7.6.10

Estupidário

Darwinismo
Não há nada inteligente debaixo do Sol. Tudo o que se conhece surge sem saber. Todo o ser que ganha saber apenas reproduz o que aprendeu com a sua espécie ao longo de milénios de evolução.
Às vezes, algo de novo surge, não por um acto racional mas como fruto da mais pura aleatoriedade, ou seja, da estupidez.

Imaginação
Um sardão pasmado ao sol. Um gafanhoto a estrebuchar-lhe na boca. Parecem posar para uma foto. Parados. Só uma perna do gafanhoto a tremelicar no canto da boca.
Deve demorar pouco para o gafanhoto deixar de ser um gafanhoto. O sardão também vai deixar de ser um sardão qualquer dia. E a pedra onde estão esboroar-se-á e deixará de ser uma pedra.
Tudo deixa de ser o que era, mais cedo ou mais tarde. Depois outra coisa quase igual toma o seu lugar. Outro gafanhoto, não necessariamente melhor que este. Outro sardão. Até outra pedra como esta há-de surgir em algum lugar neste universo.
Pelo menos à escala humana isto é estúpido; ou, a sermos governados por um ser inteligente, falta-lhe imaginação.

Calculismo
O matemático filósofo Blaise Pascal dizia-se crente por uma questão de inteligência.
Dado que se Deus não existisse nada lhe aconteceria, quer fosse crente quer fosse ateu; mas se Deus existisse ele seria punido se fosse ateu e seria recompensado se fosse crente.
Não há maior estupidez que evocar a inteligência partindo do princípio que Deus é estúpido.

Perfeição
Ela olha-se ao espelho e gosta do que vê, no entanto, demora-se em retoques de maquilhagem com as minúcias de uma restauradora de quadros antigos. O cabelo leva-lhe mais tempo. Quando se dá por satisfeita, ainda alinha uma madeixa sobre a arcada supraciliar direita com o cabo do pente para pronunciar um efeito de elegante negligência. Afasta-se dois passos para ter uma visão de conjunto e passa as mãos numa carícia sobre as ancas com o álibi de alisar o vestido.
Da cozinha o aroma do arroz de pato vem até à sala e ela aguarda o som da campainha da porta para acender as velas e baixar a luz ambiente.
Tudo perfeito, pensou.
Ele entrou. Passados alguns minutos a travessa do pato ficou reduzida a uns restos, as velas sujaram os candelabros, o vinho sujou os copos, algumas migalhas de pão sujaram a toalha.
Dois sapatos de salto alto à entrada do quarto.
Duas horas depois ele saiu. Ela olhou-se ao espelho de novo. O penteado desmanchado. A maquilhagem esborratada.
Depois, olhou languidamente pela porta a sala em desalinho.
Tudo perfeito, pensou.

Ignorância
Meu amor, amo-te porque não sei que te amo. Se soubesse, amar-te-ia por um motivo que me fosse grato e não por amor. O amor vive da ignorância de si.
Chegas, e as coisas perdem sentido à minha volta. Olho-te, e fico em êxtase como Narciso perante o espelho das águas. Falas, e toda a música se torna desnecessária. Ficas a meu lado, e o mundo já não poderá melhorar mais.
Mas não sei porquê.

Previsão
O meu modesto barbeiro antecipa-me todos os grandes fenómenos sociais enquanto me corta o cabelo. Não me lembro de alguma vez ter acertado nas suas previsões.
Chego a casa e ligo a TV em busca de alienação para a frustração de continuar a pagar o mesmo, e cada vez ter menos cabelo para cortar
Na TV um professor catedrático debita, mas com mais detalhes inúteis, as mesmas previsões falhadas do meu barbeiro.
Finalmente sinto um pouco de conforto, porque eu pago muito menos ao barbeiro que a televisão ao professor, para o mesmo resultado.
Será que ao menos o professor sabe cortar cabelo?

Senilidade
O Mondego ao fundo era uma cobra de prata. O sol mostra a realidade e a ilusão. Os nossos olhos aceitam ambos.
Ela sorriu com a tristeza que só um sorriso pode ter. Ele demorou a entender a tristeza vestida de sorriso.
Só a luz do meio-dia parecia entender tudo: o rio, a tristeza, o sorriso, e a mulher e o homem sorrindo um para o outro.
Todos os dias, como hoje, vinham à varanda, dir-se-ia que, para verem o rio fingir de cobra de prata transvestido de luz; mas ela vinha apenas ensaiar um sorriso e ele tentar entendê-lo.
Quando ao fim do dia, as empregadas do lar de Penacova lhes vieram mudar as algálias, o homem e a mulher sentiram uma ténue felicidade, com a memória, embora imprecisa, de terem tido uma história de amor.


O Zé da cadela, enquanto pôde, foi a Fátima a pé. Pagou a prestações anuais um empréstimo que contraiu com a Virgem. Ela concedeu-lhe a vida na Guerra da Guiné, e ele ia rezar meia dúzia de ave-marias no dia 13 de Maio em frente do santuário, sem juros nem spreads nem outras alcavalas. Ficou-lhe cada ano de vida à razão de 6 ave-marias e os 30 Quilómetros, palmilhados de Leiria à Cova-da-Iria.
Hoje morreu o Zé da cadela com todas as contas saldadas com a Virgem.
Porque me custa adormecer esta noite, não conformado com os mistérios da fé? Será que, não havendo um único resquício em mim, eu preferisse, intimamente, ser capaz de ignorar a quantidade de mortos que teriam pago mais ave-marias e ido de mais longe rezá-las e até com mais convicção, a troco de sentir no lastro da minha alma o dormente conforto de não pensar?

Estupidificação
O chefe avalia o subalterno, o subalterno bajula o chefe, o chefe recompensa o subalterno, o subalterno chega a chefe.
Nesta regressão natural das espécies premeia-se a prevalência do mais esperto e prepara-se o futuro para chegar à estupidez generalizada.
Finalmente, depois de quase um milénio de existência, Portugal terá condições para chegar em primeiro lugar.

Previsibilidade
Fortes convicções têm-nas os fracos. Certezas absolutas os tontos. Coerência de princípios os fanáticos previsíveis de todos os credos.
Abre os olhos só o necessário para não chocares com a liberdade de pensamento sem a reconheceres.
Não acredites demais em ti. A tua única manifestação de inteligência possível é a de questionares o rumo do rebanho de que fazes parte.
Destrói o GPS, rasga todos os mapas e fecha os olhos. Aprende com os cegos a ver na escuridão, e vai a corta-mato.
Depois sim, puxa da arma e dispara.
Vale mais atirar à sorte num inocente do que suicidares-te por impotência.

Heroísmo
Pegue-se num homem ainda novo.
Macere-se a sua carne e rale-se o seu espírito com uma educação alienante e manipuladora.
Junte-se em doses iguais: demagogia, religião e romantismo.
Tempere-se com patriotismo quanto baste.
Reserve-se a marinar durante alguns meses num quartel ou base militar para apurar do tempero e ganhar a consistência moral maleável típica de soldado.
Finalmente, leve-se a cozinhar numa guerra em lume alto, para reduzir rapidamente e ficar bem passado.
Serve-se em cadeira de rodas.

Agnosticismo
Há uma coisa muito estúpida: ter a certeza que deus existe e ser crente. Há uma coisa ainda mais estúpida: ter a certeza que deus não existe e ser ateu.
Mas se quer ser o mais estúpido que é possível, faça como eu: conforme-se com a sua própria estupidez e seja agnóstico.

31.5.10

Manif


Estava ameaçado o céu nublado mas o sol veio à manif.


Protestar com música porque a crise não é de inspiração.


Coimbra é uma canção, ou l'avril (oublié) au Portugal


O luto ainda não… A luta continua!


Defender… com afecto.


Até agora tudo bem… estamos só a cair. Será que acordamos antes de bater no chão?

12.5.10

Inquietações

Gato
Ontem saí de casa e havia um gato sentado à minha porta.
Pensei todo o dia nisto.
Não é expectável que um gato durma na soleira da porta de um prédio da minha cidade.
Por assim dizer, aquele gato tornou rural a minha urbanidade.
Hoje saí de casa e não havia gato nenhum, mas a cidade não voltou a ser a mesma. A reversibilidade do real não torna reversível uma metáfora.
A partir de hoje vivo numa aldeia onde falta um gato.

