4.12.13

Ciúme

No ar o perfume ainda fresco. O teu perfume, como se fosse a tua alma. Que ficou para trás, e tu já na rua indo para o trabalho.
O teu perfume que cheira a flor, que cheira a cio. O teu perfume de fêmea que deixa a tua marca, o teu rasto, a convidar todos os machos na tua passagem, como um trilho de tentação.
Quem te despe, Zulmira, nunca te despe totalmente, porque ficas sempre um pouco vestida com o teu perfume. Nos momentos que se seguiam ao banho, ainda sem perfume, é que te tinha totalmente nua para mim. Porque o teu perfume é apenas um véu de tentação que usas para seduzir, algo que não é teu, algo que encobre o teu próprio odor.
O teu odor sem mais nada é a nudez perfeita.
Usar perfume sobre o odor do teu corpo é como misturar coca-cola num bom vinho.
De manhã, quando acordavas é que o teu cheiro era mais puro. O teu cabelo depois do banho costumava manter a fragância frutada do shampoo, mas de manhã era possível sentir o seu verdadeiro cheiro como o hálito morno de um bosque. Na pele do pescoço mais suave, embora na nuca um tudo nada mais intenso, e à frente, na covinha acima do peito, mais delicado, mais apurado, porém nas axilas um pouco de acidez. Entre os seios mais refinado, como se por todo o corpo andasse à procura dessa afinação, e só nos teus seios fosse possível consegui-la, porque algumas pérolas de suor acrescentam um toque subtil de sal que assanha os sentidos. Na púbis uma rescendência fresca de brisa sobre o musgo. E depois, depois torna-se impossível resistir à tentação de descer logo em busca do cheiro intenso de todas as tuas hormonas na corola carnal do teu sexo.
Quem não gosta do teu cheiro, Zulmira, não gosta de ti.
Fui andando pela casa, porque caminhar sempre me ajudou a pensar, e caminhando acabei por voltar ao quarto.
As gavetas da cómoda um nadinha mal fechadas. A alça de um sutiã a espreitar-me por uma das frinchas. Só o suficiente para eu entender que te vestiste à pressa, quando ainda faltava tanto tempo para a hora de saíres.
E o teu perfume no ar.
O teu perfume, o tempero do teu corpo. Como um hamburger encharcado em mostarda para quem não gosta do sabor a carne. Agora permanece aqui, não como a tua alma, mas como a tua assombração. A tua forma em cheiro. O teu perfume que modelou o teu corpo antes de saíres. O teu perfume que durante algum tempo, pelo menos, contornou o espaço vazio onde esteve o teu corpo e que agora torna viva a tua ausência, a tua traição.
O teu perfume como um adereço de que te esqueceste no quarto, como algo que só serve para eu saber que não estás aqui.
Ao voltares, o teu perfume virá diferente. Virá como uma peça de roupa amarrotada. Manchado de outros odores, desvirtuado, abastardado. Tu mais fêmea. E o teu perfume, esse, mais masculino.
Virá diferente o teu perfume, e tu.
Tu mais calma, como se o teu corpo tivesse perdido um peso.
O teu corpo fica um barco solto sobre as águas depois de ter largado o lastro. Mas com mais vigor, mais energia.
Às vezes até ficas mais simpática e afectuosa comigo. Como se o prazer que recebeste fosse tanto que te sentisses generosa ao ponto de quereres reparti-lo comigo.
Então eu digo ”vai tomar um banho, Zulmira,” e tu olhas-me assustada. Mas é só para despires o teu perfume, porque o teu perfume é como um fato-macaco de um mecânico, que se suja, mas deixa o corpo limpo por baixo.
De certa forma, não te entregas completamente, porque uma túnica de aroma te separa sempre de quem te possui. Mas depois de tomares banho, depois de te secares, depois de o teu corpo respirar – como a relva respira depois do orvalho, como a própria terra respira depois da chuva, como a areia da praia, nua e seca ao sol, respira depois da cacimba da noite – depois, depois a tua pele suaviza e perde todos os odores que não lhe pertencem, e ficas só tu, tu sem nada que te separe de mim, porque a tua nudez completa é quando não há nada entre os meus sentidos e o teu corpo.
Só então és minha.
Só te tenho quando não há nada entre nós, nada entre o meu corpo que é mar e a tua nudez que é praia.
Desde o princípio a certeza de te amar, quando o meu olhar repousou em ti como um viajante perdido que chega a casa.
Desde o princípio, o mar tomando balanço tentando conquistar a praia. Desde o princípio, o mar desistindo. Tentando e desistindo. Desistindo e tentando. Sempre.
Eu o mar ainda. Não sei se tentando conquistar-te, se tentando libertar-me de ti. Porque eu preso a ti mas sem nunca te ter, porque eu quase solto e liberto numa onda de raiva, mas que vou e logo regresso.
Regresso para um amor impossível, porque todo o amor é impossível. O amor é a arte de possuir o que não temos. Quando o amor é bem-sucedido a história acaba, para acabar com final feliz.
Assim que é feliz acaba, porque quando temos o que amamos tudo se consuma, nada mais se pode acrescentar. Nós, Zulmira, continuámos para além do final feliz, para além do amor.
Como eu, aqui, continuo, depois de teres saído, a sentir o lugar onde estiveste. Nada nos liga, a não ser o teu perfume. E o teu perfume, Zulmira, é agora o que mais nos separa.
E a dor insuportável de não haver amor que chegue para quem sobrevive a um final feliz.
Mas se já não te amo, Zulmira, ainda amo alguma coisa em ti; algo que ninguém pode possuir, algo que permanece em ti longe dos olhos, de todos os sentidos de quem te deseja.
Não sei o que é. Quando sabemos o que é quebra-se o feitiço. Talvez o teu cheiro natural, o teu cheiro animal, o teu cheiro de fêmea que permanece submerso, subterrâneo, indetectável sob o teu perfume, e que portanto ninguém pode amar.
Só eu.
Mas eu que já não te amo por tu já não seres tu. E que já não te amo por eu já não ser eu também.
Mas alguma coisa algures em nós ainda unido. Algo só nosso que sobreviveu. Talvez apenas um pensamento antigo em comum que tivemos. Talvez a esperança de ainda virmos a ser felizes, ou apenas a memória de termos sido.
Virás com ar cansado, mas com o cansaço de quem sacrificou o corpo em benefício da alma. O cansaço bom da presa que sobrevive ao predador.
E o teu perfume.
Ou turvo como roupa demasiado usada, se não tiveste tempo de te arranjar; ou fresco, renovado, ainda não oxidado, se tiveste. E a tua traição mais descarada na tua frescura. A tua falsa frescura a tentar apagar o verdadeiro ranço da tua traição.
Mas, Zulmira, quem te tem esta noite, não te tem. Tu és a mulher que o meu amor modelou. Tu, como eu te vejo, só existes para mim.
Por vezes olhas-me como quem pergunta “porque não deu certo?” Quando o teu olhar tem assim uma pergunta sabendo que não tem resposta, é que eu vejo tudo claro. Sabes, Zulmira, esperei pelo teu amor tempo de mais, e habituei-me ao fracasso como um corpo cansado se acomoda a uma cama dura, e quando acabaste por me aceitar, vieste perturbar o meu conforto.
O teu amor por mim veio transtornar a minha acomodação ao fracasso e veio também consumar a nossa história.
Queria ter partido nesse dia.
Mas ainda aqui, esta onda a ir e a vir, desde o princípio do mundo a tentar abandonar o mar. A mesma onda há milénios a tomar balanço e a desistir numa impotência de espuma.

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