11.12.10

Coisas com desalento e alguma esperança

Escrito na nova ortografia




A última rosa do verão.
Vieste, minha amiga, conversar comigo nesta noite fria.
Trouxeste o velho disco. Eu trouxe-te uma rosa.
Que aventura é a nossa que desafia as leis do bom senso? Quando te sentas assim a meu lado parece que vens de longe para visitar-me, ou de um passado distante; e um peso no peito faz-me sentir que as rodas do tempo nos deixaram trilhos profundos na alma.
Mas em breve, a música, o vinho e o fogo mostrarão tão só as marcas do tempo nos nossos corpos. E estas, minha amiga, aceitemo-las como atestados de sobrevivência.
Sabia que virias, e enquanto te esperava escrevi estas palavras como quem faz uma canção. Só para pôr nome ao que sinto por ti. É preciso dizer os afetos, não basta senti-los; é preciso dizê-los como se o tempo fosse pouco e houvesse o risco de algo de belo se perder. Como esta última rosa na tarde que arrefecia. Trouxe-a para lhe fazeres companhia, minha amiga. Porque sorris? Não há nada mais triste que uma rosa solitária ao frio.
Tudo o que morre renasce na reciclagem da Natureza. E tudo o que a Natureza dá avulso, o Homem organiza porque ama o belo.
É assim que dos sons faz música, das palavras poesia e das uvas, minha amiga, faz vinho.
Senta-te aqui. Ao meu lado. Ouçamos o disco que me trouxeste. Logo abrirei a garrafa.
Um dia, assusta-me concebê-lo, tudo acabará; mas o que me assusta não é o colapso do tempo, é a extinção da memória.
Sabes, a morte não assusta facilmente um ex-combatente como eu, somos velhos conhecidos. Havemos de morrer, sim; mas a Terra mãe, dos nossos restos, fará plantas e flores e frutos, e os animais alimentar-se-ão deles, e os nossos restos ganharão vida e movimento de novo. O que me assusta é saber que a memória acabará, e com ela todos os afetos. Um dia, ninguém se lembrará de nós, ninguém ouvirá o nosso disco, ninguém beberá deste vinho. Ninguém saberá que para te ver sorrir, resgatei ao frio a última rosa deste verão.

A estrada velha
366 curvas, como os dias de um ano bissexto, e a cada curva a vertigem da beleza.
Que deu nos homens, que desataram a fazer estradas cortando a direito, convencidos que a vida é a menor distância entre dois pontos?
A estrada velha de Penacova não é uma estrada para chegar mais cedo ao fim, é uma estrada para quem acha que a vida deve ser degustada devagar.
Quando não quero chegar cedo a lado nenhum, tomo a estrada mais bela do mundo e faço dançar o carro com a estrada enquanto a estrada dança com o rio.
Chego a Penacova e paro debaixo da Pérgola para olhar o Proventório e o Reconquinho, depois subo ao Penedo Castro para olhar 360 graus em redor e confirmar que o mundo é belo.

Stress de Guerra
Queria que sentisses o cheiro. Não há uma boa descrição para este cheiro. O camuflado de cores desbotadas de tão sujo. Ligeiramente brilhante, porque o suor conseguia embebê-lo e acabava por aflorar à superfície. As mãos que pareciam também camufladas. E as caras. E tudo.
E o cheiro. Habituávamo-nos ao cheiro com o tempo, mas às vezes com uma reviravolta do ar, algo de untuoso e adocicado, como vindo de um cadáver de dias, envolvia-nos. Mas, como se tivesse origem nas nossas entranhas, como se a própria morte já andasse cá dentro há tempos, e quisesse tomar conta de nós, abraçar-nos, esticando para fora os seus finos tentáculos como heras enredando-se sobre um muro.
Queria que sentisses o cheiro, não para te fazer mal, mas para saberes que uma coisa assim não sai. Fica cá dentro.
Fomos, combatemos, sobrevivemos e voltámos, mas trouxemos a guerra dentro de nós. Uma espécie de morte interrompida, inacabada, como uma fera hibernando.
E nós vivemos e fomos felizes e demos prazer e criámos beleza. Mas dentro de cada um de nós como uma doença em estado latente Ela vive aguardando, com a certeza de que um dia vencerá.