Punho
Ela dobrou a esquina e apareceu de repente.
Do muro rasteiro da rua um pedinte ergueu a cabeça para olhá-la. Ia estender a mão no seu hábito humilde de súplica, mas parou o gesto.
Do seu ponto de vista, rente aos pés de quem passa, todas as pessoas são altas. Porém, aquelas pernas de uma elegância interminável elevavam ao inatingível o seu ponto de confluência, onde o sexo seria uma inevitabilidade.
Isso aumentou o seu sentimento de exclusão, e a mão ainda parada a meio do gesto tremeu um pouco.
Por um curtíssimo instante deixou de ser um pedinte.
Foi quando uma foice de raiva lhe cortou o olhar e a mão parada a meio do gesto se ergueu num punho cerrado.

Música
Por entre os corpos dos seus entes queridos que lhe caíram em cima, a criança bijagó viu os soldados portugueses destruírem as tabancas da sua aldeia.
Se fosse um filme americano ouvir-se-ia uma música emocionante. Ouve-se sempre uma música emocionante com o intuito de transformar em arte as cenas de guerra mais obscenas. E os espectadores recostam-se em êxtase no sofá.
Mas o menino bijagó só ouvia o esguichar do sangue a sair do pescoço do seu pai como um javali ferido e o estertor da sua mãe como grunhidos de uma porca a morrer. Lá fora a guerra continuava sem mais estética nem humanidade.
Será que este menino, quando for grande, terá mais ódio aos soldados portugueses, aos sonoplastas americanos ou aos espectadores em êxtase com a matança?

Concavidades
À entrada do Fischmarkt em Hamburgo sentei-me cansado.
Uma canadiana de cada lado e à minha frente a pala côncava do saco da câmara. Do lado esquerdo o tocador de pianola, com o seu chapéu côncavo. Do lado direito os meus companheiros do Hospital Militar de sorriso côncavo adivinhando o desfecho da história.
Chegou uma senhora de alma côncava olhando-nos aos dois.
A senhora mediu a concavidade de cada um de nós: um perneta velho ou um jovem perneta?
Ia a decidir-se por mim quando a câmara reflex de lentes intermutáveis com uma zoom de 200 mm me escorregou para o regaço mal estiquei a mão.
Quando a moeda lhe retiniu na concavidade do chapéu, o velho tocador de pianola olhou-me vitorioso a julgar que levou a melhor por ser mais miserável do que eu.

Mozart
Na parede da sala o piano vertical tem a tampa levantada. Na pequena estante da tampa uma pasta de papel amarelado. Um jovem olha a cidade pela janela e faz estalar os dedos das mãos.
Na cabeça uma pequena confusão de pensamentos. À mistura com os restantes pensamentos, uma partitura de Mozart e uma decisão adiada.
A partitura vê-se bem mas a decisão não. Está adiada.
Ele faz correr as notas de abertura da peça pela memória. A decisão fica encoberta pela música.
Não olha a cidade, apenas dirige para lá o olhar. Quando dirigimos o nosso olhar para o infinito, habitualmente procuramos ver algo no nosso íntimo.
Depois, a réstia de um sorriso atravessa-lhe o rosto e ele senta-se decidido em frente do piano, esticando sempre os dedos. Abriu a pasta amarelada e passou para cima a folha de papel que dizia "Mozart Piano Sonata in C major, K. 309".
As mãos pairaram alguns segundos sobre o teclado.
Enquanto isso as notas de abertura da peça correram de novo pela memória, mas agora a decisão adiada via-se claramente em forma de rosto de mulher com olhar de súplica.
Quando os poderosos acordes se espalharam pela sala como um carrilhão de esperança, a réstia de sorriso abriu-se no rosto e o calor reconfortante do perdão encheu-lhe o peito.

Açucenas
Sei de um pequeno pedaço de terra na serra da Lousã onde nascem açucenas. Ao lado há um bosque que convida a intimidades.
Será que os líquenes sobre as pedras ainda guardam a ternura dos teus dedos? Será que o vento ainda viaja pela serra com as nossas palavras?
Lembro-me que pegaste numa açucena e a puseste no cabelo a lembrar-me que os amantes são sempre ingénuos e gostam de lugares-comuns.
Não fora o peso do Tempo e sentiria ainda o mesmo calor, apesar do vento frio que anunciava o Inverno prestes a chegar.
Porque pesa o Tempo? Porque murcham as açucenas?

Vento
Num canto do parque de estacionamento algumas folhas secas rodopiam. Um saco plástico aparece do nada e rodopia também.
O vento levanta-o e deixa-o cair, quase o faz dobrar a esquina e o liberta, mas volta a puxá-lo para o canto.
Eu fico a olhá-lo por não ter nada que fazer.
O bailado do saco plástico anima o canto árido do parque de estacionamento.
As folhas secas atrás dele marcando o movimento. O meu olhar embalado pelo movimento. O meu pensamento atraído pelo olhar.
Que música tocaria o vento para inspirar aquele bailado?
Tudo tão árido em meu redor, e um alento de poesia sobre o asfalto.
Quase vi o rosto de Deus sorrindo.

Tinto
Não fazes ideia do que estou a falar, pois não? Quando digo que me fazem pena as pessoas felizes, será que me entendes?
Eu sei que bebi de mais, eu sei que fiquei de repente com vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Mas tudo o que está conformado aos seus limites naturais me desgosta profundamente.
Não vês que do ponto de vista do quadrado, um cubo é uma quimera absurda. Não vês que do ponto de vista da baga bairradina, um Frei João tinto é uma utopia delirante?
E se eu fosse feliz, não estava sentado nesta caixa, de copo meio na mão, olhando o fogo em busca da minha transcendência.
É que, quando olho à minha volta, sinto a intransponibilidade dos meus limites perante a formidável incompreensão da tua ausência.


Inquietude
Há uma vantagem em estar acordado: podemos sempre ir dormir. A vantagem de estar a dormir é que não precisamos de grande esforço para sonhar. Já estando acordado, só alguns o conseguem fazer. Porém, só um número ainda mais pequeno é que consegue estar suficientemente acordado para se inquietar com o drama de estar vivo e pensar.

18.4.10

Dor Fantasma - LISBOA - Cartaz



teatromosca
DOR FANTASMA, na Casa Conveniente [Lisboa]

de 26 de Abril a 2 de Maio de segunda a domingo 21.30h Casa Conveniente (Cais do Sodré - Lisboa)

bilhetes à venda no local e nas Estações de Correio ou em CTT-Online


Depois de ter estreado "Dor Fantasma", com textos de Manuel Bastos e direcção de Mário Trigo, no Porto, no Estúdio Zero, em Novembro do ano passado, depois da apresentação em Sintra, na Casa de Teatro de Sintra, em Janeiro deste ano, o espectáculo é reposto, agora em Lisboa, na Casa Conveniente, em Lisboa (Cais do Sodré), de 26 de Abril a 2 de Maio, de segunda-feira a domingo, sempre às 21.30h.


textos MANUEL BASTOS

direcção MÁRIO TRIGO

co-produção teatromosca e Teatro Focus

acolhimento Casa Conveniente


PONTO DE PARTIDA

Desde 2007, o teatromosca tem vindo a desenvolver um ciclo de pequenos projectos dedicado ao tema da guerra (colonial ou de independência) nas ex-colónias portuguesas. Entre 2007 e 2008, foram apresentadas três “fases preparatórias” do projecto teatral IGNARA#GUERRA COLONIAL, que culminará, em 2012, com a apresentação do espectáculo final homónimo. No início de 2009, o teatromosca associou-se ao Teatro Focus para levar a cena uma nova versão, em formato reduzido, do espectáculo INFA72, com texto de Fernando Sousa e direcção de Mário Trigo. Agora, apresentamos uma nova produção com textos de Manuel Bastos, ex-combatente, um espectáculo que visa dar voz ao que, regularmente, não é dito e revelar o que, usualmente, permanece camuflado. Com Dor Fantasma, tentamos dar plano às histórias particulares, aos relatos pessoais e, de certa forma, íntimos daqueles que viveram/ ainda vivem a guerra, procurando fazer uma reflexão em torno da História, numa dialéctica entre a memória individual e a relevância e incorporação da mesma na memória colectiva.


