São
frias as noites em Mueda. São curtas e frias. São húmidas. E tristes.
A
manhã chega depressa e traz a guerra. Logo sentiremos os tiros que já não nos
assustam, antes nos lembram que estamos vivos. Mas estar vivo num lugar onde o
objetivo é matar, não augura nada de bom.
Todos
os dias se sofre em Mueda. Todos os dias se sofre e se faz sofrer. Morre-se. E
mata-se.
Há
uma monotonia trágica em Mueda, como se Deus se tivesse esquecido da máquina da
guerra a trabalhar enquanto se entretinha com outra coisa. Deus esqueceu-se de
Mueda e deixou os homens enlouquecer à vontade; e aqui, a loucura parece ser a
maior virtude dos homens.
Todos
os dias há alguém que pensa em Deus. Todos os dias há alguém que para
desconcertado com a maldade humana e com o alheamento divino, e que depois tem
que seguir em frente, invariavelmente na direção em que vai encontrar mais
sofrimento e morte, e maior ausência de Deus.
De
Mueda sai-se seguindo sempre em frente, só se volta para trás quando se fizer
suficiente mal a alguém. Dezenas de soldados, uns atrás dos outros, ordenados,
coordenados, alinhados; de helicóptero, de Berliet, ou a pé; sempre sem que
Deus pareça interferir na sua determinação de irem em busca da morte.
Tão
diferentes, os soldados que saem de Mueda, dos que regressam. Algo no meio da
mata misteriosa modifica os soldados, algo lhes tira brilho e cor, lhes assombra
o olhar, lhes suja o rosto. Algo os envelhece.
Ver
um camarada cair habitua-nos à ideia de que somos perecíveis e a ideia da morte
torna-se-nos familiar, não como algo que nos espera adiante, mas como algo que
nos acompanha a cada passo que damos. E a cada passo envelhecemos com a ideia
da morte.
A
coragem às vezes é a única solução. Podemos nunca saber o que é a coragem até
não nos restar mais nada para garantir a sobrevivência.
Há
quem esteja morto em vida por nunca ter chegado à beira do abismo e nunca ter
conhecido o fim do caminho; nunca ter conhecido o rosto de quem caminhou todo o
dia à nossa procura para nos matar, porque, na aritmética da guerra um de nós
tem que ser subtraído à existência. E estarmos nós à sua espera de arma na mão coloca
as coisas em termos simples, em termos fáceis de perceber: somos peças de um
jogo.
Mas
não podemos fugir de Mueda, porque de Mueda não se vai para lado nenhum, senão
em direção à guerra; o mundo acaba aqui. Mueda é uma ilha rodeada de morte por
todos os lados.
Há
um cheiro de morte em cada cheiro que se nos cola ao corpo. O bedum do óleo e da
pólvora queimada da G3, o bafo do escape das Berliets, a catinga da floresta, o
nosso ininterrupto odor corporal.
Às
vezes tornamo-nos um pouco mais humanos, quando recordamos as coisas que
constituíram a vida antes de Mueda. Eu tenho saudade de acordar e sentir logo
vontade de correr. Saudade da frescura do café pela manhã, da boroa acabada de
cozer, da fragância da relva orvalhada nas manhãs de Inverno . Fazem-me falta
os cheiros dos campos, desde a essência doce do pólen até ao fedor bom do
estrume.
Agora
acordo com a exsudação húmida do cacimbo e adormeço com o hálito metálico da trovoada.
Quando
isto acabar e outra geração se suceder à nossa, vai parecer impossível que nos
tenhamos sujeitado à escravidão, e que não tenha havido forma de lhe escapar.
Vai parecer irrisório que apenas a ignorância tenha sido suficiente para nos
impedir de refratar, como faz a luz ao encontrar um meio que lhe dificulta o
caminho. E a ignorância é o meio mais eficaz para dificultar a propagação de
toda a luz.
Mas
não se julgue que a guerra consegue apagar toda a luz de um homem; às vezes é
preciso até um pouco de escuridão para descobrirmos se brilha ou não algo
dentro de nós.
É de
sonho e pesadelo o destino de um soldado, como eu agora aqui, perdido em
pensamentos, enquanto voo em direção ao inferno. É de coragem e de medo esta
vida cumprida a ferro e fogo.
Com
o braço, aperto a máquina fotográfica contra as costelas e seguro a G3 entre as
pernas, porque o helicóptero adornou um pouco para a direita. Afasto mais os
pés para aumentar a base de apoio e percebo que estamos perto do objetivo.
Sinto uma serenidade muito grande, todo o meu ser se prepara para a violência
que se vai seguir, não tenho tempo agora para sentir medo, algo em mim se
suspende, nada me pode distrair a partir de agora.
Da fundura
do tempo venho à superfície como uma rolha
de cortiça que não aguenta muito tempo imersa.
Sei
que o helicóptero pairou a três metros do solo, sei que saltámos e que seguimos
pela mata dentro como se algo de lá nos atraísse a todos. Sei que se seguiram
momentos de perigo e sei que não morri lá, o resto parece apenas um pesadelo difuso
que o tempo foi esbatendo a pouco e pouco. Sei também que alguns de nós não
regressaram e que a maioria dos que regressaram trouxeram a guerra gravada a
fogo na memória, como uma tatuagem na alma, ou sei lá onde, entre a pele e essa
luz que encontrámos a brilhar dentro de nós nos momentos de maior negrume no
inferno tenebroso da guerra.
Sei
que havia um cemitério em Mueda, onde se dissolviam na terra alaranjada de
Moçambique os corpos dos que deram tudo a troco de nada, e que nenhuma luz de
humanidade devolveu à terra mãe de onde partiram, porque a pátria madrasta que
nos obrigou a combater se envergonhava dos mortos sacrificados em seu nome.
Agora
dissolvem-se na terra onde foram esquecidos e talvez lá devam ficar para sempre,
porque os seus corpos já se confundem com a terra que os acolheu, e ninguém
merece que o seu regresso venha a apagar a ignomínia de os lá terem deixado. Que
a vergonha dure para sempre.
Estive
lá. A guerra não se fez sem mim. Acreditei em oitocentos anos de História, mas
a realidade incumbiu-se de me mostrar em poucos meses que quase tudo o que me
ensinaram era mentira, não sem antes aprender que não é difícil matar um homem,
difícil
é viver depois disso; difícil é passar o resto da vida a tentar fazer com que os
nossos mortos façam sentido.
Mas
o que é estranho, é o nascimento da saudade desses tempos, como se a superação
da tragédia fosse glória bastante. É esta a fútil glória do sobrevivente.
Durante
imenso tempo, vivi uma vida que não era a minha, uma vida postiça, e fui uma
personagem de uma história mal engendrada. Como diabo posso eu ter saudades
disso? Poderemos nós ter saudades dos pesadelos de um tempo em que a única
coisa boa era sermos jovens?
É de
mim que tenho saudades, e olhando para trás confundo a história com a
personagem e confundo a personagem com o cenário, ou, de certo, é a humana
capacidade de perdoar que procura algo de bom para redimir o passado.
Mueda
revisitada e perdoada, nós, os que sobrevivemos, precisamos de perdoar para
continuar a viver.
Que
os mortos nos perdoem também.