Menina da esplanada
Chegas sempre com o ar de quem perdeu a noite. A solidão à tua mesa às vezes parece uma guitarra de Coimbra lamuriando saudades mal resolvidas. De que sonho de princesa acordaste para a realidade plebeia de encontros por telemóvel?
Imagino expedientes canalhas a tentarem aproveitar-se do que resta em ti de esperança, e nesse teu rosto, onde se desenha o perfil egípcio de uma deusa triste, nunca se iluminou um sorriso que eu visse. Esse rosto, que inevitavelmente vai amadurecer e depois fenecer, precisa com urgência de um motivo para sorrir.
Imaginar que foste o amor impossível de um homem apaixonado, a primeira fantasia de um adolescente, a criança que encheu de orgulho um casal ainda jovem; imaginar que um dia foste o bebé de alguém, e que o balanço da tua vida se salda pela ressaca de uma noite perdida, que ensombra o teu rosto encostado a um telemóvel, carrega-me a alma de pesar; sobretudo por não haver um gesto de ternura que te aconchegue esse rosto cansado contra o peito, depois de ter sentido a fartura de prazer do teu corpo; mas como uma dádiva, e não como um roubo.
Se houvesse compaixão debaixo do Sol, um dia ver-te-ia sorrir.
Sinto um desgosto antecipado com a ideia de desistires de vez de algum sonho que te reste, e de aceitares o compromisso possível, como um soldado que se rende apenas para poupar a vida, sem que a sua resignação permita o benefício de uma causa maior.
Então, para viveres a insipidez compartilhada, deixarás de aparecer. E eu sentirei falta desse teu ar de quem perdeu a noite, desse teu ar de viúva da esperança que povoa de drama a minha imaginação; e a partir daí, a esplanada encher-se-á de desalento, sem ao menos esse resquício de afeto que agora partilhas com alguém por telemóvel; e onde eu, de longe, contigo partilho a solidão.
E onde, às vezes, até parece que o trinado condoído de uma guitarra de Coimbra nos faz companhia.

Memória imprecisa
Surgiu de repente por entre o capim e eu ergui a arma. Uma jovem maconde escavando mandioca sorriu para mim. Baixei a arma.
Sei que o capim era alto, sei que sorria, sei que se ouviam vozes ao longe e sei que o meu coração batia com força, mas já não sei se de susto ou de desejo. Quando tento lembrar-me dessa diferença só me ocorre que é demasiadamente curta a distância entre o prazer e a morte.
Não ficou quase nada na minha memória, a não ser a impressão que me contaram isto há imenso tempo.

Verruga
A médica olhou-me sem entender, e eu repeti: Não quero mandar analisar nada. Se for algo maligno haveria mais alguma coisa a fazer neste momento para além de ter removido a verruga? – Não, nada mais. – Então qual é a utilidade? – Saber a verdade! – Mas eu já sei a verdade. Vou morrer de certeza absoluta, vamos todos; mas não saber quando, nem como, é que nos permite a ilusão da felicidade.
Ao sair daqui posso ser esmagado contra a parede por um autocarro, mas até lá posso viver o melhor momento da minha vida e não quero perder essa hipótese por nada. Se souber já, poderei tornar-me num condenado no corredor da morte, e a felicidade passa a ser impossível; passarei a ser um morto a prazo.
Desde que articulámos a primeira palavra que andamos a fazer perguntas, mas não é para sabermos a verdade sobre coisa nenhuma, é porque temos a esperança que uma dessas perguntas venha a ter uma resposta que mude uma pequena coisa nas nossas vidas, uma pequena coisa que nos faça menos infelizes. Saber antecipadamente as coisas, retira-nos a necessidade de fazer perguntas e não nos garante apenas que ficaremos sem respostas, garante-nos sobretudo que ficaremos sem esperança.

