17.12.07

HERÓIS?!

De António Almeida, Capitão Miliciano e Comandante da CART 3503.



Estava-se no fim do ano, no derradeiro trimestre e, como era já tradição, iria assistir-se a uma forte ofensiva da Frelimo. Os homens com quem agora compartilhava a sua vida, encontravam-se na fase derradeira da respectiva comissão. No mês de Janeiro próximo, completariam 24 meses de comissão, sempre em Mueda, o que era inédito e acabou talvez, por ser caso único.
Para obviar à escassez de homens, a direcção da guerra, em Nampula, reduziu o número de militares hospitalizados, com «altas» (doentes considerados já clinicamente aptos) que obrigou um grande número a seguir para as respectivas frentes de combate onde se situavam as suas companhias. A «companhia macaca» com alguns militares nesta situação, também viu o seu número crescer com a chegada de meia dúzia de militares que se encontravam há alguns meses no hospital de Nampula.
Um de entre eles se destacava. Há cerca de 10 meses que havia sido evacuado e voltava agora, coagido pelas decisões daqueles que viam em cada homem, um militar pronto a sacrificar-se pela guerra. Foi o comandante de Batalhão, o mais directo superior hierárquico do comandante da companhia quem lhe anunciou a chegada próxima daquele alferes e sugeriu logo, que o deveria integrar activamente como qualquer outro militar na realização das operações que a companhia era constantemente chamada a efectuar. O capitão facilmente pôde compreender que o regressado não gozava das simpatias daquele comandante. E, quando um comandante não gosta de um subalterno... a vida deste será dura.
[...]

© António Almeida



Ler texto completo aqui

2.12.07

Black-out



[...]
Quando o Mugeiro acordou no meio da picada ainda não tinha voltado a luz. Só as vozes à sua volta, um frio de morte no rosto e algo quente escorrendo, escorrendo. Há coisas piores que uma noite de inverno sem luz. Quando a meio de um dia de Sol com a luz mais gloriosa que se pode imaginar, a transformar todos os objectos em cristais iridescentes; nós seguimos as pegadas do soldado à nossa frente e ele fica sem as pernas e os estilhaços da mina nos batem em cheio no rosto; a luz apaga-se, mas apaga-se para sempre.
Nunca mais a réstia matinal, num risco cintilante da janela mal fechada até à parede do quarto; nunca mais as refulgências da água do tanque, espelhadas no tecto do alpendre; nunca mais o brilho das lágrimas tremeluzentes, nos três primeiros segundos do orgasmo, quando os olhos da mulher se alargam tão infantis como maternais, tão inocentes como impudicos e nos redimem de todas as nossas culpas e nos fazem esquecer todas as nossas mágoas e nos exorcizam todos os nossos fantasmas.
Foi mais difícil quando o primeiro filho nasceu. Era como se ele se escondesse permanentemente atrás de um pano negro impossível de rasgar. Mas a tudo nesta vida um ser humano se habitua, até à noite infinita.
[...]
Ver texto completo na pág. 13 do Jornal Elo da ADFA ou aqui.

16.11.07

O Preço do Pão

De António Silvestre, Ex Alferes Miliciano e comandante da CART 3503


Foto de Manuel Bastos

Olhei para o relógio, eram 10 horas da manhã do dia 31 de Dezembro de 1973 e ali íamos nós a caminho das Bananeiras, uma dúzia de viaturas e cerca de sessenta homens, privilegiados, que tínhamos tido o bónus de ir passar a passagem do ano às Bananeiras, o pretexto era arranjar a ponte para que a coluna, que no princípio do ano viria de Porto Amélia, conseguisse chegar a Mueda .
Isso era o pretexto, pois a finalidade principal era afastar de Mueda a maioria dos homens da 3503, companhia que em Janeiro faria 24 meses de comissão, e em que a insatisfação e até mesmo a revolta já grassava tanto entre os graduados como entre os soldados.
Assim, a caminho das Bananeiras, zona a 15Kms de Mueda, famosa pelas emboscadas aí já acontecidas e pelas minas normalmente aí colocadas, seguiam cerca de 40 homens da 3503 mais 20 e tal homens da engenharia com algumas máquinas. Os atiradores tinham por missão montar a segurança e fazer a protecção aos homens da engenharia enquanto durassem os trabalhos do arranjo da picada e da reconstrução da ponte. Comandavam esses homens, o capitão Almeida e o alferes Silvestre, ambos da 3503, que por diversas vezes tinham levantado a voz em defesa dos homens da companhia e portanto não era conveniente estarem em Mueda no dia 1, onde estava previsto haver um almoço de Ano Novo com algumas individualidades vindas de Nampula, de Lourenço Marques e talvez até algum ministro da Metrópole, os quais faziam o sacrifício de nesse dia se deslocarem às zonas de guerra para, diziam eles, levantar o moral das tropas, algumas das quais já há quase 24 meses ali se encontravam.
Para evitar que Suas Excelências apanhassem algum susto enquanto estivessem em Mueda, a maioria das tropas operacionais eram colocadas no mato, quer em patrulhamentos afastados quer alguns próximos do arame farpado, de modo que os combatentes da Frelimo se mantivessem o mais longe possível e sem possibilidades de efectuar qualquer ataque.
[...]

Ler o texto completo aqui.

© António Silvestre

8.11.07

A Irreverência do Meu Pé Esquerdo

Ler o texto completo na pág. 12 do jornal Elo da ADFA ou aqui.



[...]

