9.4.12

Palavras ditas, não ditas, malditas



Menina judia

- Mãe?
- Sim filha.
- Deus ama todos os homens?
- Sim filha.
- Os bons e os maus?
- Sim filha.
- Se Deus nos ama a nós e aos nazis, então para que nos serve o amor de Deus?


Infinito negativo

Sonho com um livro que não tenha nenhuma palavra a mais. Um livro que eu tenha escrito e a que vá tirando todas as palavras inúteis.
Umas toneladas de mármore de Carrara, e Michelangelo de maça e cinzel na mão olhando a pedra informe e imaginando a figura de Cristo nos braços da mãe, nítida lá dentro, como a imaginou mil vezes.
Depois Michelangelo atacando o bloco de mármore e deitando fora toda a pedra que está a mais, como se se tratasse de entulho colado às figuras, até ao preciso ponto em que nada mais restou que a forma perfeita da Pietá.
Mas eu quereria continuar para além dessa forma perfeita, quereria ir tirando, desgastando a pedra até ficarem numa coisa só, o coração de ambos: mãe e filho. E desgastar o coração também, até ficar uma esfera de mármore, um átomo de matéria, uma micro partícula, a ínfima coisa primordial de onde todas as formas nasceram no início do universo, esse mundo inteiro desmaterializado no infinito negativo que haveria de explodir e dar lugar a tudo o que conhecemos.
Queria assim um livro com uma palavra apenas, uma palavra que ao ser lida levasse o leitor a criar o seu próprio livro; que todo o livro só é feito pelo leitor, o escritor apenas lhe dá as palavras para ele o poder fazer, nada mais. Como o compositor compõe a partitura no maior silêncio, para que o intérprete faça a música.
O pianista abre a partitura e após um segundo de espera, a partir do silêncio, explode o milagre da música. O leitor abre o livro e com as palavras que lê a partir do caos, composto por marcas de tinta sobre papel, cria a história
O leitor é o intérprete. Sem intérprete não há som. Há só notas numa pauta, só palavras caladas, palavras por dizer.
Sem o leitor só há caos e silêncio.


Testamento

Quando eu morrer, que todos os meus inimigos fiquem felizes porque morri. Será a prova de que são impiedosos e, sendo eu inimigo deles, isso ateste pelo menos o meu bom senso.
Que celebrem a minha morte, pois isso provará que pelo menos uma vez nas suas vidas eu contribui para a sua felicidade, e que a injustiça de me quererem mal tenha pelo menos esse facto como prova.
Que todos os meus falsos amigos sintam alívio pela minha morte, pois que ao julgarem que jamais serão desmascarados, sentindo-se felizes por isso, estarão a trair-se, dado que será pelo menos estranho, para as pessoas atentas, que estejam felizes ao saberem da morte de alguém de quem se dizem amigos.
Às pessoas que gostaram de mim e aos meus verdadeiros amigos, que a minha morte lhes seja contada, para que a encarem como uma simples inevitabilidade; que interrompam as suas vidas com uma contrariedade parecida com o incómodo de terem sido apanhados por uma chuvada em mangas de camisa num dia de sol, não mais do que isso, e que continuem as suas vidas, de modo a poderem lembrar-me, não como algo penoso e distante, mas como se tivessem continuado a conviver comigo e portanto não houvesse lugar a saudades.
Que as mulheres que eu desejei e não tive me odeiem nesse dia, ou por eu não ter tido a inteligência de entender que também me desejaram ou por, embora não me tendo desejado nunca, se sentirem ofendidas no seu amor-próprio pelo meu fraco interesse ou demasiada covardia perante a sua recusa.
Para os outros, os que nunca me conheceram, que eu, simplesmente nunca tenha existido.