13.11.10

Dor sobrevivente


Tu que sabes como é ver morrer um ente querido; tu que sabes como é ver morrer um avô que te ensinou a viver, cujas rugas te pareciam eternas e, por julgares que sempre fora velho, não teria idade, e portanto jamais morreria; tu que sabes o que é ver morrer um pai, que era aquele que ia sempre à tua frente, aquele que abria o caminho, para quem olhavas quando tinhas medo, a quem te seguravas quando não confiavas nos teus próprios passos, e que agora finalmente te fez homem por te ter cedido o seu lugar; tu que viste morrer a tua mãe, e entendeste que perdeste o teu princípio, e que viste que ainda assim terias que seguir em frente, como um barco a que falta a ré; tu que até sabes o que é ver morrer um filho, algo que ninguém deveria saber por ser tão estupidamente cruel, e que ao sabê-lo, mais nada deve valer a pena querer saber-se, porque é a prova que Deus não ama suficientemente os seus; tu, tu que sabes tudo isso, não sabes, meu amigo, o que é ver morrer um irmão de armas, porque felizmente para ti nunca tiveste a sua vida nas tuas mãos, tendo ele a tua nas dele, numa reciprocidade inigualável em mais lugar nenhum; senão lá onde tudo parecia debater-se com os valores mais primordiais do Mundo; a carne e o ferro, a esperança e o desespero, o poder supremo de tirar uma vida e a miserável impotência de a perder; lá onde tu não foste a moeda com que se comprava a guerra e se vendia a paz, onde tu não foste o alimento lançado à metralha e o pasto das minas; onde valerias menos que uma arma; onde a tua vida, toda a tua história, e a memória de todas as coisas que aprendeste, e ainda o conjunto de todos os teus sentimentos e emoções, que fazem de ti a obra-prima de toda a Criação; tudo isso, tudo isso teria lá apenas o valor insignificante de uma bala certeira; e por isso, não podes saber o que é ver morrer um teu igual, amigo do peito, ou inimigo até, não importa, porque o que importa é que ele serias tu, porque morreu na tua vez, e tu não sabes o que é isso; se soubesses, saberias que todos os que morreram, num incontável número de vezes, eras sempre tu; mas não sabes, meu amigo, por isso não finjas que sabes, e não sejas estúpido ao ponto de desvalorizares a tua ignorância e de sorrires quando me vês uma saudade incompreensível no rosto, e de desdenhares quando a voz me atraiçoa, e me tenho que calar para não se ver que as minhas palavras choram, como só assim choram as palavras de quem combateu, ainda que por ter acreditado que era seu dever, ainda que para sobreviver a cada tiro que dava, mas sobretudo por desespero de julgar já ter morrido; e tu, tu se és homem e tens dignidade, põe-te em sentido, e respeita esta dor irrecuperável de eu ter morrido vezes sem conta.

9.11.10

Por extenso

Escrito segundo o Acordo Ortográfico


Pretérito perfeito
Teimo em dizer isto: fazem-me impressão as pessoas emparedadas na obrigação de levarem a vida como uma festa permanente. Coitadas, não sabem o que é o peso de um drama e a luta para levarmos a melhor à vida.
Não sabem o que é olharmos uma porta que abrimos, e por onde temos imperiosamente de sair, e sentirmos que o que era reversível até aqui, a partir de agora já não tem retorno.
Sofrem da ilusão de que o tempo tem um presente no gerúndio, como um espaço contínuo de fruição, onde, afinal, tudo não passa de uma acumulação de pretéritos perfeitos.
O dia amanhecendo de esperança, e a cada manhã que passa o acréscimo de uma saudade. As manhãs renovam-se, mas jamais, jamais regressam.


Coisas de soldado
Volto a convidar-te minha amiga: vem sentar-te junto à minha lareira e beber do meu vinho. Vem embebedar-te de poesia.
Eu convoco aquele velho disco de vinil onde a estática já não me irrita. Sinto esses estalidos agora, como carícias nas rugas do tempo, uma ternura tua sobre a minha pele cansada de velho soldado.
A garrafa aguardará um pouco na garrafeira, para que nenhuma variação de temperatura acorde o vinho antes do tempo.
Quando a música nos soltar os pensamentos e a imaginação nos fizer sentir os taninos um tanto secos mas bem distintos e integrados na voz mineral, ligeiramente gorda, ligeiramente ácida, do Tom Waits, e uma nostalgia outonal crescer em nós como a revisitação de uma memória esquecida desde a juventude; então sim, eu convocarei o Frei João tinto para soltar a complexidade dos afetos, com fluidez e caráter, e amar-nos-emos com sabores de frutos silvestres de onde desponta um quase impercetível aroma herbal. E o suave balsâmico do nosso beijo será o sonho de qualquer escanção.
Talvez choremos um pouco também, porque, tu já sabes, não me basta o riso fácil; mas verás minha amiga, que os nossos corpos se reconhecerão, e faremos amor em frente ao fogo projetando as nossas sombras na parede da sala como se nos observássemos de uma outra vida.