Para poder rastejar à vontade sobre a relva eu deixara a prótese e a canadiana equilibradas uma na outra, talvez inspirado no método que usávamos na tropa para pôr as armas de cano para cima num feixe em pirâmide a que chamávamos pitorescamente "ensarilhar armas". Não sei qual das duas coisas mais interessava aos alemães que já constituíam um público considerável nas janelas do hospital, cracanholos para os portugueses; se o ensarilhar armas da minha prótese com a canadiana se a figura altamente suspeita, deitada sobre a relva, de pijama e de máquina fotográfica em punho, apontada para coisa nenhuma, à espera que os coelhos saíssem da toca.
Enquanto a minha teimosia em não pôr o pé para baixo aumentava a indignação da menina dos olhos negros ali à minha frente; a minha teimosia em fotografar os coelhos aumentava o assombro dos alemães, na minha memória.

[...]

24.10.07

Sagal

Do Ex Capitão Mil. António Almeida - Texto completo aqui


O ataque ao aquartelamento do Sagal durava já há mais de 48 horas, quando regressou a Mueda a coluna de abastecimento a Mocimboa do Rovuma.
O empenhamento das forças da Frelimo, que actuavam em Cabo Delgado, neste ataque, possibilitou a realização da coluna, sem grandes sobressaltos, o que era inédito naquelas paragens.
Entretanto em Mueda, com as notícias que chegavam dos militares cercados no Sagal, a situação ia-se agravando. Os meios aéreos não se aproximavam, face aos dispositivos de defesa montados pelos guerrilheiros, conhecedores dos efeitos da ajuda que os aviões e hélis prestavam aos quartéis atacados. As notícias apontavam para a quase impossibilidade de uma coluna militarizada, por terra, lá chegar. Não se sabia ao certo se havia feridos graves, mas havia já a certeza que não existiam mortos.
[...]


(c) António Almeida

24.9.07

O Dia em que se Viu Mueda a Arder

Às vezes a solidão obriga a confrontarmo-nos com as coisas mais básicas da existência e nem o Tempo, esse grande déspota, apaga completamente o que uma vez teve verdadeiro valor para nós. Deixem-me recordar-vos a coragem de meia-dúzia de homens n’ “O Dia em que se Viu Mueda a Arder”. Coragem sim; essa sublimação do medo em generosidade.



Ler o texto completo aqui.


[...]

Não sei, nem nunca aprendi a conhecer um herói; a não ser talvez quando um enfermeiro desarmado nos socorre na picada; a não ser talvez quando um soldado se esquece momentaneamente de si para se lembrar dos outros, como ali o Caseiro e o Silvestre.
Pôr a própria vida em perigo para salvar uma nação inteira é um acto heróico por certo, mas pagar o mesmo preço para salvar um punhado de amigos acossados pelos guerrilheiros no meio do mato é sem dúvida um acto mais heróico ainda, que o valor da nossa coragem está naquilo que se oferece e não no que se recebe. [...]

Ler o texto completo aqui.

3.9.07

Louvor e Punição

É preciso dizer que acreditámos em vocês? É preciso dizer que acreditámos até ao ponto de a vossa mentira ser um insulto à nossa inteligência? Que credo era o vosso, do qual apenas nos contaram a parte que dizia respeito ao nosso dever?
Os soldados têm que estar à altura da missão que lhes confiam. Os políticos têm que estar à altura do momento histórico em que vivem e os comandantes militares têm que estar à altura de ambos.
Sabemos hoje, todos os que ainda não sabiam nessa altura, que os políticos portugueses que mantiveram a guerra colonial viviam orgulhosamente autistas num momento histórico anacrónico; sabemos que os soldados portugueses fizeram o que se lhes pediu como todos os soldados fazem em todas as guerras; e os comandos militares? Será que ao menos respeitavam aqueles que lhes ganhavam os louvores e as condecorações, com o seu suor, o seu sangue e os seus traumas?
Cada um que fale pela experiência que tem.
A CART 3503 combateu durante dois anos e dois meses, teve 58 baixas; durante esse tempo teve 6 (SEIS) comandantes e no mês de Junho de 1972, segundo os registos da unidade, já tinha sofrido 2 feridos, destruído vinte e quatro minas e feito 5 mortos ao inimigo, quando finalmente o comandante do batalhão decidiu louvar um dos seus homens. Quem? Será que louvou um militar dos que arriscaram a vida no mato e nas picadas? Ingénuos! Leiam só:

[…] o Exmo Comandante do B. Caç. 15, louvou o 1º. Sargento de Artª. NM-(xxxxxxxx) – Jxxxxx, desta CART., porque em todo o tempo que exerceu as funções de 1º sargento, responsável pela escrita da companhia, sempre levou a bom termo os inúmeros dele dependentes de forma pertinente e eficaz.

A omissão do número mecanográfico e do nome do sargento devem-se ao meu respeito pela preservação da sua identidade, a pobreza do português deve-se ao louvado sargento que foi quem escreveu isto, embora lhe tenham sido reconhecidos inúmeros. Inúmeros?! "inúmeros" quê? Parece que ninguém lhe identificou os motivos para o louvor, apesar de serem "inúmeros" e de os ter "levado a bom termo".
Mas até essa data, além dos factos acima descritos pelo menos 5 militares já se tinham evidenciado por actos de coragem, ao ponto de serem mencionados pelos seus respectivos comandantes nos relatórios de operações.
Até ao nosso primeiro morto ter ocorrido, os únicos militares louvados foram os que fizeram doações de sangue, o impedido da messe e nosso primeiro-sargento.
Daí até ao fim da comissão, muita coisa ocorreu, muitos comandantes vieram e foram embora, mas a CART 3503 continuou lá, não como chegou, porque foram muitos os que tombaram em combate, e continuou lá muito para além da sua obrigação. Cinquenta e sete dias de guerra para além da sua obrigação, para sermos precisos.
E quando chegou finalmente o dia tão esperado para a sua partida, adiado numa sucessão interminável de cinquenta e sete dias? Que se espera de um grupo de homens que deram o melhor de si, quase tudo de si, e que finalmente vêm o fim do seu degredo e do seu martírio? Alegria, não é? Normal, não?
Ingénuos! Isso é para vocês, que não sabem que entre os políticos que não estavam à altura do momento histórico e os soldados que aceitaram cumprir o seu dever como em todos os momentos da história, existia uma classe de pessoas que viviam à sombra dos primeiros e à custa dos segundos.

