Órfão
Que faço
nos intestinos da selva
sem uma causa
que me proteja do medo
Eu não sou daqui
sou de uma terra
onde as árvores gostam de mim
e os meus inimigos me conhecem.
Porta dos fundos
Coitados dos ditadores
para parecerem deuses
fazem das soluções fáceis
difíceis problemas
Encolhem a dignidade humana
para parecerem grandiosos
eles que têm medo do escuro
E aqui estamos nós
no fundo das escadas
do Império moribundo
por lhes faltar a coragem
para fecharem a porta
e apagarem a luz.
A constância da morte
Os sons da noite
são o eco
dos sons do dia
Tudo é inverso
neste espelho
em que a luz adormece
Só a Morte é igual
porque é sempre negra
no coração dos homens.
Ciúme
Uma asa de ave
corta a planura do lago
enquanto plácida a Lua sonha
Tu
meu amor a haver
és a dor no peito
de suspeitar que morrerei
sem ser feliz.
O coice da arma
Tenho uma palavra dentro de mim
a querer ser dita
Cada vez que dou um tiro
ela morde-me as tripas
Que palavra será esta
entre o meu dedo
e a Morte.
Mueda de troca
Matei-te
Com a desculpa
de que me querias matar
Que ganhei eu
Se fui assassino no teu lugar.
A rosa da morte
A Grande Prostituta
ama-nos como a fome ama o fruto
Quer invaginar-nos a cada passo
E nós caminhamos sobre a alma
sentindo o coração nos pés
Quando tombamos
ajoelha ao nosso lado
O enfermeiro tentando a ternura
Não me morras filho da puta
Mas nada pára a rosa
no peito do radiotelegrafista
A desfolhar-se
a desfolhar-se
Há pouco alguém puxou um gatilho
E ele ficou parado no meio da picada
como uma torre de igreja
em que os sinos se calaram.
Pietá
Vem do céu
e pousa de helicóptero
com subtilezas de anjo
Ultrapassa a Morte
e leva-nos nos braços
Ama-nos sem saber
a enfermeira da T-shirt branca.
O semeador
O soldado lança a granada
como outrora o pão
Semeia dor
E alguém morre
onde aquele gesto macho
esteriliza em vez de fecundar.
O Cancioneiro do Niassa
Morremos tantas vezes em Mueda
Morremos sempre que uma voz se cala
por estarmos aqui
Às vezes até acordamos já mortos
Por isso à noite
os soldados bebem e cantam
para adormecerem vivos.
Inspiração divina
Uma borboleta pousou na minha arma
Como se Deus me tivesse escolhido
para dizer alguma coisa
Com a sua mania de falar por linhas tortas
não entendi nada
Logo depois a borboleta foi-se embora
cansada de ser uma metáfora.
Excelsis Deo
A guerra é a negação de Deus
Que obra imperfeita
faz perfeito o seu criador
Nós
ao menos
temos a desculpa da estupidez.
---
Mueda, 1972
1 comentário:
Meu caro Manuel Bastos,
não vou, não consigo comentar cada um, um a um, dos seus 100 poemas. Digo-lhe, na verdade, que não sei se estava à espera, antes, se estava preparado, apesar de quanta poesia em muita da sua tão realista e crua prosa, para estes "tiros" à queima-roupa, que atingem, "ferem" quase mais que os contos, porque talvez, de tão curtos, mais penetrantes. E se doem!...
Mas como estamos todos fartos de guerra, não nos arranje outra dos "Cem dias" e publique os poemas quanto antes. Há coisas que não podem esperar, não só pelos que já o conhecem e anseiam lê-los rapidamente, mas pricipalmente porque é, continua a ser urgente que se publique o que é de mais qualidade e mais verdadeiro.
Um grande abraço de amizade do José Sande
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