Menina feia
Recordo-te, não por seres bela, mas porque quando me olhas te vejo mais do que o rosto. Guardo a tua imagem na memória como uma pedra que a natureza esculpiu com vento e com água, com frio e com calor, e depois no-la ofereceu, mas não a todos; só aos que gostam de mulheres. Se fosses bonita olhar-te-ia como olho todas as mulheres bonitas, que um critério estreito elege mais como modelos de beleza do que como mulheres.
Não ligues se alguns homens com boa pinta passam por ti sem te ver, esses gajos são mariconsos disfarçados, precisam de muito estímulo para terem uma ereção.
Fazer sexo é como degustar uma boa refeição, e comer com os olhos é falta de respeito ao cozinheiro.
Senta-te ao meu lado. Falemos do pôr do sol. Falemos de música. Falemos apenas das coisas de que não percebemos nada; vais ver que os nossos corpos se entenderão melhor.

Crepúsculo
Quando a luz esmorece e as casas ganham olheiras de sombra, sabes? à hora em que os sons parecem conversas desinteressadas, sem nos quererem verdadeiramente prender a atenção, estás a ver? e em que as coisas distantes parecem mais próximas e as próximas parecem mais íntimas; a esta hora os pensamentos têm uma profundidade diferente e as palavras surgem-me com uma imposição inelutável. A esta hora apetece-me escrever-te; não falar contigo, mas escrever-te; ainda que vivesses na porta ao lado, ainda que eu tivesse que sair da sala, onde estivéssemos ambos, para poder fazê-lo. E depois, ficar em silêncio à espera, na ansiedade e na incerteza, só para receber a suprema graça de uma resposta tua, e finalmente ficar com a certeza de que se me respondeste é porque valho alguma coisa para ti.
Mas antes, era preciso esquecer tudo, viajar para trás, saltar de costas do fundo do poço do tempo até atingir o cimo, e encarar as coisas entretanto já vividas com a ignorância que permite o prazer da descoberta; passar de novo à tua porta, como se fosse por acaso, e depois cometer todos os erros de novo; ter os mesmos prazeres e o mesmo sofrimento, percebes?
Em breve o dia morrerá, e as olheiras das casas transformar-se-ão numa velatura, e depois no manto escuro da noite que cobrirá tudo. A essa hora já as palavras e os pensamentos serão de puro deleite, e tudo estará bem no seu lugar, entendes?

Os crimes do António
Não entendo a autoflagelação nacional. Fazendo um esforço para descer o meu nível de entendimento à escala da imbecilidade, vejo de vez em quando uns inconsoláveis patriotas cheios de piedosas intenções, ungindo a desgraça nacional com uma autoridade moral de que me escapa a origem. Não passam de criaturas carentes de atenção e de afeto a babarem-se de ciúme. Viram para os seus pares as suas pulhas, e são frequentemente aduladores das grandezas forasteiras; como se ao dizerem mal da sua própria família fizessem crer que degeneraram em qualidade. O nosso grande defeito é dar-lhes atenção.
Alguns chegam ao extremo, como se viu recentemente fazer um grande escritor numa pequena entrevista, de confessarem crimes de guerra que nunca cometeram, por mera falta de oportunidade, já que não por retidão, pois que não estão a penitenciar-se, estão a tentar resgatar um passado em que passaram ao lado da tragédia sem mérito nem glória, e de onde vieram sem ao menos terem uma história sua para contar.
O espaço da ficção é onde podem recriar o enredo das suas vidas, corrigindo a mediocridade das suas experiências, quando as tiveram. Já as declarações públicas, tentando o número da carpideira lamurienta alardeando os podres nacionais, e ainda por cima incluindo-se neles sem pudor nem arrependimento, são um ato patético de volúpia do ignóbil.
Coitados, fazem tudo isto por vergonha de assumirem a própria insignificância; preferem negar a inocência sem mérito, à custa da duvidosa confissão de um crime coletivo.