Palavras correntes

Ao contrário das pessoas, as palavras rejuvenescem com o tempo. Eu adoro as palavras antigas cheias de consoantes duplas, inúteis, a complicarem as sílabas e a estorvarem a pronúncia. Às vezes encontro¬-as ainda a meio de um livro, em citações a mostrarem a erudição do escritor, e paro para as observar. São blocos de mármore meio esculpidos, que a erosão do tempo e o uso haveriam entretanto de modelar, até terem obtido a jovem forma aerodinâmica de hoje.
As palavras que temos são as palavras que o povo inventa, reinventa, torneia e simplifica, a mostrar aos eruditos que quem faz a língua não sabe nada de linguística. Quem sabe de linguística sabe tudo sobre como a língua chegou até aqui, mas é o povo que sabe melhor como fazer com que ela evolua a partir daqui. Que a língua é como a água corrente que encontra sempre o caminho mais fácil para o mar, e os rios levam-na ao seu destino sem terem estudado engenharia hidráulica.
Quando eu era jovem e as palavras que ouvia eram antigas, as pessoas falavam devagar. Sempre houve pessoas que falavam depressa, mas dessas não lembro o que disseram. Lembro¬-me, isso sim, das pessoas para quem uma palavra era uma coisa tão preciosa que os silêncios tinham que ser grandes como molduras imponentes em torno delas. Hoje que os anos me envelheceram e as palavras se tornaram novas, perdendo as arestas inúteis, deixo-me levar humildemente por elas.
Quase todas as palavras, embora rejuvenescidas, são anteriores a nós e sabem bem o caminho, por isso deixemos simplesmente que elas aconteçam.
Como acontece a água, que é a linguagem dos rios.


Cândida obscenidade

Na minha aldeia era comum os amigos cumprimentarem-se dizendo "Ó meu grande filho da puta, estás bom?", e mais do que uma vez ouvi uma mãe dizer para a filha bebé com os olhos brilhando de ternura: "Minha pecorazinha linda", diminutivo este de uma palavra que em Aguim, no contexto habitual, era o pior insulto para uma mulher.
Não é possível saber o verdadeiro valor de uma palavra sem envolvermos os sentimentos na sua avaliação.


Virose política

Assim que a crise sucede à democracia, começam a ganhar coragem aqueles que viveram em estado latente aguardando um momento de debilidade para tentarem soluções totalitárias.
São como vírus, esses seres minúsculos que não são viáveis a não ser no corpo do hospedeiro que não pode eliminá-los.
Os parasitas que nos levaram à crise dariam assim lugar aos parasitas que não nos deixariam sair dela.
Acusar a democracia pela corrupção, gestão danosa e incompetência que conduziu à crise, é tão estúpido como acusar a saúde pelas bactérias, bacilos e vírus que causam a enfermidade.
É urgente aprendermos noções de profilaxia do fascismo.


Criminosa apatia

O que me assusta mais, não é os nazis terem matado milhões de judeus. Nem o eles não terem remorsos. Nem o eles terem feito da chacina um modo de vida tão banal como o de servirem schnaps ao balcão de um bar no porto de Hamburgo.
O que me assusta verdadeiramente é o tempo que decorreu entre o conhecimento do extermínio por parte dos libertadores e a decisão de lhe porem fim, porque esse tempo excessivo fez com que tenha havido muito menos sobreviventes, mas sobretudo, faz com que o crime continue a parecer viável.
A quem devem agradecer os sobreviventes, a Deus ou a Pearl Harbor?


Comboios de Auschwitz

- Como se chama o lugar para onde vamos, neste comboio apinhado de gente?
- Auschwitz, minha filha.
- E de onde vêm aqueles comboios todos que passaram por nós?
- Vêm do lugar para onde vamos.
- Mãe?
- Sim filha.
- Porque vêm vazios os comboios de Auschwitz?

1 comentário:

antónio m p disse...

Confesso a injustiça de não visitar este blogue há muito tempo. E a incapacidade de saber porquê, visto que há muito o conheço com prazer e recomendo. Força, amigo! - desculpe tomar a liberdade de o tratar assim.