do Império moribundo
por lhes faltar a coragem
para fecharem a porta
e apagarem a luz.


A constância da morte

Os sons da noite
são o eco
dos sons do dia
Tudo é inverso
neste espelho
em que a luz adormece
Só a Morte é igual
porque é sempre negra
no coração dos homens.


Ciúme

Uma asa de ave
corta a planura do lago
enquanto plácida a Lua sonha
Tu
meu amor a haver
és a dor no peito
de suspeitar que morrerei
sem ser feliz.


O coice da arma

Tenho uma palavra dentro de mim
a querer ser dita
Cada vez que dou um tiro
ela morde-me as tripas
Que palavra será esta
entre o meu dedo
e a Morte.


Mueda de troca

Matei-te
Com a desculpa
de que me querias matar
Que ganhei eu
Se fui assassino no teu lugar.


A rosa da morte

A Grande Prostituta
ama-nos como a fome ama o fruto
Quer invaginar-nos a cada passo
E nós caminhamos sobre a alma
sentindo o coração nos pés
Quando tombamos
ajoelha ao nosso lado
O enfermeiro tentando a ternura
Não me morras filho da puta
Mas nada pára a rosa
no peito do radiotelegrafista
A desfolhar-se
a desfolhar-se
Há pouco alguém puxou um gatilho
E ele ficou parado no meio da picada
como uma torre de igreja
em que os sinos se calaram.


Pietá

Vem do céu
e pousa de helicóptero
com subtilezas de anjo
Ultrapassa a Morte
e leva-nos nos braços
Ama-nos sem saber
a enfermeira da T-shirt branca.


O semeador

O soldado lança a granada
como outrora o pão
Semeia dor
E alguém morre
onde aquele gesto macho
esteriliza em vez de fecundar.


O Cancioneiro do Niassa

Morremos tantas vezes em Mueda
Morremos sempre que uma voz se cala
por estarmos aqui
Às vezes até acordamos já mortos
Por isso à noite
os soldados bebem e cantam
para adormecerem vivos.


Inspiração divina

Uma borboleta pousou na minha arma
Como se Deus me tivesse escolhido
para dizer alguma coisa
Com a sua mania de falar por linhas tortas
não entendi nada
Logo depois a borboleta foi-se embora
cansada de ser uma metáfora.


Excelsis Deo

A guerra é a negação de Deus
Que obra imperfeita
faz perfeito o seu criador
Nós
ao menos
temos a desculpa da estupidez.

---
Mueda, 1972

1 comentário:

José Sande disse...

Meu caro Manuel Bastos,

não vou, não consigo comentar cada um, um a um, dos seus 100 poemas. Digo-lhe, na verdade, que não sei se estava à espera, antes, se estava preparado, apesar de quanta poesia em muita da sua tão realista e crua prosa, para estes "tiros" à queima-roupa, que atingem, "ferem" quase mais que os contos, porque talvez, de tão curtos, mais penetrantes. E se doem!...

Mas como estamos todos fartos de guerra, não nos arranje outra dos "Cem dias" e publique os poemas quanto antes. Há coisas que não podem esperar, não só pelos que já o conhecem e anseiam lê-los rapidamente, mas pricipalmente porque é, continua a ser urgente que se publique o que é de mais qualidade e mais verdadeiro.

Um grande abraço de amizade do José Sande