SINOPSE

Este espectáculo constitui-se como um «monólogo a duas vozes», no qual duas personagens – um combatente e uma mulher - relatam episódios da «sua guerra», avaliando-a até às suas ínfimas, imponderáveis consequências.

Os «fait-divers» do teatro de guerra - entenda-se, o conjunto de acontecimentos que, em meio do caos, instituem essa espécie de perverso «padrão de normalidade» - são permanentemente desmontados pelo olhar lúcido, clínico, distanciado das personagens, apostadas em transmutar o horror da guerra em material de reflexão política (apartidária) ou em exercício extremo de auto-conhecimento.

A deliberada inclusão da personagem feminina na colagem de que o guião resulta- caucionada pela tematização que Manuel Bastos, atentamente, lhe vota - corresponde à candente necessidade de reconhecimento do papel (ainda hoje secundado) que a mulher portuguesa desempenhou antes, durante e depois do conflito armado aduzido.


SOBRE O AUTOR

Manuel Correia de Bastos nasceu na vila de Aguim, no concelho de Anadia, em 1950.

Foi mobilizado para ex-colónia de Moçambique com o posto de furriel miliciano, no cumprimento do serviço militar obrigatório, onde chegou no dia 12 de Fevereiro de 1972 até ser gravemente ferido em combate no dia 4 de Junho de 1972, devido à deflagração de uma mina anti-pessoal.

Tem escrito crónicas sobre a guerra colonial especialmente no Jornal da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, e mantém desde 2003 um dos mais antigos Blogs sobre a Guerra Colonial, O Cacimbo, em http://cacimbo.blogspot.com/.

Embora a crítica especializada ainda não tenha «descoberto» este autor seminal, trata-se, sem dúvida, do ponto de vista literário, uma das vozes mais surpreendentes que têm, nos últimos anos, riscado a oferta editorial sobre o tema, ombreando, sem dúvida, com nomes tão fundamentais como António Lobo Antunes, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, entre outros.

Da sua escrita pode destacar-se o modo como, glosando um tema tão «obsceno» como é a guerra (a sua, de um modo muito particular), consegue, munindo-se de metáforas límpidas e eficazes, atingir um lirismo de profundo fôlego filosófico de pendor filantrópico.


SOBRE O ENCENADOR

Mário Trigo, fundador e Director Artístico da Associação Cultural Teatro Focus, tem vindo a trabalhar, de há seis anos a esta parte, textos sobre a guerra colonial. Em 2006, com efeito, fechou - com Companhia de Caçadores, em cena na Casa dos Dias da Água, em Lisboa (espectáculo contemplado com um apoio pontual do Instituto das Artes) - um ciclo de três encenações subordinadas ao tema (as outras duas foram Violeta- Puta de Guerra, em cena na Sala-Estúdio do Teatro da Trindade, em 2004; e Infa 72, no Teatro Taborda, 2002) todas em colaboração com o dramaturgo (e ex-combatente) Fernando Sousa. As suas encenações têm merecido a aclamação da crítica, pelo rigor, qualidade e coerência demonstrados.


Ficha artística e técnica

Designação do espectáculo«Dor Fantasma» - a partir de textos de Manuel Bastos DirecçãoMário Trigo DramaturgiaPaulo Campos dos Reis InterpretaçãoFilipe Araújo e Susana Gaspar Assistência de encenaçãoDiana Alves Desenho de luzCarlos Arroja GrafismoAlex Gozblau Direcção de produçãoPedro Alves Produçãoteatromosca e Teatro Focus Co-produçãoFábrica da Pólvora - Clube Português de Artes e Ideias AcolhimentoAssociação Terra na Boca, As Boas Raparigas, Casa de Teatro de Sintra e Casa Conveniente ApoioCâmara Municipal de Sintra, Junta de Freguesia de Santa Maria e S. Miguel, Junta de Freguesia de Mira Sintra, Artistas Unidos, 5àSEC [Rio de Mouro], Relevo Branco, Jornal de Sintra, Jornal Actual Sintra, Jornal O Correio da Cidade, CTT, Rádio Clube de Sintra e Sporting Club de Lourel


de 26 de Abril a 2 de Maio

de segunda a domingo 21.30h

Casa Conveniente (Cais do Sodré - Lisboa)

bilhetes 5€ (preço único)


bilhetes à venda no local e nas Estações de Correio ou em CTT-Online

6.4.10

Relâmpagos


Café
A minha avó sopra uma brasa. A brasa numa cama de caruma. Sopra.
Depois acende-se uma chama na caruma e nos olhos da minha avó.
Em breve o aroma do café da manhã atraía todos em redor da mesa da cozinha do forno.
Desde aquela brasa até à máquina de cápsulas de café passou tanto tempo que eu já não devia lembrar-me disto, mas sempre que tomo a bica sinto que me falta qualquer coisa.
E não é café.

Cansaço
À hora em que o sol preguiçoso de Outono se servia da erva alta para desenhar longas pestanas de sombra sobre o pó da estrada de Vale de Cide, eu olhava os jornaleiros, cansado só de ver os corpos estomagados pelo martírio do farpão nas leivas barrentas dos vinhedos do Solão.
A minha doce lassidão perante a tortura.
Eles, talvez interpretando a inclinação da luz, pousavam o farpão. E a tarde morria.
Endireitavam a custo o dorso, com ambas as mãos apoiando as cruzes. Quase se ouviam os gonzos perros daquelas costas a ranger.
E espreguiçavam o olhar pela estrada fora, por onde se faria o caminho para o descanso.

Setembro
Quando o Verão era mais barato apanhávamos a camioneta para a Costa Nova.
Passávamos a ponte de madeira a pé. Ao longe cones de sal.
Se só os cones eram brancos, porque é que aquelas manhãs de Setembro da minha infância passaram para os meus sonhos?

Cão
Uma árvore caída sobre um rio.
A água passando alheia a este drama.
A impressão que longe daqui me morreu alguém. Muito longe daqui.
Quem se importa?
Um cão ladra ao longe só para aumentar este desalento.

Guerra
O vento soprava vindo de Sueste. Uma farripa de cabelo passava-me à frente dos olhos entrecortando a paisagem. Claro, escuro. Claro, escuro.
As palavras do Dr. Diógenes a falar do dever e da honra. As palavras do meu pai a falar de afectos. A guerra à espera.
Como se podem tomar decisões com o cabelo à frente dos olhos?

Mina
A fila de soldados deixava marcas de pés no chão. À medida que as marcas eram feitas ouvia-se um pequeno ruído como se o chão gemesse ao ser pisado pelos pés dos soldados.
Às vezes o chão fazia um ruído muito maior ao ser pisado.
Nunca devemos pousar os pés num chão que não nos queira bem.

Misses
O médico olhou para o Lemos e concluiu que, ainda assim, muito do Lemos se tinha salvo, e perguntou a pergunta que perguntava sempre:
– Sente-se bem?
E o Lemos:
– Sr. Doutor, tenho a impressão que o meu pénis está a modos que sem acção.
No Domingo à tarde, as vencedoras do concurso das misses de Nampula vieram visitar o Lemos.
O médico, satisfeito com o resultado, passou a sorrir pela cama do Lemos, na Segunda-feira de manhã.
Não há dúvida que a Medicina é uma ciência humana.

Dormidas
No Cais do Sodré um sem-abrigo dormita de mão estendida. O braço direito esticado e apoiado sobre o joelho.
Um boné sebento na mão diz a quem passa: "Dêem qualquer coisinha".
Dormita, porque é difícil manter os olhos abertos à indiferença humana.
Na esquina da rua, uma porta diz a quem passa: "Dormidas".
Em frente da porta, uma mulher anda de um lado para o outro como uma sentinela à entrada de um quartel.
Quando passa um homem sem ouvir o que diz o boné mas conseguindo ler o que diz a porta, ela entra com ele, e depois a janela do primeiro andar fecha-se.
Passados alguns minutos ela vem depositar uma moeda no boné.
E por uns segundos o sem-abrigo abre os olhos para uma réstia de humanidade.

Milagre
No hospital de Hamburgo havia muita gente que acreditava em milagres, mas nem todos os pernetas que foram a Lourdes tinham fé. Porém o Giló andava em silêncio a matutar naquilo.
Pelo sim pelo não, mais valia acreditar. E nós, cínicos, encorajávamo-lo.
No regresso, o Giló vinha envergonhado por ainda estar perneta.
Apesar de cínicos, nenhum de nós se riu.
Só deus se aproveita dos ingénuos.