NOTA DE PUNIÇÃO

puno com repreensão agravada o capitão milº. de Infantaria ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, da C.ART. 3503, porque, sem para isso estar devidamente autorizado, tomou parte numa exteriorização de alegria, levada a efeito pelo pessoal da sua companhia, no dia 05ABR74, entre as 21 e as 24 horas, originada pelo final da comissão e regresso à Metrópole, […]

Não omito o nome do capitão punido, porque há punições que nos dignificam por revelarem um tal nível de estupidez que deveras embaraçoso seria recebermos um louvor.

É sim. É preciso dizer que acreditámos em vocês, políticos e comandantes. É preciso dizer também que jamais esqueceremos isso. Nós aprendemos. E vocês? Será que vocês já aprenderam a estar ao nível do momento histórico em que vivem?
Duvido. A estupidez é crónica.

20.8.07

Os Sonhos dos Nossos Filhos

Com que sonham eles? Terão herdado os nossos sonhos? Com que livros caminham, com que música voam? Que distância os separa de nós?
Ainda fazem sentido para eles as bandeiras que erguemos? Ainda ouvirão os tiros que demos? E o amor que fizemos?
Quando foi que nos distraímos e os deixámos crescer? Fomos nós que os perdemos ou foram eles que nos perderam a nós?
Com sorte, encontrar-nos-emos por aí. A meio de um livro, seria esperar muito?
Talvez possamos encontrá-los numa canção. Esta é uma amostra das canções que ouvem. Tentar entender as suas inquietações pode ser um passo para ajudar a encurtar a metade do caminho que nos cabe a nós percorrer.

Para ouvir, faça stop no leitor media player na barra lateral do blog e faça play neste

Dave Matthews Band

Os Sonhos dos Nossos Pais
(tradução livre)

Oh, eu sufoco, eu sufoco,
No fumo desta casa em chamas.
Arranho e esgravato
Mas não consigo sair daqui.
Mas quem há-de ser, quem,
Que esgravata o chão?
Oh, é o meu mundo, claro,
Mas de quem é este ouro que desenterro?

Quando vamos, para aonde vamos
Quando estivermos mortos?
A sentença ainda é válida?
Ainda estamos na fila
A seguir aos que já morreram há muito,
Com as lágrimas de dor abafadas,
Os ossos enterrados?
Já chegou a nossa hora?
Já chegou sim,
Sem apelo nem agravo.

Não quero acordar
Perdido nos sonhos dos nossos pais.
Oh, é um desperdício puto,
Viver e morrer pelos sonhos dos nossos pais.
Embora deva confessar, sim,
O meu espanto sobre este,
Este amor que sinto, amor.
Devem ser os sonhos dos nossos pais.

Quero partir, quero fugir.
Mas voltamos por saber que nos reprovam.
Estou a ser perseguido, perseguido.
Larguem-nos, libertem-nos.
Mas não acredito, não acredito,
Que este sabor na boca
Seja apenas a língua,
Tão amarga que quero cuspi-la.

Repito estas palavras,
Saem cá para fora
Sob a luz azul do céu,
Encho as folhas em branco
Com estas torpes mentiras,
Mas ouço no fundo de mim
Um eco, um eco,
De vácuo… vácuo… vacuidade,
Que vomito e engulo.

Não quero acordar
Perdido nos sonhos dos nossos pais.
Oh, é um desperdício puto,
Viver e morrer pelos sonhos dos nossos pais.
Embora deva confessar, sim,
O meu espanto sobre este,
Este amor que sinto, amor.
Devem ser os sonhos dos nossos pais.

Chove-me na cabeça.
Chove-me na cabeça.
Chove sobre mim.
E então respiro.
Chove me no amor.
Chove mais e mais.
Porque não consigo tirar-te dos meus sonhos?

Olha aqui, olha aqui,
Inchado, boiando
De pança para baixo,
De pança para cima, na água.
Mas quem é que se está a afogar?
Fomos atrás de um bêbado
E ele pegou-nos a bebedeira,
Mas é como se ele tivesse bebido o juízo
E nós ficássemos sem saída.

Não quero acordar
Perdido nos sonhos dos nossos pais.
Oh, é uma pena puto,
Viver e morrer pelos sonhos dos nossos pais.
Embora deva confessar, sim,
O meu espanto sobre este,
Este amor que sinto, amor.
Devem ser os sonhos dos nossos pais.

Este amor que sinto, amor.
Devem ser os sonhos dos nossos pais.
Este amor que sinto, amor.
Devem ser os sonhos dos nossos pais.
Este amor que sinto, amor.
Deve ser o amor dos nossos pais.

Este amor que sinto, amor.

