Na minha
memória a imagem obsessiva de um navio deixando o cais. Nunca vai a lado nenhum,
é uma eterna partida. O seu rasto de caracol sobre as águas. O seu rasto brilhando
ao sol. E eu vou lá dentro. Eu a ver o cais cheio de lenços esvoaçando adeuses.
As gaivotas paradas no ar, voando contra o vento.
Eu levo um barco
na minha memória, e o barco leva-me a mim, que o levo a ele. Eu e o barco no abismo
infinito de dois espelhos frente a frente mutuamente espelhando-se.
Com o tempo,
o barco esbate-se na minha memória, como os sonhos ao acordarmos. A vigília faz
perder lucidez aos sonhos, o tempo apaga as lembranças da memória; o que resta
afinal do que vivemos?
Mas se nos lembrássemos
de tudo, não teríamos tempo para viver.
O barco
deixou de navegar e foi já desmantelado. Dele resta agora apenas esta imagem
imprecisa que guardo.
O tempo devora
tudo. Dor e gozo, afetos e ódios têm o mesmo valor para a voracidade do tempo. Num
dia acaba o barco, noutro dia apaga-se a sua imagem sobreviva em mim, depois acabo
eu, o planeta… e o universo onde, num pestanejar do tempo, tudo isto aconteceu.
Mas hoje
ainda existe muita coisa na minha memória e, porque a memória dos homens é o lugar
para onde vão os barcos quando morrem, um barco que já não existe navega, navega
em mim, mas nunca desaparece, como se fosse a navegar em vão contra a corrente.
No convés,
já não soldados, apenas sombras. Talvez as sombras que dantes iam dentro dos
soldados, que tudo o que um soldado leva dentro de si para a guerra são
sombras.
Vão salvar o
império, mãe.
Há coisas
que só existem na memória. Coisas que eram num tempo que já não é. E coisas que
nunca foram como as lembramos. A minha memória guarda só o que quer, e o que
guarda, retoca e corrige. As minhas lembranças são plágios da realidade
interpretados ao gosto da minha memória.
Lembro-me de
ter a certeza de não haver diferença entre o teu corpo e a imagem dele no meu
pensamento. Cabia à justa no meu desejo.
Quando chegavas,
um brilho trémulo nos teus olhos, fazendo lembrar a ansiedade na véspera das grandes
viagens. Logo depois, as nossas mãos aflitas em afagos de brisa fresca sobre o
areal escaldante.
As pessoas
que não entendem de afetos perguntam às vezes se somos felizes ainda. Coitadas,
não sabem que o amor é uma coisa da memória. O amor é um barco sempre abandonando
o cais, sem ir a lado nenhum, porque amar é um despropósito. O amor com um
propósito é como casamento por conveniência. Além disso, “ainda” e “amor” são duas
palavras que não vão bem juntas, porque amar é um verbo que só se conjuga no
presente mais que perfeito.
As coisas
todas, antes de serem devoradas pelo tempo, são constantemente transformadas
noutras; constante só o que sentimos por elas, porque o amor é irreversível,
ama-se uma coisa e essa coisa fica amada para sempre. Nunca deixamos de amar
quem amamos, quem amamos é que às vezes deixa de ser quem era, ou esbateu-se em
nós a memória de ter sido.
Muda o
mundo, e muda o mundo dentro de nós, mas acreditamos na coerência da nossa memória,
porque precisamos de uma narrativa que dê sentido à vida.
Não sei já
muito bem como foi quando o Niassa partiu. O rasto de espuma sobre as águas do
Tejo, os lenços em Alcântara como asas de gaivotas sentadas no vento e a sombra
dentro do peito a ouvir a morte ao longe a chamar por nós. Volto já mãe.
E depois, quando
voltamos, somos apenas uma lembrança incompleta de nós, porque os sonhos são
sempre maiores que a realidade, e os pesadelos também. Pobres daqueles que
realizam os seus sonhos; concretizar um sonho é cortar as asas a uma ave. Há
coisas que não se podem apear porque pertencem aos céus. Porém, os pesadelos, concretizamo-los
muitas vezes, porque os pesadelos não voam, são do chão.
O som do
helicóptero a bater no ar. Os ouvidos ainda a apitar da explosão.
E numa vertigem,
o regresso a casa. A insuportável dolência da paz. Só a silhueta em forma de
seio de mulher da serra do Buçaco a despertar-me os sentidos. O eco dos tiros a
desaparecerem a pouco e pouco.
Depois do último
tiro há sempre alguém que pergunta quem ganhou a guerra. Mas quem ganha uma
guerra, ganha o quê, se só resta destruição? Só quem nunca combateu é que quer
saber quem ganhou a guerra.
De todos os
erros humanos, a guerra é aquele que mais viola impunemente todas as conquistas
da humanidade, e só é possível porque criámos deus para arcar com as responsabilidades.
Deus é o perfeito bode expiatório dos erros humanos porque é uma invenção
humana, e, assim, a absoluta inocência perante os crimes que cometemos.
O barco navegando
miragens, a despropósito como o amor, é o esforço da minha memória para corrigir
a História. Há barcos que nunca deveriam largar do cais, porque há viagens cujos
destinos nunca permitem regresso digno.
Fui, mãe,
salvar o império, e fiquei lá. Eu, que voltei, sou outro.
3 comentários:
Feliz por mais um belo texto a que nos habituou, principalmente a nós antigos combatentes.
Conheci bem Mueda. a picada até ao Sagal e até a Mocimboa da Praia.
De 69/ 70 meu aquartelamento foi no Sagal.
Já estranhava a ausência de textos desde 2018.Nunca desista, os nossos fantasmas nunca nos largarão.
Um alferes miliciano
C.Duarte
Um abraço de agradecimento pelas suas palavras. Volte sempre que a guerra nunca esquece a quem combateu.
Leitura obrigatória! Continua caro Amigo Manuel Bastos. Forte abraço.
José D'Abranches Leitão
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