Coragem
Os generais da junta médica militar mediram-me de alto a baixo e fizeram o que lhes mandaram fazer: deram-me alta porque a minha cama fazia falta para tanto ferido que a guerra fabricava.
E ficou deliberado que ao sair dali eu estaria restabelecido.
– Assine aqui.
– Não assino nada.
– É uma ordem.
Não assinei.
Um acto de coragem, mesmo inútil, faz mais pelo nosso amor-próprio do que a cobardia proveitosa.

Abril
Felizmente, a 25 de Abril de 1974 tudo mudou ao nascer do dia. Tudo, menos as pessoas com certezas.
Nós, os que temos dúvidas, temos também a honestidade de mudar frequentemente de opinião.
Eles são desonestos porque quando mudam, mudam de uma certeza para outra.

Paz
Durante anos e anos esqueci a guerra.
Esqueci, não – escondi-a no fundo da memória onde não se ouvissem os tiros. Só às vezes em sonhos o chão rebentava todo debaixo de mim.
Mas de manhã os teus olhos inventavam a paz no mundo.

Palco
Um homem triste. Um veterano pegando numa câmara fotográfica como se fosse uma arma.
Uma mulher muito bela imagina-se uma mariposa sob a luz.
Uma cadeira. Uma mesa. Parecem abandonadas sobre o palco.
Uma sala vazia leva mais solidão.
O homem aponta a câmara ao público. Dispara.
Cada pessoa ao sair para a rua, ainda levava um pouco de dor no peito.

Titanic
A crise é um barco a naufragar sem salva-vidas para todos.
O governo pede que sejamos patriotas e fiquemos no porão enquanto os passageiros da primeira classe se salvam.
Os sindicatos dizem que se não há salvação para todos, que vá tudo ao fundo.
Os políticos da orquestra de câmara continuam a fazer o que sabem e dão-nos música.
Aposto que neste filme os responsáveis não têm dignidade para se afogarem com o barco.

Relâmpagos
Quem faz a história é o leitor. Por isso nem tudo deve ser descrito, para que os silêncios entre as palavras deixem espaço à sua imaginação.
Eu só apanhei estas palavras por aí e pouco mais fiz com elas.
Um pouco mais de poesia e seriam música, um pouco menos e seriam preces. Não te iluminam o caminho, são breves relâmpagos apenas. Se te ajudar, fecha os olhos e lê.

30.3.10

Dor Fantasma em LISBOA


textos MANUEL BASTOS

direcção MÁRIO TRIGO

co-produção teatromosca e Teatro Focus

interpretações de Filipe Araújo e Susana Gaspar.




Casa Conveniente
Rua Nova do Carvalho n. 11
1200-291 Cais do Sodré
(em frente ao Jamaica)

Depois de ter estreado no Porto, no Estúdio Zero, em Novembro do ano passado, depois da apresentação em Sintra, na Casa de Teatro de Sintra, em Janeiro deste ano, o espectáculo "Dor Fantasma" é reposto, agora em Lisboa, de 26 de Abril a 2 de Maio, de segunda-feira a domingo, sempre às 21.30h, na Casa Conveniente, no Cais do Sodré. Partindo de textos do ex-combatente Manuel Bastos, com direcção de Mário Trigo, o espectáculo conta com interpretações de Filipe Araújo e Susana Gaspar.

15.3.10

O Contágio da Felicidade

Ler o texto completo aqui

[...]
Como eu nunca mais lhe olhei para as fuças, ele um dia destes no trabalho todo daimoso: "Em acabando isso vem falar comigo que te enganaste nesta venda-a-dinheiro." E eu: "Se tens alguma reclamação, fala com o patrão." E aquele javardo ao depois passou por mim e resmordeu: "Tu és boa é a encher pipas ao alto." Aquele untuoso, aquele filho duma cadela, que Deus me perdoe, que a Ti Adelaide que Deus tem era uma santa.
Acho que não devia estar a escrever estas coisas no meu diário, alguém pode um dia ler isto, e de mais a mais, agora o que eu faço de melhor é pôr tudo para trás das costas, que remédio.
Eu queria esquecer tudo o que se passou mas parece-me que toda a gente sabe. Em primeiro achei que ninguém sabia mas ao depois fiquei desconfiada que ele se gabou aos amigos do copo, que parece que têm visco no olhar e estão sempre na caçoada quando passam por mim e que até parece que me comem com os olhos. Aqueles moinantes hão-de futurar lindas coisas a meu respeito. Um botou-me uns olhos manhosos e disse para eu ouvir: “Será q’anda esponque?” Que ele é um bêbado sempiterno, um boca de favas que não dá uma para caixa; que o que ele queria dizer era "suponha que", que é como se diz pranha em Aguim. Aquele labrego. Para salvação da minha alma eu andava prevenida, senão tinha-me desgraçado.
Ainda se se dissesse: Ah, ela tinha falta de sexo e queria era deboche, mas não, eu namorava com o Adelino e tinha tudo o que queria dele; fui é apanhada de surpresa no meu ponto fraco. Mas não é o ponto fraco de todas as mulheres? Mas sabe Deus e eu em como eu antes preferia morrer do que ter prazer, só nojo e dor; que ainda sinto raiva por ter deixado perceber que gozei com as brutidades daquele porco roncolho, mas as forças foram-se-me não sei para onde, e eu fiquei de joelhos a ganir sem fôlego à frente do carro.
Na Terça e na Quarta fiquei em casa, mas na Quinta voltei à festa e foi nesse dia que reparei no Zé. Aqueles olhos ternurentos postos em mim, e eu deixei-me sorrir para ele – que ainda estou para saber porquê.
O Adelino a atazanar-me a paciência e eu a dizer-lhe: "Deslarga-me, vai fazer companhia àquela delambida com quem estiveste na Segunda-feira, e eu à tua espera." Ele a desfazer-se em desculpas e eu cá para mim: "Está bem deixa, daqui não levas mais nada." Que eu até andei embeiçada com ele, e ó mais, nunca me faltou com nada, e até é filho do patrão e tudo, mas não é homem de uma mulher só.
E fui-me achegando para o Zé, um passinho de cada vez. E ele a ficar corado, sem saber onde por as mãos, mas a dar passinhos no meu endireito também. Quando estávamos ao lado um do outro, ele para mim: "Está uma noite primorosa." Ó meu Deus, onde vai ele buscar aquelas palavras?
Mas eu senti uma alegria dentro de mim como se me tivessem dado uma prenda, um ramo de flores; nem sei explicar bem. O tratos que ele não deve ter dado à cabeça para se sair com aquela palavra ali do pé para a mão, só para me impressionar, e eu disse-lhe: "Está uma noite linda para começar um romance."
E assim Deus me dê saúde em como aquela noite foi a primeira noite do nosso romance.
Olhei para ele e perguntei-lhe se queria dançar comigo. Ele ficou tão atarantado que me apeteceu rir. Pegava na minha mão com as pontas dos dedos como se tivesse medo de me magoar, então eu agarrei a mão dele com a minha mão toda, e ele todo envergonhado. Envergonhado só por pegar na minha mão.
Fui-me encostando a ele devagarinho para não o assustar, e ele tão feliz, tão feliz, que até parece que me pegou a felicidade.
Aquela foi mesmo a primeira noite do nosso romance. Que o que eu senti, tive logo a certeza que era amor.
Amor é quando a felicidade se pega.


Ler o texto completo aqui

in "Pressistência da Memória"

9.3.10

36º Aniversário do Regresso da CART 3503


Almoço de Convívio
24-Abril-2010

Restaurante "O Chalé"
Rua Central de Vandoma,564
Vandoma
4585-767 VANDOMA


Confirma a tua presença
Até ao dia 15 de Abril para os seguintes contacto:
Manuel Fernando Costa - Telm. 916487132
Restaurante “O Chalé” - Telf. 224160207 - Telm.917179248





Preço por pessoa 35 euros
Crianças até aos 10 anos 50%



EMENTA



Bebidas
Vinhos e Espumantes da adega Cooperativa de Monção Esteva
Águas, Sumos, etc.
............................

