26.1.16

Dezembro

Gosto de estar assim sentado no carro a ver o Outono, um Outono que persiste pelo Inverno dentro indiferente ao calendário.
No Espírito Santo há uma pequena praça onde agora as folhas dos plátanos decoram o chão e um bando de pombas esvoaçando decoram o céu. Só as decorações pindéricas de Natal não decoram nada; causam o efeito de um bigode pintado a marcador no rosto da Gioconda.
Alguns idosos dão uso aos bancos quase sempre vazios e um grupo de crianças torna útil a superfície lajeada que sem eles parece servir apenas para não sujar os sapatos com o bom chão.
Se um alienígena parasse aqui por minutos pensaria que este nosso mundo é composto apenas por idosos e crianças – às vezes passa um jovem apressado, como um estrangeiro num país hostil, de fones nos ouvidos. Não concebem a vida sem uma permanente banda sonora, e não satisfeitos por se isolarem uns dos outros em casa, vêm isolar-se uns dos outros também para a rua. Prisioneiros do entretenimento permanente, vivem de cabrestos acústicos nas orelhas, moucos para o mundo.
Acho que envelheci por distração, porque não me lembro de quando deixei de criticar os hábitos estúpidos dos adultos para embirrar com os hábitos estúpidos dos jovens.
O sino da igreja transformou por instantes este recinto urbano num recanto rural, depois calou-se, e a urbanidade pousou de novo sobre todas as coisas.
Gosto de estar assim como um espetador fotografando tudo com os olhos, não mais que fotografando, não mais do que com os olhos; as pessoas passam ou estão sentadas, que diferença faz? As crianças brincam e os pássaros voam, as árvores preparam-se para o inverno que tarda. Tentar entender isto seria estúpido, porque a Natureza não tem propósitos. Porém, as decorações de Natal têm. Estão ali para o caso de termos saído à rua sem nos lembrarmos de vestir a efémera bonomia da quadra, mas depois das festas, retiram as decorações e podemos voltar sossegados ao nosso impiedoso individualismo sem sermos distraídos.
Passa uma mulher com uma saia muito curta e a cada dois passos puxa-a para baixo, realçando a longitude provocatória das pernas. A praça parece mais iluminada. Eu sinto um friozinho na barriga, uma pequena vertigem libidinosa; e em todo o dia não me lembro de ter estado mais perto da felicidade.
Amo as coisas insignificantes, como folhas caídas, voos de pomba e nudez de pernas de mulher, mas não quero guardar nada porque o que verdadeiramente amo é a efemeridade das coisas. São preciosas porque não duram muito. Haja o que houver tudo acabará, e outra coisa, igualmente perecível, tomará o seu lugar.
O próprio Sol, como todas as estrelas, extinguir-se-á; só durará mais uns milhõezitos de anos, mas antes dilatar-se-á e esturricará a Terra, e se entretanto a humanidade arranjar forma de viajar à velocidade da luz para fugir a esse dilúvio de fogo, terá que viajar alguns biliões de anos para fugir depois à colisão entre a Via Láctea e a Andrómeda, e desse terramoto galáctico não ficará nem uma sombra da memória de tudo isto.
E então deus deixará de ser amado porque não sobreviverá ninguém para acreditar nele.
Nada há mais precioso e real do que estarmos aqui e termos consciência, mesmo que por pouco tempo. Sentir e pensar, fruir e criar.
É uma grande presunção esta, achar que criamos alguma coisa, que acrescentamos à existência algo que não existia antes, seja um desenho, seja uma epopeia; quando não fazemos mais do que dispor de outra forma o que já existia, isto é, apenas nos divertimos mudando as coisas de lugar; é como redecorar a casa com os mesmos móveis. Móveis, sons, formas ou palavras; ou os desenhos casuais das pombas no cinzento do céu, tem tudo o mesmo valor – nós a mais do que as pombas só temos consciência disso.
Amar a vida é amar tudo sem fazer juízos de valor. Amar tudo, sem o imperativo de temermos a deus.
Deus, o Inconcebível.
Deslumbro-me com a Sua impossibilidade conceptual. Um ente sem tempo nem lugar para existir antes de criar o mundo, ou então coevo da sua criação: criador e criatura.
Fascina-me a ideia magnífica que tivemos ao concebe-Lo, e depois exíguos, ínfimos e perecíveis amarmo-Lo assim incógnito e transcendente.