Tudo bem
Vejo com uma tristeza enorme todos os campeões da nossa democracia rirem-se como se estivéssemos em festa. Insulta-me o seu otimismo apesar de estarmos em queda desamparada no precipício da crise que eles teimam em desvalorizar. Custa-me admitir que acreditei em alguns deles.
Mas olho à minha volta e vejo tudo normal. Acho que as pessoas evitam olhar para baixo para não sentirem vertigens.
De facto, até agora está tudo bem, estamos só a cair. Será que só vamos acordar ao batermos no chão?

4.10.10

Aproximação à poesia

(Escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico)

Cabo da Roca de Tânia Barreto
Mar
Quando ouvia o mar, não ouvia o mar, ouvia o silêncio da tua voz. Agora que tenho a tua voz, já ouço o mar quando ouço o mar.
A tua voz devolveu-me a realidade.

Futebol
Ouvi dizer não sei onde que, não sei em que companhia, não sei em que terra da Guiné, viravam os altifalantes para o mato para que os turras ouvissem o relato de futebol. E durante 90 minutos, de ambos os lados do arame-farpado, só havia benfiquistas ferrenhos e sportinguistas fanáticos.
Mas assim que acabava o jogo, a mais primária estupidez humana regressava de novo.

Vergonha
Um homem morreu e a arma na minha mão ainda quente.
Não fora eu tão lesto e quem tinha morrido era eu.
Havia uma Lei, um Dever, e nós cumprimos o nosso lado da História.
Ou então há um criminoso dentro de nós há espera de uma guerra para tornar num ato heroico a mais miserável cobardia.
Um criminoso, ou então um instinto ancestral adormecido na alma dos homens, ou então…
– Meu Deus, o que nós inventamos por vergonha dos nossos filhos!


Rádio
O alferes tirou todos os pertences ao prisioneiro. Nada valia nada, que os guerrilheiros de pouco vivem. Só um rádio a pilhas mereceu a categoria de despojo de guerra e o alferes levou-o consigo.
Agora, na memória do alferes, o rádio a pilhas é um guerrilheiro humilde que arriscou a vida que lhe davam, para ter direito a ter a vida que queria. E, pelo rádio, o guerrilheiro olha-o a lembrá-lo que os motivos das guerras duram incomensuravelmente menos que a memória da crueldade.
Como queria devolver o rádio para que todos os despojos de guerra fossem com ele! Para que ao devolvê-lo o Tempo rebobinasse a memória.
Mas a inocência é como a virgindade, não se recupera mais.

Cego
Uma cidade de cheiros e sons. Onde a luz falta, o tato sente as superfícies e o ouvido a distância.
De que cor é a alegria? E que sombra fará o ciúme sobre o peito? Há mais coisas que o homem não vê do que as que apenas descobrimos com os olhos.
A vibração do ar anuncia o lençol no estendal e o vento lateral avisa o cruzamento.
O som dos passos devolvido pela parede, diferente do som devolvido pela sebe do jardim, diferente do som perdido no ermo.
Conhecer a natureza do chão pelo ranger da areia, a natureza da amizade pela modelação da voz. Sentir a essência do mundo em vez da aparência.
Às vezes dá que pensar se perder isto vale um par de olhos.
Mas quando a coragem falta; a mim, basta-me levantar as pálpebras e refugiar-me na luz.

ADFA
O quadrado vermelho é o mais democrático dos equiláteros. Dentro dele, o quadrado branco transfigura-se em losango, erguendo-se corajoso no único pé para superar a sua condição de objeto plano, e o quadrado negro, neste incluso como uma íris, fita o Infinito.
Fita-O, e nas trevas de que é feito acende-se um círculo dourado de esperança, que sublima a sua inconformada quadratura.
E a luz que nele se acende somos todos nós.