1.8.07

Prefácio Para Um Livro Qualquer

[...]
Nessa idade eu tinha poucas dúvidas e tudo fazia sentido para mim nesta vida, por isso encarava aquele portão, estoicamente no seu posto, como algo de transcendente que eu nem me atrevia a questionar; tal e qual um fiel devoto perante os dogmas da sua religião.
Uma vez por ano, quando o meu avô ia buscar a carrada de mato àquele pinhal perdido numa encosta da Serra do Buçaco, eu erguia-me antes da curva da estrada para ver se o portão ainda lá estava, interrompendo o caminho que dava acesso à seara. Será que as pessoas paravam junto ao portão, o abriam, como quem abre a porta de armas de um quartel e depois o transpunham e fechavam de novo, para impedir os intrusos de devassarem a propriedade alheia, apesar de toda a seara em redor estar completamente desimpedida?
– Avô, para que serve aquele portão? – Atão, prá 'brir e fechar, no é? E eu ficava a magicar… Que mundos invisíveis, que universos paralelos, que prodígios se nos revelariam ao atravessarmos aquele portão; tal como o delirante País das Maravilhas estava para lá do espelho da Alice?
Nunca consegui convencer o meu avô a parar para eu experimentar passar pelo portão, só para ver o que acontecia. Mas o cavalo resfolegava sempre logo a seguir à curva da estrada, talvez sentindo algo oculto ao entendimento humano, e imediatamente a rela do meu avô acordava-o para as coisas deste mundo.
Entretanto cresci e fui perdendo todas as certezas que tinha. Deixei de ir com o meu avô buscar o mato. Depois o cavalo morreu. Depois houve uma guerra e eu fui combater. Depois houve uma revolução e a guerra acabou. Depois o meu avô morreu também.
Acho que o mundo todo se modificou e nem uma só certeza de criança me acompanhou pela vida fora.
[...]

Ler o texto completo no Jornal Elo da ADFA que afinal ainda não tirou férias este ano.

12.7.07

A Cena do Ódio

Em Agosto o Jornal Elo não se publica e é um bom álibi para exibir aqui uma montagem de excertos de um poema de um dos maiores vultos do futurismo português, entre a genialidade e a polémica e entre a paixão e o génio (no dizer de Pessoa).

O poema; narcísico, procraz, iconoclasta, virulento, delirante e anti-burguês:
A Cena do Ódio

O autor; pintor, escritor, ensaísta, dramaturgo, romancista, poeta d'Orpheu, futurista e tudo:
Almada Negreiros


Auto-retrato

A Cena do Ódio (Três excertos)