Tão incrível como sermos nós um mito criado e depois venerado pelas bactérias que vivem no nosso intestino.
Amo tudo sem a desculpa de deus. Amo os bancos da praça aguardando que os velhos se sentem neles e a bola correndo à frente das crianças, amo os desenhos efémeros e aleatórios que as pombas criam sobre a tela do céu e a saia curta da mulher. Também amo os velhos, as crianças, as pombas e as pernas da mulher, mas menos.
Uma mão bate com os nós dos dedos no vidro da porta do carro. Agarrado a essa mão está um polícia.
- Algum problema senhor polícia?
- Boa tarde! O senhor está estacionado num lugar para automóveis elétricos.
- Estacionei aqui porque não há lugares para deficientes e porque não há carros elétricos para estacionar aqui. Se aparecer algum eu saio.
- Se não vai abandonar o veículo tudo bem.
Também amo a autoridade tolerante dos polícias como amo a aleatoriedade do mundo. Estou aqui estacionado porque um agente da autoridade não levou muito a sério o Código da Estrada e continuo vivendo porque a Natureza não é muito rigorosa a aplicar a seleção natural.
A mulher da saia curta regressa, puxando sempre a saia para baixo; dir-se-ia que não quer mostrar as pernas. Ao lado dela caminha agora outra mulher de saia comprida e botas altas. Parece faltar-lhe qualquer coisa.
Param e olham para trás. Chamam uma menina, que corre para elas. A mulher a que parece faltar qualquer coisa pega na menina ao colo, e atravessam a estrada, desaparecendo na Luís Gonzaga.
A praça parece agora menos interessante, embora os bancos, a bola e os desenhos das pombas sejam os mesmos. Mas falta a iluminura de umas pernas desnudas de mulher.
Passa um cão a correr.
Nesta praça nada me conhece, nada me quer conhecer, as coisas fazem parte deste conjunto sem vontade, emoção ou afeto; estas ou outras não alterariam o caos do universo. Só nós escolhemos os objetos das nossas relações.
Nem um só rosto conhecido à vista. Um rosto amigo que apareça no meio de desconhecidos é o correspondente humano da madrugada.
Um homem pode viver uma vida inteira sem essa revelação, sem uns olhos em que se veja e sem uns ouvidos a quem entregue os seus segredos cansados de silêncio.
Uma ambulância passa a gritar na Circular do Hospital e não parece afligir ninguém, por aqui só o cão levantou as orelhas. Uma desgraça distante pode ser ignorada mais comodamente, como se a distância a que acontecem as coisas mudasse a sua importância. Tudo serve para justificar a nossa falta de altruísmo, como se cada ato de egoísmo se justificasse com a luta pela sobrevivência.
As pombas pousaram no meio da praça, as crianças recolheram a bola, os velhos começam a sentir frio e a ir-se embora e por entre desconhecidos vejo a minha filha que regressa da aula de condução. E o mundo realiza-se perante mim com uma consistência sólida e consequente, ganhando humanidade à medida que o espaço em meu redor me acolhe como a um familiar.

As pombas levantam voo de novo e os seus desenhos no céu revelam-me quase impercetíveis formas fractais.
Se calhar a aleatoriedade é só uma organização de padrões de que ainda não conhecemos os códigos.
E a mulher da saia curta volta mais uma vez a passar à minha frente, e eu sorrio feliz.

Para eficientes visuais ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódiosaqui

1 comentário:

Fernando Ribeiro disse...

Caro Manuel Correia de Bastos,

Saúdo o seu regresso às hostes bloguísticas. Bem-vindo. Eu já tinha perdido a esperança de voltar a encontrá-lo por aqui. Não sei se tem colaborado na revista Elo (suponho que sim) mas, como não sou membro da ADFA (tive a sorte de regressar de Angola inteiro), nem me lembro da existência dessa revista. Não nos conhecemos pessoalmente, mas estou a escrever este comentário para que saiba que deste lado há pelo menos uma pessoa que gosta muito do que escreve e do modo como escreve. O que debita aqui neste seu blog não cai em saco roto.

Um abraço e desejos de que «a Natureza continue a não ser muito rigorosa a aplicar a Seleção natural» por muito mais tempo.

Fernando Ribeiro