Entradas
Delícias de marisco
Bolinhos de bacalhau
Croquetes de vitela
Rissóis de marisco e carne
Pataniscas
Salpicão
Melão
Presunto
Moelas
Rojões
.............................

PRATOS DE MESA

Sopas
Canja
ou
Creme de legumes
………………

Prato de peixe

Bacalhau Gratinado

……………

Pratos de Carne

Cabrito
ou
Vitela Assada com arroz de forno
Saladas mistas

.......................

BUFFET DE SOBREMESAS

Fruta Laminada
Pudim Francês
…………….
Bolo
Bolo da companhia
Champanhe
Cafés
Digestivos
………………

Ceia
Caldo Verde

3.3.10

O Rapaz de Aveiro

Texto de José Caseiro

Estávamos em Janeiro de 1971, provavelmente nos cruzamos na parada, ou no bar dos recrutas do R.I.7 em Leiria, até os nossos pelotões, quem sabe, se cruzaram, só que eu passado três semanas segui para as Caldas da Rainha para o curso de sargentos e ele lá ficou.
Passados vários meses e ainda no ano de 1971, só que agora no mês de Novembro já em Viana do Castelo, de vários rapazes que nos foram apresentados lá estava o rapaz de Aveiro, que era um dos quatro enfermeiros que iam fazer parte da CART. 3503.
Em Fevereiro de 72, chegados a Moçambique, precisamente a Mueda o rapaz de Aveiro foi colocado no meu pelotão. Das constantes saídas para a picada e para o mato, que nos deu a conhecer a maravilhosa beleza do planalto de Miteda, mais conhecido pelo planalto dos Macondes, nasceu uma amizade – não uma amizade de estarmos todos ali a defendermo-nos uns aos outros – mas aquela amizade que permite partilhar os bons momentos e desabafar os maus.
No mês de Maio de 72 fui evacuado para Nampula por motivos de saúde e no período que estive no H.M.N. até á 3ª semana de Junho, muitos azares teve a CART. 3503. Tivemos mortos e feridos graves, de entre eles o nosso autor do Cacimbo, que foi ferido gravemente. Hoje ainda recordo aquele dia em que estava no Hospital com a noite a entrar, quando se ouviram os hélios a fazerem-se ao heliporto do Hospital Militar de Nampula e as ambulâncias para lá a dirigirem-se, até que ouvi alguém dizer: "São de Mueda da 3503." Foi uma punhalada que senti no coração, corri para a entrada das urgências para tentar ver alguma coisa, mas ali nada vi, corri tudo que me foi possível, até que na enfermaria dos sargentos através da janela da porta o vi a ser transportado pelos soldados maqueiros de um lado para o outro, sem saberem em que cama o iriam deixar, estando todo nu, com a perna onde foi ferido gravemente a baloiçar. Estava a passar por uma nova situação na sua vida, e com a qual,por certo ainda não sabia como lidar.
Voltei-me para trás porque não me deixaram entrar, quase com as lágrimas a rebentarem, mas ali não podíamos chorar porque dávamos parte de fracos, caminhei um pouco e quando voltei para espreitar de novo e tentar falar com ele, ele já lá não estava, porque não era para aquela enfermaria que tinha que ir mas sim para os Cuidados Intensivos.
Regressado a Mueda logo no dia seguinte fui heli-transportado para Muera onde estava a decorrer uma grande operação. Se à ida para lá tivemos bastantes azares, no regresso, no que respeita a feridos nada tivemos, embora uma viatura tivesse rebentado uma mina anti-carro. O que é certo, é que correu muito bem, comparado com a ida, não pelo facto de eu lá estar, ou quem sabe, talvez sim. Porque é que digo isto? É que passados estes anos todos cheguei à seguinte conclusão: enquanto estive activo em Mueda só tivemos dois feridos graves, o primeiro logo no princípio, éramos chequinhas, e o segundo e último da companhia, já velhinhos e no mata-bicho.
Os restantes feridos graves, tal como os mortos foram todos na minha ausência quer quando estava em Nampula quer nos períodos de férias em que me ausentei de Mueda.
Durante estes períodos não sei qual foi a actividade do rapaz de Aveiro que era enfermeiro, com a missão de socorrer os companheiros, o que eu sei é que era um rapaz muito seguro de si, mas algo de estranho começou a passar-se com aquele rapaz, recordo-o a refugiar-se na leitura, não deixando de ser um bom camarada de guerra.
Chegou o dia em que foi graduado em Furriel, passando a ser um atirador e não um enfermeiro. Se bons amigos éramos enquanto ele era enfermeiro mais amigos ficámos agora que tínhamos o mesmo posto e que partilhávamos um quarto na flat dos Furriéis.
Com o tempo a não querer passar, onde se contavam os minutos e segundos que faltavam para sairmos de Mueda, à noite refugiávamo-nos na escrita para a família e madrinhas de guerra que se arranjavam através da revista plateia. Só que naquela noite o rapaz de Aveiro disse-me: "Hoje vai ser para a leitura, bebida e tabaco, queres acompanhar-me?" Eu respondi que não, o mais que podia ser era fazer-lhe companhia enquanto escrevia para a família e madrinhas de guerra, mas que quando acabasse iria dormir.
Entre ler e escrever a coisa deu até à uma da manhã, mas para ele não era nada pois que já tinha destinado que naquela noite iria meter abaixo nada mais nada menos que uma garrafa de brandy 1920, acompanhado com tabaco e alguma leitura.
Infelizmente, mais algumas vezes repetiu esta dose, porque para este rapaz esta era a única hipótese que via para sair daquele inferno em que vivíamos.
Este rapaz de Aveiro que numa noite bebia o conteúdo de brandy de uma garrafa de 0.75 e só se deitava quando via a garrafa vazia não tinha mais que 22 ou 23 anos.
Era para isto que os senhores da guerra nos roubavam às nossas famílias, para morrermos com um tiro, com uma mina, ou então para morrermos aos poucos com os maus tratamentos que dávamos ao nosso corpo quando estávamos na flor da nossa idade, porque o nosso pensamento era que mais dia menos dia, podia chegar o nosso dia…
E assim iríamos consolados.

© José Caseiro

26.2.10

Orgulho-me do Medo

Orgulho-me do medo
Às vezes de manhã
o cacimbo aumentava a raiva
e o dedo pelo mapa
deixava um risco invisível
a caminho da morte
Os olhos inocentes dos soldados
a perguntarem à medida
que a inteligência acordava
Porque lutamos
se ninguém o merece

Hoje somos manchas
numa foto encardida
pelo ranço do tempo
mas ainda se vê o medo
no olhar inteligente dos soldados