Clique em Play para ouvir o poema dito por Mário Viegas

de José Almada Negreiros
poeta sensacionista e Narciso do Egipto


Ergo-Me Pederasta apupado d'imbecis,
Divinizo-Me Meretriz, ex-líbris do Pecado,
e odeio tudo o que não Me é por Me rirem o Eu!
Satanizo-Me Tara na Vara de Moisés!
O castigo das serpentes é-Me riso nos dentes,
Inferno a arder o Meu Cantar!
Sou Vermelho-Niagara dos sexos escancarados nos chicotes
dos cossácos!
Sou Pan-Demónio-Trifauce enfermiço de Gula!
Sou Génio de Zaratrusta em Taças de Maré-Alta!
Sou Raiva de Medusa e Danação do Sol!
Ladram-Me a Vida por vivê-La
e só Me deram Uma!
Hão-de lati-La por sina!
Agora quero vivê-La!
Hei-de Poeta cantá-La em Gala sonora e dina
Hei-de Glória desanuviá-La!
Hei-de Guindaste içá-La Esfinge
da Vala pedestre onde Me querem rir!
Hei-de trovão-clarim levá-La Luz
às Almas-Noites do Jardim das Lágrimas!
Hei-de bombo rufá-La pompa de Pompeia
nos Funerais de Mim!
Hei-de Alfange-Mahoma
cantar Sodoma na Voz de Nero!
Hei-de ser Fuas sem Virgem do Milagre,
hei-de ser galope opiado e doido, opiado e doido...
Hei-d'Átila, hei-de Nero, hei-de Eu,
cantar Átila, cantar Nero, cantar Eu!
Sou Narciso do Meu Ódio!
- O Meu ódio é Lanterna de Diógenes,
é cegueira de Diógenes,
é cegueira da Lanterna!
(O Meu Ódio tem tronos d' Herodes,
histerismos de Cleópatra, perversões de Catarina!)
O Meu ódio é Dilúvio Universal sem Arcas de Noé,
só Dilúvio Universal!
e mais Universal ainda:
Sempre a crescer, sempre a subir...
até apagar o Sol!
Sou trono de Abandono, mal-fadado,
nas iras dos Bárbaros meus Avós.
Oiço ainda da Berlinda d'Eu ser sina
gemidos vencidos de fracos,
ruídos famintos de saque,
ais distantes de Maldição eterna em Voz antiga!
Sou ruínas rasas, inocentes
como as asas de rapinas afogadas.
Sou relíquias de mártires impotentes
sequestradas em antros do Vício.
Sou clausura de Santa professa,
Mãe exilada do Mal, Hóstia d'Angústia no Claustro,
freira demente e donzela,
virtude sozinha da cela
em penitência do sexo!
Sou rasto espezinhado d'Invasores
que cruzaram o meu sangue, desvirgando-o.
Sou a Raiva atávica dos Távoras,
o sangue bastardo de Nero,
o ódio do último instante
do Condenado inocente!
A podenga do Limbo mordeu raivosa
as pernas nuas da minh'Alma sem baptismo...
[…]
E vós ó gentes que tendes patrões,
autómatos do dono a funcionar barato!
Ó criadas novas chegadas de fora p'ra todo o serviço!
Ó costureiras mirradas,
emaranhadas na vossa dor!
Ó reles caixeiros, pederastas do balcão,
a quem o patrão exige modos lisonjeiros
e maneiras agradáveis pròs fregueses!
Ó Arsenal fadista de ganga azul e coco socialista!
Ó saídas pôr-do-sol das Fábricas d'Agonia!
E vós também, ó toda a gente, que todos tendes patrões!
E vós também, nojentos da Política
que explorais eleitos o Patriotismo!
Macrots da Pátria que vos pariu ingénuos
e vos amortalha infames!
E vós também, pindéricos jornalistas
que fazeis cócegas e outras coisas
à opinião pública!
E tu também roberto fardado:
Futrica-te espantalho engalonado,
apeia-te das patas de barro,
Larga a espada de matar
e põe o penacho no rabo!
Ralha-te mercenário, asceta da Crueldade!
Espuma-te no chumbo da tua Valentia!
Agoniza-te Rilhafoles armado!
Desuniversidadiza-te da doutorança da chacina,
da ciência da matança!
Groom fardado da Negra,
pária da Velha!
Encaveira-te nas esporas luzidias de seres fera!
Despe-te da farda,
desenfia-te da Impostura, e põe-te nu, ao léu,
que ficas desempregado!
Acouraça-te de senso,
vomita de vez o morticínio,
enche o pote de raciocínio,
aprende a ler corações,
que há muito mais que fazer
do que fazer revoluções!
Ruína com tuas próprias peças-colossos
as tuas próprias peças colossais,
que de 42 a 1 é meio-caminho andado!
Rebusca no seres selvagem
no teu cofre do extermínio
o teu calibre máximo!
Põe de parte a guilhotina,
dá férias ao garrote!
Não dês língua aos teus canhões,
nem ecos às pistolas,
nem vozes às espingardas!
– São coisas fora de moda!
Põe-te a fazer uma bomba
que seja uma bomba tamanha
que tenha dez raios da Terra.
Põe-lhe dentro a Europa inteira,
os dois pólos e as Américas,
a Palestina, a Grécia, o mapa
e, por favor, Portugal!
Acaba de vez com este planeta,
faze-te Deus do Mundo em dar-lhe fim!
(Há tanta coisa que fazer, Meu Deus!
e esta gente distraída em guerras!)
[…]
Mas tu nem vives nem deixas viver os mais,
Crápula do Egoísmo, cartola d'espanta-pardais!
Mas hás-de pagar-Me a febre-rodopio
novelo emaranhado da minha dor!
Mas hás-de pagar-Me a febre-calafrio
abismo-descida de Eu não querer descer!
Hás-de pagar-Me o Absinto e a Morfina
Hei-de ser cigana da tua sina
Hei-de ser a bruxa do teu remorso
Hei-de desforra-dor cantar-te a buena-dicha
em águas fortes de Goya
e no cavalo de Tróia
e nos poemas de Poe!
Hei-de feiticeira a galope na vassoura
largar-te os meus lagartos e a Peçonha!
Hei-de Vara Magica encantar-te Arte de Ganir
Hei-de reconstruir em ti a escravatura negra!
Hei-de despir-te a pele a pouco e pouco
e depois na carne-viva deitar fel,
e depois na carne-viva semear vidros,
semear gumes,
lumes,
e tiros.
Hei-de gozar em ti as poses diabólicas
dos teatrais venenos trágicos do persa Zoroastro!
Hei-de rasgar-te as virilhas com forquilhas e croques,
e desfraldar-te nas canelas mirradas
o negro pendão dos piratas!
Hei-de corvo marinho beber-te os olhos vesgos!
Hei-de bóia do Destino ser em brasa
e tu náufrago das galés sem horizontes verdes!
E mais do que isto ainda, muito mais:
Hei-de ser a mulher que tu gostes,
hei-de ser Ela sem te dar atenção!
Ah! que eu sinto claramente que nasci
de uma praga de ciúmes.
Eu sou as sete pragas sobre o Nilo
e a Alma dos Bórgias a penar!...



Este poema foi escrito durante os três dias e as três noites
que durou a revolução de 14 de Maio de 1915.



A Álvaro de Campos a dedicação intensa de todos os meus avatares.


Ler aqui o poema completo

24.6.07

O Tiro

Ler o texto completo no jornal Elo da ADFA ou aqui.
[...]
Há uma grande confusão quanto aos conceitos de cobardia e de coragem. Normalmente as instituições militares invertem esses conceitos e rotulam de corajosa uma típica acção instintiva de medo, dado que um soldado, que face ao perigo mantenha a serenidade e se abstenha de matar primeiro o inimigo, é um elemento perigoso para si mesmo e para os seus pares, justamente porque o medo dos inimigos é que os torna a eles verdadeiramente perigosos também.
Foi o medo que fez Ricardo manter o olhar fixo no olhar do rosto por detrás da folhagem, sem vacilar; o medo, que aumentou a produção de adrenalina; o medo, que estimulou o coração; o medo, que elevou o nível de açúcar no sangue; o medo, que escolheu criteriosamente que músculos contrair e que músculos relaxar; o medo, que fez as mãos erguerem, nessa ínfima fracção de tempo, a sua Heckler & Koch Gewehr 3; G3 para os amigos.
A mão esquerda, que a pegou pelo guarda-mão de baclite, e a direita, que já a segurava pelo punho, ergueram a arma, apontando-a àqueles olhos de íris negras e brilhantes por entre a folhagem.
À segunda batida do seu coração já o corpo de Ricardo estava ligeiramente curvado para a direita para se estabilizar na nova posição a que a arma erguida obrigava; mas nem assim os seus olhos se afastaram, pupila com pupila, dos olhos negros por detrás das folhas.
[...]
Ler o texto completo no jornal Elo da ADFA ou aqui.