Eu
Nos fins de semana de agosto, Coimbra ganha espaço para a solidão, pois há mais ruas e menos gente; espaços debaixo das árvores como um tempo à espera de ser vivido; vielas com cheiros que ganham o protagonismo que o bulício perdeu; portas fechadas como pessoas de costas voltadas; janelas com vidraças veladas que guardam a falsa intimidade dos cafés abandonados, onde as cadeiras assustadas subiram para cima das mesas; parques tornados pistas de dança para as folhas caídas ao sabor do vento; o Mondego segurando alguns barcos tristes na sua barriga de água, e que não parece disposto a levá-los para lado nenhum; semáforos que mandam parar de um lado e avançar do outro, e vice-versa, numa teimosia inútil de máquina avariada; um vazio de caixa abandonada; uma inospitalidade de cidade fantasma, onde se passeia a ausência das pessoas e eu.

Ninfa
Passas por mim deixando uma alteração na atmosfera.
Passas e nada mudaria se não fosse eu animal e tu deusa.
Imagino o ar abrindo, molécula a molécula, para te envolver, e depois algo teu, íntimo e exclusivo ficando suspenso e viajando na minha direção, como um perfume nos cabelos da brisa.
Algo hormonal e ínfimo e invisível e imponderável, como um desejo secreto e inconfessável, que se soltasse de ti e viesse desaguar no arneiro do meu corpo.
E eu, besta acuada e ávida de ceva, de venta feroz olhando a tua figura de ninfa a perder-se irremediavelmente por entre a multidão.

Tijolo
Na noite fria de África, cada um em seu tijolo, mexendo no fogo com um pau, contavam histórias que vinham de um tempo antes de todos os dias conhecidos.
Um tempo em que os homens eram todos de uma raça só.
E contavam isso como se fosse uma prece.
Mas enquanto contavam parecia possível, porque as palavras valem quase tanto como os factos se as dissermos como uma prece.
E quando já era tudo uma raça só, eu cheguei, e ninguém notou qualquer diferença.
E deram-me um tijolo para me sentar.

Aurora
Há um equilíbrio de luz e trevas no primeiro momento da aurora. Nada é tão efémero, nada tão fundamental.
Ou será que é porque perdemos a noite para ganharmos o dia, e o equilíbrio está dentro de nós?
Logo, logo, a luz criará refulgências na água e entrará pela janela dissolvendo a penumbra do quarto.
Logo, logo, olharei os teus olhos como espelhos de água sobre os prados, quando a primavera acorda em nós uma vontade selvagem de correr.
E depois, quando a manhã bruxulear já nas paredes e no teto, nós finalmente adormeceremos.

Mise-en-abîme
Pego no meu copo em frente do fogo e tenho uma certeza absoluta, mas não sei a respeito de quê.
Não me basta a alegria do riso. Não me basta ser feliz por ignorância.
Inventámos a palavra, a música e até inventámos Deus. E não contentes com isso, ainda inventámos a felicidade.
Mas a felicidade é a perfeição no tempo presente, portanto com limites; ora a perfeição com limites é um absurdo.
Eu amo a utopia, a loucura e o infinito!
Ah se ao menos estivesses aqui…
Que pena que te baste a felicidade e não venhas enlouquecer docemente comigo. Vem beber deste vinho e olhar a vertigem do fogo.
Quando olhamos o abismo não há quem nos devolva o olhar; ficamos a sós com o infinito.
Vem cair na fundura da memória, vem voar na antecipação do futuro; transpor os limites do tempo é que nos aproxima dos deuses.
Vem sofrer comigo, vem. Há mais contentamento para além da felicidade.
Ser feliz é ficarmos emparedados no presente.

Poesia
Alguém sabe quanta luz precisou a noite para ser madrugada?
Quanta vontade fez da fraqueza força?
Quanto desejo fez do apetite paixão?
Quanto vinho fez do vazio da vida a completude da alma?
Quanta música precisaram estas palavras por extenso para ganharem poesia?
Aproximarmo-nos de algo transforma-nos; ultrapassá-lo pode perder-nos. A poesia possível está na contenção; como o prazer, na sustentação do orgasmo.

