20.1.20

Uma coisa da memória.


Na minha memória a imagem obsessiva de um navio deixando o cais. Nunca vai a lado nenhum, é uma eterna partida. O seu rasto de caracol sobre as águas. O seu rasto brilhando ao sol. E eu vou lá dentro. Eu a ver o cais cheio de lenços esvoaçando adeuses. As gaivotas paradas no ar, voando contra o vento.
Adeus mãe, que eu vou salvar o império e volto já.

Eu levo um barco na minha memória, e o barco leva-me a mim, que o levo a ele. Eu e o barco no abismo infinito de dois espelhos frente a frente mutuamente espelhando-se.
Com o tempo, o barco esbate-se na minha memória, como os sonhos ao acordarmos. A vigília faz perder lucidez aos sonhos, o tempo apaga as lembranças da memória; o que resta afinal do que vivemos?
Mas se nos lembrássemos de tudo, não teríamos tempo para viver.
O barco deixou de navegar e foi já desmantelado. Dele resta agora apenas esta imagem imprecisa que guardo.
O tempo devora tudo. Dor e gozo, afetos e ódios têm o mesmo valor para a voracidade do tempo. Num dia acaba o barco, noutro dia apaga-se a sua imagem sobreviva em mim, depois acabo eu, o planeta… e o universo onde, num pestanejar do tempo, tudo isto aconteceu.
Mas hoje ainda existe muita coisa na minha memória e, porque a memória dos homens é o lugar para onde vão os barcos quando morrem, um barco que já não existe navega, navega em mim, mas nunca desaparece, como se fosse a navegar em vão contra a corrente.
No convés, já não soldados, apenas sombras. Talvez as sombras que dantes iam dentro dos soldados, que tudo o que um soldado leva dentro de si para a guerra são sombras.
Vão salvar o império, mãe.
Há coisas que só existem na memória. Coisas que eram num tempo que já não é. E coisas que nunca foram como as lembramos. A minha memória guarda só o que quer, e o que guarda, retoca e corrige. As minhas lembranças são plágios da realidade interpretados ao gosto da minha memória.
Lembro-me de ter a certeza de não haver diferença entre o teu corpo e a imagem dele no meu pensamento. Cabia à justa no meu desejo.
Quando chegavas, um brilho trémulo nos teus olhos, fazendo lembrar a ansiedade na véspera das grandes viagens. Logo depois, as nossas mãos aflitas em afagos de brisa fresca sobre o areal escaldante.
As pessoas que não entendem de afetos perguntam às vezes se somos felizes ainda. Coitadas, não sabem que o amor é uma coisa da memória. O amor é um barco sempre abandonando o cais, sem ir a lado nenhum, porque amar é um despropósito. O amor com um propósito é como casamento por conveniência. Além disso, “ainda” e “amor” são duas palavras que não vão bem juntas, porque amar é um verbo que só se conjuga no presente mais que perfeito.
As coisas todas, antes de serem devoradas pelo tempo, são constantemente transformadas noutras; constante só o que sentimos por elas, porque o amor é irreversível, ama-se uma coisa e essa coisa fica amada para sempre. Nunca deixamos de amar quem amamos, quem amamos é que às vezes deixa de ser quem era, ou esbateu-se em nós a memória de ter sido.
Muda o mundo, e muda o mundo dentro de nós, mas acreditamos na coerência da nossa memória, porque precisamos de uma narrativa que dê sentido à vida.
Não sei já muito bem como foi quando o Niassa partiu. O rasto de espuma sobre as águas do Tejo, os lenços em Alcântara como asas de gaivotas sentadas no vento e a sombra dentro do peito a ouvir a morte ao longe a chamar por nós. Volto já mãe.
E depois, quando voltamos, somos apenas uma lembrança incompleta de nós, porque os sonhos são sempre maiores que a realidade, e os pesadelos também. Pobres daqueles que realizam os seus sonhos; concretizar um sonho é cortar as asas a uma ave. Há coisas que não se podem apear porque pertencem aos céus. Porém, os pesadelos, concretizamo-los muitas vezes, porque os pesadelos não voam, são do chão.

O som do helicóptero a bater no ar. Os ouvidos ainda a apitar da explosão.
E numa vertigem, o regresso a casa. A insuportável dolência da paz. Só a silhueta em forma de seio de mulher da serra do Buçaco a despertar-me os sentidos. O eco dos tiros a desaparecerem a pouco e pouco.
Depois do último tiro há sempre alguém que pergunta quem ganhou a guerra. Mas quem ganha uma guerra, ganha o quê, se só resta destruição? Só quem nunca combateu é que quer saber quem ganhou a guerra.
De todos os erros humanos, a guerra é aquele que mais viola impunemente todas as conquistas da humanidade, e só é possível porque criámos deus para arcar com as responsabilidades. Deus é o perfeito bode expiatório dos erros humanos porque é uma invenção humana, e, assim, a absoluta inocência perante os crimes que cometemos.

O barco navegando miragens, a despropósito como o amor, é o esforço da minha memória para corrigir a História. Há barcos que nunca deveriam largar do cais, porque há viagens cujos destinos nunca permitem regresso digno.
Fui, mãe, salvar o império, e fiquei lá. Eu, que voltei, sou outro.

3 comentários:

Costa Duarte disse...

Feliz por mais um belo texto a que nos habituou, principalmente a nós antigos combatentes.

Conheci bem Mueda. a picada até ao Sagal e até a Mocimboa da Praia.
De 69/ 70 meu aquartelamento foi no Sagal.

Já estranhava a ausência de textos desde 2018.Nunca desista, os nossos fantasmas nunca nos largarão.

Um alferes miliciano
C.Duarte

mcbastos disse...

Um abraço de agradecimento pelas suas palavras. Volte sempre que a guerra nunca esquece a quem combateu.

Sangue...Suor e Lágrimas disse...

Leitura obrigatória! Continua caro Amigo Manuel Bastos. Forte abraço.
José D'Abranches Leitão