15.6.07

Batismo de Fogo

A CART 3503 chegou com cerca de cento e cinquenta militares a Mueda. À medida que nos íamos aproximando daquele fim-do-mundo é que ficávamos a saber realmente o que nos esperava e nessa medida também, íamo-nos sentindo cada vez mais sós, até tomarmos consciência que éramos apenas cada um de nós e a morte.
Apenas o conforto de sabermos que éramos cento e cinquenta pessoas a sentirem o mesmo. Como seria se estivéssemos sós, também fisicamente? Eu não sei. Mas o então Capitão António de Almeida sabe.
Um militar acabado de ser treinado para comandar tropas em zona de cem por cento, como então se dizia dos locais onde a probabilidade de não andar constantemente aos tiros e a rebentar minas, era nula. Era para aí que o Cap. Almeida ia. Para comandar uma companhia de militares cansados de guerra e de capitães que, ou tinham sido feridos, ou conseguiram que aquela percentagem de contacto directo com o inimigo decrescesse confortavelmente, pelo menos para eles.


Eu não conheci o Cap. Almeida porque uma mina anti-pessoal adiou para mais de trinta anos depois o primeiro encontro com ele, mas para nos pormos na sua pele basta ler o seu testemunho:



- - - §§§ - - -



As mulheres agarram as crianças, gritam, lançam-se nas valas que ladeiam as ruas. Os soldados desaparecem em direcção aos respectivos postos de combate. E o capitão... atónito, parado no meio da rua, ao volante do jipe, sem saber que fazer, nem compartilha daquela fuga desordenada das crianças que antes brincavam ou dos soldados e mulheres que bebiam...até que um estrondo mais forte e muito próximo, fê-lo saltar do jipe e correr, correr...

[…]
Fora a estreia de fogo, sem dar um único tiro. «Que fazer» - interrogando-se olhando as estrelas. O decurso do tempo haveria de lhe mostrar que o homem é um «bicho» capaz de suportar, até à morte, as situações mais adversas; apesar daqueles que não as aceitam...

© António Almeida

25.5.07

Encontro de Veteranos

Ler o texto completo no jornal Elo da ADFA ou aqui


Encontro da CART 3503 em Pardes no dia 28-04-2007


Para onde vão os sonhos quando morrem?

Para onde vão todos os projectos abandonados, todas os desejos e ilusões que um dia eram certezas e de que agora nem nos lembramos já? Quem souber que diga.

Há dias em que o passado nos visita como um intruso que surge do nada, quando uma alegria súbita e incompreensível nos ilumina todo o ser ou uma tristeza inesperada nos deixa de repente na mais dolorosa sombra.

Porém, há dias que somos nós que vamos ao encontro do passado como quem decide entrar no sótão da casa velha dos nossos avós, pela razão tão simples de o sótão ter permanecido fechado tanto tempo que sentimos curiosidade em saber o que lá se guarda ainda.

Uma ave qualquer, de que não sei o nome e que nada tem a ver com isto, crocita um lamento tristíssimo para os lados do Espírito Santo e o arfar de um helicóptero que deve dirigir-se para os HUC traz-me de volta, no mesmo instante, ressonâncias de África.

Ao cimo da encosta, as árvores inquietas com o vento. No andar de baixo os vizinhos a rirem de vez em quando. E o pássaro crocita, crocita. Pode haver mais tristeza no canto de uma ave sem nome do que no coração de uma viúva.

O carro do lixo desce a calçada da antiga estrada do Tovim num estardalhaço despropositado que me impede de pensar seja no que for durante cerca de dois minutos. Só consigo relembrar os rostos, os sorrisos e algumas frases entrecortadas que ressuscitaram, à mesa do jantar, uma parte de mim que já havia morrido há muito.

Afinal aquela mão no meu braço enquanto o helicóptero não vinha, era o enfermeiro Costa. Eu a julgar que tinham demorado horas a evacuar-me e não foram muito mais de vinte minutos.

Eu tinha frio. Eu tinha tanto frio e afinal o sol fritava os miolos dentro da cabeça de todos os soldados.

E não havia nenhuma música dos Doors enquanto o helicóptero descia na picada e no entanto, durante todos estes anos eu recordo a voz do Jim Morrisson a dizer-me: "Isto é o fim, meu belo amigo. Isto é o fim, meu único amigo, o fim. Custa deixar-te ir, mas não voltarás a acompanhar-me. É o fim do riso e das mentiras piedosas. É o fim das noites em busca da morte. Isto é o fim." E uma guitarra de cordas tangidas como nervos doridos ficou a soar para sempre dentro do meu peito.
[...]

Ler o texto completo no jornal Elo da ADFA ou aqui

17.5.07

Não me Atirem Flores

Alguns vieram. Felizmente muitos. De certo modo os que vieram foram os que sofreram mais, ou pelo menos mais tempo. É por isso que as palavras se recusam por vezes a sair. As palavras explícitas, aquelas que ao serem ditas ferem tanto como aquilo que nomeiam. Mas há coisas que não têm nome. É isso que fica no espaço entre as palavras. Foi para isso que o Homem inventou a poesia e a música: para dizer o que ainda não tem nome mas que se sente tão bem. Não procurem tratados ou obras-primas para sentirem a dor dos que sofreram, procurem antes entre as palavras e entre as linhas o que ainda não tem nome para ser dito.

O Caseiro veio. Esteve lá e veio. Deram-lhe um império inteiro para defender e ele defendeu a parte que lhe coube, como todos nós. Talvez o Caseiro não mereça flores por ter cumprido o seu dever; flores decerto não, mas merece, o Caseiro e todos nós, que um dia tivemos uma arma na mão, o respeito por termos posto a nossa juventude nas mãos de quem nos convenceu que era nosso dever lutar.