11.9.10

A Noite



Texto de José Caseiro - Fur. Mil da CART 3503

O dia já ia longo, a noite aproximava-se rapidamente, estava a começar a escurecer; estávamos em pleno mato, tínhamos que pernoitar ali, mas o local não era o mais indicado.
Há que procurar um lugar seguro para pernoitar; um lugar distante dos trilhos e que nos oferecesse uma boa camuflagem para não sermos detectados pelo IN.
Encontrado o lugar há que proceder às regras de segurança, fazer o círculo, nomear o primeiro que iria ficar de vigia e, mediante o número de pessoas se estipulava o tempo de vigia. Assim procedia a CART 3503, não facilitando em nada nos momentos vividos no mato.
Entretanto eu ia analisando o terreno, procurando um bom local para fazer uma boa cama, com um colchão de terra batida e o mais plano possível para no dia seguinte não acordar com o corpo todo dorido.
Enquanto preparava a cama a minha companheira esperava tranquilamente para se deitar comigo, que bela companheira eu tinha. O quanto eu gostava dela, gostava tanto dela que andava todo o dia com ela ao colo; tinha um carregador de 20 munições e mais uma na câmara, sempre pronta a disparar a qualquer momento que fosse necessário. Companheira que sempre me acompanhou nos momentos difíceis que eu passei em Mueda e que a abandonava no quarto da flat para ir para o bar dos sargentos desfrutar um belo descanso com umas cervejas, umas anedotas, uns cigarros, um jogo de cartas. E mais umas cervejas, e já noite, ao regressar ao quarto, um pouco alegre, para não dizer borracho, ela nunca reclamou, sempre ali esperando por mim á cabeceira da cama.
Mas naquela noite, ali no mato, como era de costume, deitou-se ao meu lado, a contemplar a lua e as estrelas, e como era hábito também, desejando que no dia seguinte não fosse necessário ser usada.
A noite estava a ser calma, quando de repente alguém salta, se sacode, se despe, todos acordam e a perguntar o que foi? Esse alguém era o soldado A, B ou C que com o cansaço adormeceu sem que tenha atirado para longe a lata com restos de comida da ração de combate, o que para as formigas era um rico banquete.
Formiga, animal tão pequeno, que nos fazia ter um enorme respeito por ela, que só quem lá andou sabe o quanto elas nos faziam sofrer quando resolviam subir pelas nossas pernas acima e nos ferrar nas partes mais sensíveis, era cá uma aflição que por vezes éramos obrigados a despir as calças para nos livrarmos delas, mas só do corpo, porque a cabeça ficava lá agarrada.
Muitas noites no mato foram passadas; noites quentes, noites de cacimbo, noites de chuva, onde o melhor seria dormir de pé, se pudesse ser; com um colchão ondulado, plano, com covas, com pedras… mas lá passávamos a noite dormindo.
Hoje, quando se vai a qualquer lado, como não podemos levar a nossa cama, lá passamos uma noite quase em branco, porque estranhamos a colchão ou o travesseiro. Como somos esquisitos agora, quando naquele tempo já nos bastava não ser incomodados a tiro quando dormíamos; onde estávamos deitados não importava.
E assim o tempo vai passando, as recordações vão aparecendo de longe em longe e fazem-nos reviver esta ou aquela situação, fazendo-nos revisitar a nossa passagem pelas terras do ultramar e pela Guerra de África.