(c) Manuel Guinato

12.2.10

O Problema


Foto cedida por http://mocambique1.blogs.sapo.pt/

De onde me vêm estes pensamentos? Acho que nascem numa parte de mim que eu não conheço, quem sabe, talvez venham da parte detrás da alma.
Gosto de falar e caminhar ao mesmo tempo. Aqui no jardim do hospital só as árvores me ouvem. Eu também aprendi a ouvir as árvores em África. Nós em silêncio, como se estivéssemos a roubar alguma coisa, e as árvores sussurrando à nossa volta.
A gente olha, e elas népia, calam-se logo. Elas falam entre si com murmúrios de vento, por isso são livres.
Que eu conheço homens que correm, correm, mas as suas palavras nunca saem do mesmo sítio, já as árvores sabem muito bem que se as palavras não forem livres como o vento, seremos sempre escravos.
Mas é preciso fingir que não as ouvimos para não as melindrarmos, porque as árvores são como eu, gostam de falar mas não gostam de intrometidos. É por isso que gosto de vir caminhar para aqui entre elas.
Só não gosto dos canteiros de flores. A Etelvina tem muitas flores e eu digo-lhe:
– Não tens dó de teres as flores enjauladas como animais num curral?
E ela:
– Ó Zé!
Apetece-me soltá-las para elas se espalharem pelos campos fora. Cultivar flores em canteiros, todas alinhadas como soldados num pelotão, devia ser proibido. E ainda dizem que já acabou a escravatura.
Às vezes na parada eu fingia que me enganava e ia para a esquerda quando o furriel dizia "direita volver". Não há nada mais cómico que trinta gajos, todos para um lado e eu sozinho para o outro. Era o único momento em que eu não me sentia escravo.
E também, às vezes à noite, quando toda a gente dormia e as árvores me chamavam em segredo.
As árvores são boa companhia, partilham a liberdade connosco, mas sabem ocupar o seu lugar. A minha filha parecia entender isto quando era pequenina:
– Ó pai, as árvores nunca saem do mesmo lugar?
E eu:
– Não, minha filha, mas são livres porque falam com a voz do vento.
Hoje telefonou-me.
Eu disse-lhe que estava bem e a voz dela ficou presa numa palavra que parecia não querer sair. Pareceu-me que ia dizer pai, e fiquei à espera, porque há muito que não me chama pai. Uma palavra tão pequena e que fica sempre entalada. A Etelvina dantes ainda falava qualquer coisa, mas agora, quando lhe pergunto se se lembra de termos sido felizes, só diz:
– Ó Zé!
E depois cala-se também.
Fazemos longos telefonemas de silêncio. Mas dá-me a ideia que alguém chora por detrás do silêncio.
O que foi que nos sucedeu, que quando recordamos o carinho nos esquecemos das palavras?
Ao menos as árvores nunca se calam. Bem, só ao fim da tarde, quando os pardais lhes cobrem os dedos e elas se vestem de sombras para dormirem. A essa hora fico muito sozinho aqui no parque.
E quando fico muito sozinho recordo-me de quando a minha filha me procurava para eu lhe ensinar a resolver os problemas da escola. São os últimos momentos de ternura de que me lembro.
Quando eu lhe ajudava a resolver os problemas os olhos dela enchiam-se de orgulho de mim. Depois os problemas tornaram-se muito difíceis para mim e ela aprendeu a resolvê-los sozinha, foi quando os olhos dela começaram a ficar parecidos com os da mãe.
Uma ocasião, vi um problema difícil num jornal e lembrei-me de lhe pedir ajuda a ela.
E ela:
– Ó pai!
Tal qual como a mãe diz:
– Ó Zé!
Ela não tarda nada é professora, deve-lhe ser fácil resolver problemas. Ainda guardo a folha do jornal.
Se ela vier visitar-me peço-lhe novamente. Se ela disser "Ó pai" como dizia quando me pedia ajuda, eu insisto, se for no tom em que a mãe diz "Ó Zé", eu calo-me.
A vida não faz sentido quando temos um problema para resolver e ninguém se preocupa com isso. Ao menos as árvores falam entre si.
É verdade que ontem o capelão veio falar comigo para me ajudar a resolver o problema do jornal, mas eu tive que lhe explicar que nem todas as soluções servem. Que ao ouvir a solução nós temos que sentir os olhos a encherem-se de orgulho como se recebêssemos uma prenda, senão sentimo-nos humilhados como se nos dessem uma esmola.
Gosto do capelão, porque quer ajudar toda a gente, mas tenho pena dele porque não lhe prestam muita atenção. Ele devia aprender com as árvores a não ser intrometido.
– Tem alguma coisa que o incomode, senhor Sousa?
Ora, claro que tenho muita coisa que me incomoda, a começar pela escravidão das flores, como soldados a fazerem ordem unida, todos à uma. Mas ninguém pode resolver isto, isto é uma coisa que me começou na tropa, quando eu tinha que marcar passo.
– Deus pode resolver todos os problemas, senhor Sousa.
Ora, se pode está à espera de quê? Eu, ao menos, se pudesse libertava já as flores.
Em África, onde aprendi a entender as árvores, às vezes dava-me a impressão que um embondeiro chorava em silêncio.
Deixava de o ouvir sussurrar, e apenas o cacimbo escorria pelas folhas. Convenci-me que era devido aos tiros que dávamos. Via-nos sair de madrugada com as armas em punho e chegar pela noite com elas às costas; entretanto da selva chegavam-lhe os ecos da guerra.
Às vezes, sentava-me numa pedra junto ao tronco para o ajudar a chorar.
Se a minha filha vier visitar-me, falo-lhe de novo no problema.
Que eu tenho aqui o jornal.
Se ela é quase professora foi porque a ADFA andou com os papéis e eles lá em cima acabaram por se chegar à frente, pois dantes só diziam:
– Não há nexo de causalidade. Não há nexo de causalidade.
Que é como quem diz: "Você já nasceu cacimbado" – e a Etelvina só rezas e penitências – mas por fim lá concordaram que isto que eu tenho começou na tropa.
Que se não fosse pela minha filha eu estava-me borrifando – sempre é uma ajuda – mas agora é quase professora e hei-de convencê-la a resolver-me este problema. Não há-de ser o capelão.
A esta hora, quando as árvores contam pardais pelos dedos e se vestem de sombras para dormir, sinto-me muito só neste parque.
Às vezes queria ser capaz de chorar serenamente como um embondeiro onde se tenha calado a voz do vento.
O cacimbo a escorrer-me pelas folhas.
Só que na pedra a meu lado ninguém para me ajudar.

5.2.10

Menino Negro

Texto de António Marquês

Sentes nos pézitos
descalços
o chão ardente, o alcatrão
e os homens falsos.
Vês nos olhitos
abertos
os meninos brancos,
espertos,
de cabeleiras ao vento,
e tu, sem um
lamento,
pousas na tua fome.
Vagueias p'la noite
dentro, que te
consome,
e te faz sonhar
que outros
meninos,
brancos, rabinos,
estão a papar
Dormes no
chão
que o homem branco,
que é teu
irmão,
te ofereceu.
Olhas p'rá lua
pois não tens
tecto nem nada
teu.
Ao acordares
hás-de
pensar
que o teu irmão
que anda no mato
te há-de um dia
vir libertar.
Hás-de crescer
e o branco
ver
que é teu irmão
e vir até ti
pedir
perdão.
E nesse dia,
a liberdade,
que é um hino,
há-de ser tua,
negro-menino.

(c) António Marquês

Chipera, Moçambique, 4 de Julho de 1974

14.1.10

O Último Verão da Minha Inocência


Antes do alcatrão, o pó nas estradas e os pés das mulheres encortiçados ignorando as pedras. Eu olhando o meu mundo de criança rente ao chão; tudo visto de baixo para cima. A ouvir o restolho de uma cobra na erva, o sobressalto dos pássaros numa oliveira. A sentir a paciência das vinhas, quietas, a aguardarem que as uvas amadurecessem.
– Tudo a seu tempo.
A minha avó, especialista em paciência, compreendia as vinhas. Eu não: – Queria um cacho, vó.
– Tudo a seu tempo.
E eu desistia porque o Verão era longo.
Os adultos falavam de coisas estranhas. Falavam depressa de mais. E tinham sempre que fazer.
– Porque demoraste tanto Zé?
E o meu pai: – Fui abicar as couves.
Só o meu avô se deixava às vezes ficar a fingir que dormia a sesta. A fingir: porque a mão enxotava as moscas como o rabo do cavalo. De vez em quando o cavalo resfolegava, amarrado à velha figueira, com o saco de ração pendurado nas orelhas para não ter de dobrar o pescoço para comer, e o meu avô com o máximo de ternura que lhe conheci: – O que é? – E ele acalmava-se. O meu avô falava frequentemente com o cavalo. Não admira, passavam muito tempo juntos.
As moscas inquietas, e zás, a mão a enxotá-las de um lado e o rabo do cavalo a enxotá-las do outro. O zumbido das moscas a fazer-me sono. E o restolho da erva. O sobressalto das oliveiras. A paciência das vinhas.
Às vezes, sem eu contar, havia festa e toda a gente deixava de trabalhar. Tudo cheirava de modo diferente. Eram os mesmos cheiros, mas mais alegres. As mulheres aperreavam os pés encortiçados em sapatos enormes, só por uma questão de elegância, o que lhes dava um andar torturado, e os homens usavam com orgulho uma tira de pano pendurada ao pescoço, elevada à categoria de gravata, e um raminho de limonete atrás da orelha para dar um toque de classe. Então é que eu notava que mal se lavavam, que apenas se desenxovalhavam. Passavam uma água pelo corpo, tiravam a maior, mas o encardido ficava. A marca do castigo, da labuta, da tortura habitual do trabalho. Tão habitual que havia um certo desassossego nos dias de festa, como se os corpos habituados ao esforço se sentissem descontrolados sem o lastro pesado do trabalho.
As festas apanhavam-me sempre de surpresa. Num dia tudo tinha os mesmos vagares, e no outro tudo acordava eufórico, e, quando eu me habituava, lá voltava tudo inesperadamente à mesma rotina. Os cheiros acalmavam de novo, familiares de novo, como uma cama já afeita ao corpo.
O cheiro hormonal do cavalo, o cheiro nutritivo do estrume, o cheiro cáustico do lume, o cheiro acre da massa lêveda a fazer adivinhar o cheiro sem adjectivos supérfluos da boroa fresca.
Quando não fingia dormir o meu avô assobiava; só uma nota, incessante, distraída. Ele a olhar para um lado e as mãos a fazerem as coisas numa destreza mecânica para o outro. E o assobio sempre igual, só interrompido para tomar fôlego. Do outro lado da rua o Ti Zé Sécio batia, batia, assobiando também uma nota só. E o ferro gritava a cada marretada, e depois num arrepio cortante fazia ferver a água fria da pia ao lado da forja. Saía a chiar e sem fôlego daquela têmpera rude e o Ti Zé observava-o com minúcias de ourives, e às vezes insatisfeito reiniciava a tortura.
[...]
Ler o texto completo >aqui<