As palavras possíveis do Caseiro, que eu publico hoje, são para ser lidas devagar. Para se entenderem bem os silêncios.


===§§§===



Não me atirem flores
Tenho uma arma na mão
Estou com muitas dores
E um aperto no coração
[...]
© J. Caseiro

19.4.07

A Doce Ocarina do Vento Norte

Ler o texto completo aqui. ou no Jornal Elo da ADFA


[...]
O cigarro já esbraseia ao canto da boca e o isqueiro já esta arrumado. Agora Helena pousa os olhos numa lápide em especial, de granito negro, como se tudo o que fizera até aqui tivesse sido uma encenação ou uma preparação para que o seu olhar não se viesse a distrair com mais nada.
Daqui não se pode ver a foto no medalhão oval, de um rosto masculino, numa coloração errada de excesso de magenta, olhando de frente, com um semblante distorcido de quem tentou um sorriso e quase lhe saiu um esgar de dor; nem o livro em mármore branco com o crachá de uma unidade militar e a frase "Eterna audade" a faltar-lhe o "s" e a inspiração.
A velha passa por ela sempre olhando o chão e murmura um "bô tarde stora" como se estivesse a pedir desculpa por estar ali sem ser convidada.
Helena acompanha-a com o olhar até ao portão e então sente que está só no cemitério. Levanta-se e encaminha-se para a sepultura de granito negro. Agora vê bem a foto com excesso de magenta, olhando para ela de frente e o livro com o crachá. "Eterna audade dos companheiros de Mueda."
Quando o pai morreu Helena sentiu alívio. Mais do que uma vez reparou que a mãe remoçara como se tivesse vivido muito tempo na sombra e de repente tivesse ficado iluminada. E as amigas da mãe, que em vez dos pêsames lhe diziam "Acabou-se a tua penitência".
Se não tivesse sido a isenção de propinas por ser filha de um deficiente militar, Helena dificilmente teria conseguido licenciar-se e a sua gratidão de filha resumira-se a essa constatação, até decidir transformar a campa rasa do pai naquele belo túmulo de granito negro.
A foto com magenta a mais olha-a com aquele sorriso dorido e Helena sente uma enorme pena de não ter sofrido uma única vez com a morte do pai. Queria ter chorado, queria ter passado noites em claro com saudades dele, mas a verdade é que Helena já era órfã antes do pai morrer. Um dia ouviu a mãe dizer entre dentes "Estou casada com um cadáver".
Aquela foi a única foto recente do pai que Helena encontrara. Havia só aquele álbum que ele folheava com desvelo, repleto de fotos da guerra em África. Como era possível que o pai sentisse saudades de um tempo de horrores que lhe roubara tudo? Que procurava ele naquele álbum em que aparecia sempre com um sorriso num rosto de criança? Talvez o rosto de criança, talvez o sorriso. Depois as fotos rareavam e o sorriso nunca mais aparecia. Que terá acontecido para o seu pai se ter transformado naquele homem apagado e taciturno que parecia consumir toda a luz à sua volta, até que um dia se consumiu a si próprio totalmente, não tendo ficado nada a não ser a depressão no sofá onde ele se costumava sentar.

[...]

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13.4.07

A chegada a Mueda

A Companhia de Artilharia 3503 foi o que os seus homens foram. Todos sem excepção. E cada um de nós acabou por ser um pouco aquilo que foi cada um dos restantes. É isso a camaradagem. Palavra de ressonâncias militares que significa hoje muita coisa, mas para mim significa o último cigarro partilhado por todos, a última lata de conserva que não matava a fome a um e que dava para todo o grupo de combate, a eminência da morte no olhar de um amigo, a mão a apertar-me o braço enquanto o helicóptero não vinha. ‑Coragem furriel, coragem.

O alferes Silvestre era um desses camaradas. Foi o primeiro comandante da companhia, porque fomos para a guerra sem capitão. Depois veio um capitão mas apenas por algum tempo e o alferes Silvestre voltou a ser o comandante. E depois outro e outro, mas o alferes Silvestre continuou sempre lá. Foi ferido gravemente e voltou. O alferes Silvestre voltou sempre. Posso dizer que foi o nosso comandante várias vezes, enquanto os capitães iam faltando. Tantas vezes, que para todos os homens ele é que era o nosso comandante. O verdadeiro comandante da CART 3503. Tenho a certeza que se nos pedissem para procurar uma palavra para o definir, a palavra mais escolhida seria "camarada". E ser camarada é isso também: voltar sempre a ser um de nós.

É dele o trecho que publico hoje. O espanto e a inocência dos "checas" a chegarem ao mato.
Tudo iria mudar para todos a partir dali e nenhum de nós jamais sairia de lá como entrou.



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6 de Fevereiro de 1972, Porto Amélia

Vista do barco uma baía linda, enorme e a cidade a subir a partir do cais. Fomos saindo do barco de olhos bem abertos e sentidos alerta à espera da guerra e de súbito uma recepção inesperada e ensurdecedora abateu-se sobre nós. Formando duas filas por onde nós teríamos que passar, grupos de homens sujos, roupas em farrapos, cabelos e barbas compridos, olhos esbugalhados e parecendo deitar sangue, gritavam e saltavam como loucos à nossa volta, abraçando-nos e chamando-nos checas. Eram os elementos que sobravam da 2730, companhia que íamos substituir.
[...]
Aqui, um grande ataque inesperado e diferente, tão diferente que apesar de todos os treinos em Portugal, ninguém nos tinha preparado para este. Um enxame de abelhas africanas que terá sido incomodado por alguma das nossas viaturas resolveu vingar-se e cada um fugiu como pode, os que não tiveram tempo chegaram a correr perigo de vida e foram evacuados de helicóptero para Mueda.

