Esqueci-me do meu pé esquerdo. Sei
que era como o direito mas ao contrário. Não me lembro muito bem, mas acho que
não era um pé muito especial, porque para além de andar e correr, não me servia
de mais grande coisa. Bem vistas as coisas, para o futebol eu tinha até dois
pés esquerdos, era, por assim dizer, ambissinistro. Mas dava-me muito jeito
para nadar. O meu amigo Vasco acompanhava-me de barbatanas na dobragem do
paredão Sul da barra de Aveiro e ria-se do meu estilo pouco ortodoxo, um misto
de crawl e bruços, mas não me levava vantagem por muito tempo.

Para um
espírito otimista, alguma coisa de bom haveria de ter um pé de metal, mas eu
ainda não descobri nenhuma, mesmo quando o cão de um vizinho me tentou ferrar.
Eu ofereci-lhe a prótese, mas o faro do bicho tramou-me.
No dia de
Páscoa de 1972 tiraram-me uma fotografia em Mueda, onde ele aparece pela última
vez, muito sossegado ao lado do seu irmão direito. Alguns meses depois pisou o
chão de África pela última vez, despedindo-se deste mundo com muito estrondo,
tanto quanto seria possível com o quarto de quilo de trotil de uma mina antipessoal,
tendo acabado aí a sua missão de me transportar a meias com o seu irmão simétrico.
Para ser
justo, não poderei subestimar as suas qualidades, tanto mais que as várias
tentativas para o substituir condignamente falharam redondamente, a começar
pelo trambolho tosco e mal-amanhado que rematava a perna de pau desequilibrada
e rudimentar com que os nossos parceiros alemães da NATO queriam que eu
voltasse a caminhar. Vim da Alemanha com um objeto de tortura medieval que deve
ter chegado para espiar os meus mais escabrosos pecados. Tanto os já cometidos
como os que eu venha a cometer até ao dia do juízo final.
Os meus
netos parecem achar interessante que o avô se pareça com o cyborg dos seus
jogos de vídeo quando anda de calções, e pensam que deve ter sido um ato de
guerra heroico que esteve na origem da minha amputação. Aqui nasceu uma dificuldade
didática, porque na verdade eu dei o que dão os heróis quando combati na guerra
colonial, só que uma guerra é talvez o lugar menos provável para se praticar atos
heroicos, e numa guerra criminosa como esta, se não tivermos muito cuidado arriscamo-nos
até a cometer crimes.
Como se
explica a uma criança da geração do Google que isso foi possível apenas por desinformação?
E que o país onde a chateiam para aprender imensas coisas, é o mesmo país onde
um dia a ignorância era obrigatória, onde as escolas tinham um livro único e os
jornais um lápis azul para os ignorantes riscarem as coisas ditas por pessoas inteligentes.
É tão
difícil explicar uma coisa estúpida a uma criança inteligente como uma coisa inteligente
a um adulto estúpido.
Antes de eu
partir para a guerra, a minha mãe parece que fez um contrato com a Nossa Senhora
de Fátima para garantir que eu viesse de lá são e salvo, cujo compromisso da sua
parte era ir a pé de Aguim até à Cova da Iria todos os anos. Nunca percebi o
que ganhava a santa com aquilo, mas desconfiei sempre que se tratava de uma
tara originada pela vida sensaborona de uma virgindade eterna. Além disso, pareceu-me
que tendo vindo eu sem um pé, a minha mãe não deveria pagar a promessa por
inteiro, mas não consegui convencê-la a ir a pé, digamos, até Coimbra apenas.
Um dia, no
verão de 1965, na praia da Costa Nova, a Marisa sentou-se mesmo em cima do meu
pé esquerdo. Com o peso da Marisa o meu pé esquerdo enterrou-se na areia e ela
esteve bem meia hora naquela posição sem dar por nada. Passado um quarto de
hora sem me mexer, para sentir todas as delícias da região sagrada da anatomia
da Marisa, o meu pé esquerdo ficou dormente, depois acabou por ficar totalmente
insensível. Foi a primeira vez que o meu pé esquerdo sofreu uma amputação,
ainda que virtual, mas aquele primeiro quarto de hora teve os melhores 15 minutos
que o meu pé esquerdo viveu.
No inverno
de 1971, na casa de banho comunitária do quartel das Caldas da Rainha, o meu pé
esquerdo, e apenas o meu pé esquerdo, desenvolveu uma infeção fúngica. O Capitão
médico do quartel, num relance, garantiu com ar categórico - É pé de atleta! Soou-me,
assim de repente, mais a uma distinção desportiva do que a um diagnóstico
médico. O pior é que durante o resto da minha vida de militar vi-me obrigado a
introduzir um gesto extra em todos os exercícios físicos: coçar o pé de atleta.
Esse martírio
só terminou na picada do Chindorilho, na província de Cabo Delgado da colónia
de Moçambique, exatamente às 14 horas e 12 minutos do dia 4 de Junho de 1972. Nem
o antifúngico do capitão médico, nem as pomadas de todos os enfermeiros do meu batalhão
resolveram o problema, só a mina antipessoal da FRELIMO lhe pôs fim.
Este
desfecho fatal aconteceu ao meu pé esquerdo porque eu acreditei que era um
dever humanitário ir matar terroristas para África e salvar o império. Pelo
menos foi assim que eu entendi as coisas.
Sempre que precisam
de mandar soldados matar alguém, convém convencê-los que são terroristas; e quando
os professores, os livros e a imprensa dizem em coro que são terroristas, a
gente acredita, não é verdade? O pior é quando se descobre que os terroristas são
demasiado parecidos connosco, ou que estamos a rematar para a baliza errada. Cria-se-nos
a confusão mental típica de quem aparece por engano num funeral vestido com uma
fantasia de carnaval. Alguém se aproveitou da nossa ignorância, e o pior é que também
nos mantiveram ignorantes compulsivamente desde início, para melhor se aproveitarem
de nós.
Se isto não
é abuso moral por parte do Estado é de certo escravatura intelectual.
Impediram-me o acesso ao conhecimento para poderem usar a minha ignorância.
Do Estado
não exijo muito mais para mim, na reparação material da minha lesão física de
guerra, ao contrário de muitos camaradas meus
verdadeiramente injustiçados, mas exijo um condigno e honorável pedido de
desculpas pela lesão moral, se não a mim pessoalmente, pelo menos, a título póstumo,
ao meu pé esquerdo.