4.1.10

Dor Fantasma - Casa de Teatro de Sintra




Dor Fantasma
15 e 16 de Janeiro; às 21:30

Casa de Teatro de Sintra
Rua Veiga da Cunha 20 - Sintra
2710-627 SINTRA

PRODUÇÃO
Teatromosca - Teatro Focus

ACTORES
Susana Gaspar
Filipe Araújo

ENCENADOR
Mário Trigo

AUTOR
Manuel Bastos


Leia mais aqui


18.12.09

Mueda, a Palavra do Nosso Destino

TEXTO DE: António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503




Mueda - Edifício do Comando - foto de António Almeida


Mueda, escrita com “u”, transformou-se, com o tempo, numa palavra mítica e/ou mística, para quantos por lá passaram, algures no Norte de Moçambique.
Mas, na realidade, Mueda, para nós, passou a deter uma existência muito real e jamais essa realidade deixou de nos acompanhar pela vida fora.
A primeira vez que ouvi alguém referir-se a Mueda, foi no ano de 1968, na Universidade. Um colega que cumpria já o serviço militar, colocado em Lisboa nos Serviços de Informação do Exército, contou-me que das três frentes de guerra que Portugal mantinha, Angola, Guiné e Moçambique, aquela que causava maior número de baixas era a de Moçambique, devido à luta que se travava na região de Mueda.
E, foi exactamente na universidade que voltei, meses depois, a ouvir referenciar, de novo, a palavra Mueda. Era a época dos exames, em plena Crise de 1968/69, estava eu integrado num piquete de greve, procurando impedir o acesso às instalações onde deveriam decorrer as provas, daqueles que pretendiam furar a greve.
Entre estes havia um estudante, forçando a entrada, empurrando e gritando, juntamente com outros estudantes, quase todos trabalhadores-estudantes, dizendo que vinha de propósito de Mueda, onde exercia funções administrativas, para realizar aquele exame, e iria fazê-lo custasse o que custasse.
Só muito tempo depois haveria de escutar novamente alguém a referir-se a Mueda. Foi em Stª Margarida, já em 1973, onde me encontrava a preparar a minha companhia com destino já conhecido, Omar, em Moçambique. Apresentou-se para passar à disponibilidade um oficial, vindo de Moçambique, que foi alvo da curiosidade de todos os oficiais que se encontravam a formar o Batalhão, que já sabia destinar-se àquela região e, a minha companhia, já sabia que ia para um buraco chamado Omar. Às minhas interrogações disse que nunca havia estado lá, mas havia passado por Mueda, mais, tratava-se de uma zona de “porrada” mais ou menos permanente.
Alguns meses se passaram, a preparação da companhia com destino a Omar lá continuava, até que tive um acidente de automóvel quando me encontrava a gozar a licença de 10 dias de que todos beneficiávamos aquando da mobilização para a guerra. Fui hospitalizado e, de seguida, substituído no comando da companhia. Foi assim que disse adeus a Omar, sem nunca lá ter sequer chegado.
Esses militares partiram para África em Agosto de 1973 e, eu, por cá fiquei a guardar ordens e destino.
Cerca de dois meses depois, chegou a minha vez. Embarquei para Moçambique, também, sem conhecer o destino operacional. Fui em rendição individual.
Somente na cidade da Beira, em Moçambique, é que tomei conhecimento, através da “guia de marcha” respectiva, que o meu destino final era Mueda.
Já no avião, lá bem nos primeiros lugares, como calhava aos oficiais, encontrei alguns que regressavam de férias. Procurei obter alguma informação sobre a zona onde estaria esta Cart 3503. Somente um daqueles oficiais sabia que se tratava de uma companhia que estava sediada algures “lá para cima”.
Fiquei, desde logo, a saber que a referência “lá para cima”, significava zona de “porrada”. Mas, na prática, fiquei a conhecer o mesmo que já sabia, isto é, nada de concreto sobre o meu verdadeiro destino.
A chegada a Nampula aconteceu já de noite. Só no dia seguinte, no bar da messe de oficiais, viria a tomar conhecimento, através de quem bem a conhecia, a zona que me foi atribuída.
Foi aí, em Nampula, que conheci o primeiro militar da 3503, nada mais, nada menos, que o, então, alferes Silvestre, que se encontrava no hospital, a quem ouvi, pela primeira vez, referências sustentadas acerca da companhia que me fora destinada na Beira.
Praticamente ao mesmo tempo, encontrava-se na messe um capitão, também com baixa no hospital, o Franklim. A sua reacção, quando se apercebeu que eu iria para Mueda, e para a Cart 3503, começou, quase gritando, “fuja homem, fuja!”, conheço muito bem o buraco para onde o estão a enviar.
Já de posse de alguns dados, transmitidos pelo Silvestre, lá parti para Porto Amélia, última etapa, antes de rumar a Mueda.
Em Porto Amélia, enquanto aguardava transporte para percorrer a última etapa desta viagem, conheci, na messe, um alferes que estava em Mueda, o Raul Carregoso, responsável pelo material auto do Batalhão. Como é evidente, fiquei a conhecer mais alguns pormenores acerca do local do meu destino.
Passados uns dois dias foi o embarque com destino a Mueda.
Finalmente a chegada à “terra prometida”.

Lisboa, 24.09.2009

TEXTO DE: António Pereira de Almeida, último capitão da CART 3503

7.12.09

O Inconveniente da Inteligência

Leia o texto completo aqui


Sofia é uma mulher feliz. Olha-se ao espelho. O cabelo em desalinho. Deixa cair na cama de novo, o corpo ainda dormente de prazer. O chuveiro na casa de banho imita a chuva de verão na varanda, e Sofia deixa os pensamentos soltos fluírem à toa, como fotografias atiradas à sorte para cima de uma mesa.
O homem que toma banho em silêncio, só o fervilhar do chuveiro a competir com a chuva, penetra na sua vida quase só tangencialmente, como uma flecha de luz que a ilumina e aquece mas que continua o seu percurso deixando-a sempre como estava antes de chegar. As vidas de ambos têm muitos momentos de contacto como este, mas não se fundem uma na outra, são a água e o azeite, eternos símbolos das uniões imperfeitas, mas se isso às vezes lhe deixa um travo de incompletude, outras vezes como agora, dá-lhe um perverso prazer. Ele vai sair primeiro, ela depois, como se não tivessem nada em comum. É esse ludíbrio que faz desta sua relação um segredo delicioso. Apenas uma sombra cúmplice atrás da cortina de renda do segundo esquerdo. Depois a cortina ondula e a sombra desaparece.