Recompostos, seguiu a coluna enfrentando agora novas dificuldades, as chuvas tinham deixado a picada em péssimo estado, pelo que o avanço das viaturas era extremamente difícil.


12 de Fevereiro de 1972, Mueda

Finalmente, as primeiras viaturas entraram em Mueda em 12 de Fevereiro de 1972 e as restantes no dia 13.

À entrada uma grande placa de madeira dava-nos as boas – vindas


© A. Silvestre



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10.4.07

Posfácio

Chamavam esgaseados aos ex-combatentes da Grande Guerra e cacimbados aos da Guerra Colonial, associando os seus traumas, no primeiro caso às bombas de gás e no segundo ao clima de África. O povo sempre soube o que os peritos e as autoridades teimaram em ignorar durante tanto tempo: alguns ex-combatentes sofrem do distúrbio psiquiátrico conhecido por PTSD, Transtorno Pós-traumático do Stress. Para eles a guerra não acaba nunca no armistício.
Confesso a pretensão literária dos textos que aqui vos mostrei, pelo que deve ser tomada em conta a intenção de transmitir sensações em vez de veicular informações, isto é, a verdade que transmito não é tanto a dos factos, como a dos sentimentos.

Mueda – Hospital e morgue – Foto do ex-capitão Almeida
último comandante da CART 3503)

[...] Todas as guerras começam cedo demais, todas acabam demasiado tarde. O tempo que duram serve apenas para medir a dimensão da imbecilidade humana.


Última formatura da CART 3503
antes de abandonar Mueda
Foto do ex Alferes Silvestre - ao centro
(o verdadeiro comandante da 3503)


Que estas minhas palavras sejam entendidas como um apelo para que não caia no esquecimento uma guerra que poderia ter sido evitada, ou que pelo menos poderia ter sido terminada com honra e dignidade e para que não volte a acontecer que políticos corruptos, falsos diplomatas e estrategas trogloditas, convoquem o heroísmo genuíno dos vinte e poucos anos de um jovem, para acudir à sua incompetência inoperante e à sua cobarde estupidez.

[...]

27.3.07

Nunca Voltarei a Mueda



Nunca
meu amor
odiei em Mueda
deram-me
demasiado iguais
amigos e inimigos
Sentados à noite
em redor do fogo
bebendo do mesmo vinho
que canto não nos uniria
onde o ladrar das armas
nos separou

Nunca
meu amor
amei em Mueda
estive sempre só
da minha alma para dentro
Ainda se ao menos
tivesse visto
alguém nascer em Mueda
mas o mais disponível que esteve
a graça divina
foi quando às vezes
ninguém morria


Queria
meu amor
levar-te a Mueda
para ouvirmos
o silêncio das armas
ao pôr-do-sol
e de manhã
à hora que a ignição da vida
acorda o Vale de Miteda
queria amar-te
meu amor

Queria amar-te
na humidade uterina da selva
que não estando ainda
deus disponível
pudéssemos ao menos
iniciar uma vida
onde tantas acabaram

Mas nunca
meu amor
nunca te amarei em Mueda
porque o amor
não germina
onde um homem
nunca viveu
e no entanto
matou


Fotos do ex-Capitão Miliciano António Pereira de Almeida
Último comandante da CART 3503

26.2.07

Desaparecido em Combate

Um dia há-de aparecer a boiar no rio Douro. Antes disso há-de ser feliz durante curtos espaços de tempo, agarrando-se à vida sempre que puder, como um alpinista que sobe dois metros e escorrega um.
Tem nome, tem família, mas agora é apenas uma farda suja que caminha à minha frente. Mal dá para ver que leva alguém lá dentro.
Um dia chamar-lhe-ão ex-combatente, deficiente militar, cacimbado, porque a história dele caminhará sempre alguns passos à sua frente, como agora faz ele em relação a mim.
[...]
Os tiros de todos os lados e os projécteis a estalarem no ar por cima da sua cabeça. Aquele som de chicote das balas a passarem a barreira do som. A fila da frente tomba e ele mergulha no capim. Rasteja, gatinha, corre, foge mata adentro. Sem saber se dos tiros, se do sorriso pegajoso da ordenança, se dos olhos mortiços do major, se do ar demasiado atencioso da mulher que fica em Mueda, enquanto ele tem que ir para o mato.
[...]

Ler o texto completo aqui.

27.1.07

Variações de uma Harmónica no Cacimbo


[...]
Há aqui uma solidão líquida como em certas estações de caminho de ferro em noites de Inverno e eu sinto-me um passageiro solitário à espera de um comboio de que não sei o horário.
A harmónica flutua no cacimbo como um desgosto ou um remorso, em ondas imprecisas como se fosse um improviso casual de alguém que tem o pensamento noutro lado, bem longe daqui. Pouco mais do que uma respiração sonora.
O furriel enfermeiro sai agora a caminho da batota nocturna com a sua permanente mordacidade. "Pensei que os vampiros precisavam de lua cheia" e eu com um sorriso complacente "estou a apanhar um banho de cacimbo antes de ir dormir".
O aerograma no bolso. Sinto-o na mão, fala-me de coisas que entretanto se tornaram estranhas. Parece impossível que para o meu amigo Zé os problemas estejam relacionados com futebol e mulheres; copos e festas. Depois no fim recomenda-me cuidado, como se eu estivesse em risco de apanhar um resfriado.
[...]