[...]
– Mas tu lutaste pela sobrevivência, mataste para não morrer.
– Não percebes nada do que estás a falar. Sabes… o melhor soldado não é aquele que luta por um ideal, nem o que luta para sobreviver, o melhor soldado é aquele que luta sabendo que vai morrer. Não é a esperança que faz um soldado matar, é o desespero.
As guerras não têm estética possível, porque só têm um lado: o lado abjecto da chacina.
A cor quente do sangue a destoar na frescura verde da paisagem. O terror a desequilibrar a excessiva harmonia do rosto dos inocentes que nos olham antes de morrer à procura de um resíduo de humanidade.
Tragicamente belo não é? No fim da ópera o público abandona a sala e regressa ao ócio dos salões; no fim do romance fecha-se o livro e regressa-se ao conforto do sofá; no fim do filme desliga-se a televisão e toda a tragédia vai para onde foram os nossos pesadelos de infância ao acordarmos em conforto e segurança na cama dos nossos pais; mas, e se não tivermos como desligar os nossos pesadelos? E se a nossa história for o monstro que temos fechado na cave da nossa própria casa, enquanto tentamos dormir em paz no quarto por cima dele? Pior: esse monstro é a parte de nós que já morreu, à espera que abram o alçapão, para vir tomar posse do que resta de nós.
Procurou de novo o tabaco nos bolsos, como se não tivessem passado dez anos desde que deixara de fumar, como se uma parte de si que tivesse morrido numa guerra antiga tivesse vindo tomar posse do seu corpo.
[...]

Leia o texto completo aqui

16.11.09

DOR FANTASMA - PORTO


Dor Fantasma - 20 e 21 de Novembro - Estúdio Zero – Porto
Cedofeita R Vanzeleres 146,

PRODUÇÃO
Teatromosca - Teatro Focus

ACTORES
Susana Gaspar
Filipe Araújo


ENCENADOR
Mário Trigo

Fundador e Director Artístico da Associação Cultural Teatro Focus.
As suas encenações têm merecido a aclamação da crítica, pelo rigor, coerência e qualidade.

Levou à cena um ciclo sobre a Guerra Colonial composto pelos seguintes espectáculos:

2002 - Infa 72 - Teatro Taborda
2004 - Violeta - Puta de Guerra - Sala-Estúdio do Teatro da Trindade
2006 - Companhia de Caçadores - Casa dos Dias da Água, em Lisboa



AUTOR
Manuel Bastos


Um livro só está terminado quando é lido. Quem escreve deixa apenas que as palavras passem por si, e anota-as evitando que sejam perdidas, mas é o leitor que faz acontecer o livro e, de entre todos os leitores, os actores que têm o especial sortilégio de lhe dar vida.
Palavras com vida. Palavras com voz, rosto e gesto, onde os sentimentos voltam a ser desfrutados e sofridos.

O gesto, o rosto e a voz são do actor Filipe Araújo e da actriz Susana Gaspar, que voltam a sentir a dor: a dor da ferida para além do golpe, a dor da amputação para além do corpo, a dor do trauma para além da memória. A dor fantasma.





7.10.09

Aniversário - 6 anos

Aniversário do Cacimbo (2-11-2003 – 2-11-2009) 6 anos

Parabéns para mim… Nesta data querida…




Em Novembro o Cacimbo faz 6 anos (vide primeiro post >aqui<). Merece parabéns e já está em idade de frequentar a primária para aprender a escrever.


Em Novembro o seu autor vai ser "presenteado" pela CGA com o Suplemento Especial de Pensão atribuído aos antigos combatentes, que por motivos pessoais se recusa a usufruir e que decidiu entregar a uma ONG até descobrir uma forma de o fazer chegar seguramente a quem gostaria que dele usufruísse: as crianças de Mueda onde combateu.

Exorto daqui todos os meus irmãos de armas a fazerem o mesmo, nem que para isso tenhamos que criar uma associação.


A todos os visitantes deste blog, continuo a oferecer palavras apenas.


Mas é isto que sou aqui: palavras apenas; as imagens e sons apanham apenas boleia com as palavras. Mas não vos dou nada meu, que as palavras não têm dono. Eu sou apenas um apanhador de palavras. Apanho-as por aí e depois junto-as, tentando desenhar com elas o imponderável corpo dos sentimentos.


Mas não se iludam, nada do que digo é verdade. A Verdade é uma palavra prostituída; juntamente com o Amor, vendem-se por aí a quem prometer mais. O que digo é apenas o que ficou dentro de mim depois de excluídos todos os dados concretos que aproximariam demasiado as minhas palavras dos factos ocorridos e das pessoas envolvidas. É a recriação possível, depois de eu ter esquecido a verdade. São palavras. Palavras mentirosas, que inventam sentimentos e paixões, dores e alegrias, situações e atmosferas; mas, porque não são dirigidas à razão do leitor mas à sua emoção, são um convite à sua cumplicidade para o honesto embuste da ficção literária.


Sei porém, que não fui bem sucedido; às vezes a verdade espreita por entre a invenção que são as minhas palavras. Traz com ela, nomes, lugares e factos que e eu não tenho coragem de expulsar. É a prova que ainda não superei completamente as experiências que vivi, e não criei a distanciação que o cronista deve manter da ocorrência histórica, para ser isento. Mas, isento porquê, se assumidamente falo de mim? Assim, inventando, reinventando, cedendo à crueza dos factos, mais não faço do que a catarse de um paciente na poltrona de um psicoterapeuta, a que acrescento a ingénua ilusão de que isso pode divertir alguém.


Alguém há-de ter divertido, a julgar pelo número de visitantes que diariamente procuram este blog, muitas vezes ultrapassando a meia centena, mesmo excluindo os chamados blammers que buscam apenas o clique de retorno que nos leve a visitar os seus próprios espaços na Internet. Tendo em conta que aqui encontram apenas palavras escritas, é verdadeiramente surpreendente e encorajador, tanto mais que o texto escrito e o monitor de um PC ainda não são um casamento feliz.



Convido-vos a um pequeno passeio por este blog para visitarem algumas das emoções feitas de palavras:


- Stress de Guerra - A Visita
-------------------- Saudades de Azul
- Homenagem às Enf. Paras - A Enfermeira que Vinha do Céu
- O prazer da palavra escrita - A Carta
- Tentar a poesia - 100 Versos do Mato
- Memórias de Aguim - O Voo da Calhandra
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29.9.09

A Persistência da Dor

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No chão da gare da Curia a minha sombra imita um flamingo enquanto eu me equilibro pondo a perna amputada sobre a canadiana, de modo a usar ambas as mãos para acender o cigarro.
As pessoas passam por mim e abrandam a voz como se faz quando somos surpreendidos a meio de uma conversa por uma visão inesperada.
Algumas a olharem para trás, depois de passarem.
Uma folha d' O Século que o vento não consegue descolar do chão. Levanta-lhe uma ponta, fá-la ondular mas ela não sai dali. E, vinda não sei de onde, uma canção dos Procol Harum: Saltitávamos o alegre fandango, Fazíamos cabriolas pelo chão; Eu sentia-me um pouco enjoado Mas as pessoas pediam mais…
O vento a brincar com o jornal. Uma velhinha a descer da carruagem. As pessoas impacientes à espera que ela desimpeça o caminho. E a canção com sonoridades barrocas e letra psicadélica: Quando a moleira contou a sua história O rosto dela, a princípio só assombrado, Ficou branco como a cal da parede…
A velhinha a aproximar-se de mim olhando para a minha mochila no chão como quem vem em meu auxílio, e eu, num movimento que lhe deve ter parecido acrobático, rodo sobre o único pé, pego com ambas as mãos na mochila, as canadianas presas aos braços pelos apoios, volto a rodar em sentido contrário, e depois de encaixar a mochila às costas passo por ela sem pudor, ignorando a crueldade da minha exibição. Olho para trás e vejo-a tristíssima a ver-me a afastar, andando duas vezes mais rápido do que ela. Daria decerto uma perna para ter a minha idade e o meu vigor. Abrandei a marcha envergonhado, como se por andar mais lentamente agora, eu pudesse diminuir o meu sentimento de culpa.

[...]
Que longas que são as viagens que têm uma guerra pelo meio. A torre da capela de Aguim apareceu ao longe na paisagem como um embuçado em pleno dia, e ao fundo o dorso da Serra do Buçaco tão esbatido que mal se distinguia do céu. Se fosse eu a pintar aquele quadro, punha um pouco mais de terra-de-sena para que um tom quase imperceptível de púrpura criasse a ilusão da distância; assim parecia que estava tudo no mesmo plano, e a torre branca da capela da N.ª Sr.ª do Ó parecia pintada sobre um papel de cenário.
Agora estamos finalmente sós na gare da estação da Curia: eu à espera que venha um táxi, e a folha de jornal que o vento não consegue tirar dali.
[...]

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