Texto de José Caseiro - Fur. Mil da CART 3503

24.8.10

A Grande Fome



As folhas de oliveira têm um som único quando ardem. A água do escorrido a ferver na trempe sobre o fogo, também. E o vinho a sair do garrafão para o copo? Tudo tem um som único, essa é que é a verdade. Tudo tem um sabor único, um cheiro único. E cada momento que passa é único também. Mas quando estamos entretidos a viver a vida, não damos por isso; e ainda bem, porque não há nada nesta vida que supere vivê-la. Mas chega sempre uma noite de verão como esta em que a vida parece que parou porque toda a gente dorme. Será tarde? Ter-me-ei esquecido das horas enquanto recordava o almoço em casa do Zé e da São e estes pensamentos antigos me assaltaram?
Mas sem me ter esquecido das horas, sem esta solidão, sem este silêncio, como poderia ouvir de novo as folhas de oliveira a darem estalidos no fogo, o escorrido a borbulhar na panela, o garrafão a gargarejar vinho para o copo e os movimentos das pessoas à minha volta, únicos e irrepetíveis?
A hora da ceia.
As coisas apareciam sobre a mesa vindas não sei de onde. Chegava a hora de comer e as mãos habituadas a tarefas árduas e rudes ganhavam movimentos leves de dança.
Nunca ninguém pegou numa boroa de milho como a minha avó. Trazia-a para a mesa envolta num pano com uma mão por baixo e outra por cima. Pousava-a e abria o pano com a elegância e o cerimonial de quem manuseava os paramentos da eucaristia. "Nunca com o lar para cima, meu filho, nunca com o lar para cima, que é pecado."
A relação da minha avó com os alimentos era como o ritual da consagração, só encontrável entre as pessoas que produzem o que comem, e mais especialmente entre aquelas que alguma vez passaram fome. "Íamos inda de noite escurinha a Tamengos pra comprar uma mãoxita de farinha pra fazer pão e muitas das vezes vínhamos sem nada."
A comida não era um dado adquirido para quem atravessou a Grande Fome, como a minha avó chamava à Segunda Guerra Mundial.
"No tempo da Grande Fome, meu filho, uma ocasião cheguei a casa tão feliz com uma farinha tão fina e tão branca; mas já quando a tendia parecia que era obra do diabo, peganhenta que não saía dos dedos, e depois de cozidas as broas ficaram duras que nem adobes. Que maldade, meu filho, que maldade! Que alma danada é o home que vende gesso misturado na farinha a uma pobre mãe que quer matar a fome à filha doente…."
Pesa na minha memória, como se eu a tivesse testemunhado, esta imagem da minha avó metendo massa de boroa no forno e tirando adobes, como se Deus tivesse enlouquecido. E não enlouquece no coração dos homens? Quem combateu sabe que sim. Quem pegou numa arma, ainda que para cumprir um dever, sabe que escondido dentro de cada um de nós há um deus enlouquecido.
E a minha avó limpava os olhos com os polegares como nunca vi fazer a ninguém. Como se quisesse esmagar as lágrimas. "Que maldade, meu filho, que maldade!"
Era mais aceitável morrer envenenado com comida estragada do que deitá-la fora. A minha avó amava cada pedaço de pão já rijo, cada fruto meio podre. "Primeiro as maçãs tocadas meu filho", e eu cruelmente inocente: "Mas assim nunca comemos maçãs boas, vó!"
Um simples feijão-verde era o produto de muita dedicação, labor e contemplação, a boroa de milho não levedava sem uma oração adequada, e o meu avô aguardava pela chanfana como um pai aguarda pelo seu primeiro filho, fazendo círculos no pátio.
Experimentassem recusar um copo de vinho, que logo entenderiam isto. Quem recusa um copo de vinho não quer saber o trabalho que deu, e não há maior sacrilégio que recusar um copo de vinho a quem podou, empou, cavou, sulfatou, desramou, vindimou, pisou as uvas, e muitas vezes teve que lançar mão da água e do açúcar para operar o milagre da multiplicação quando a Natureza se mostra somítica. Recusar um copo de vinho ao lavrador, é como desfazer na obra de um artista, é como desfeitear um filho seu; faz-se um inimigo para a vida.
Às vezes de estômago vazio, vinham-nos as lágrimas aos olhos com a acidez, ou ficava-nos a língua perra como se tivéssemos ingerido um adstringente, mas ai de quem não tivesse um ar embevecido olhando a zurrapa a contraluz com um assentimento de aprovação. Quem mata o corpo a pouco e pouco para extrair da terra bruta o seu sustento e algum conforto e no-los oferece, não aceita menos que gratidão em troca.
Outras vezes pela noite dentro uma roda de amigos, celebrando a amizade num copo de vinho! E a minha avó de manhã: "De que tanto falam vocês?"
Que pena que te tenhas perdido, meu amigo, nos labirintos da vida que nos atraem e entontecem. Não sabes a falta que me faz erguer de novo o meu copo e proferir a maior das banalidades como se tivesse acabado de resolver todos os problemas da humanidade numa palavra. Foi o mais próximo que estive de ter um irmão. E vai mais um copo! Tu rias-te, e sem concordar, concordavas sempre; e eu não acreditando, acreditava sempre; sim, porque os homens precisam desta fraternidade. Os homens vivem em alcateia. Mais um copo, só mais um, e a noite lá fora não tardará sem nós.
Já quase não bebo, sabes? Só fora das refeições, quando encontro alguém que saiba o que é a amizade.
E quando ia lá fora urinar contra o muro do pátio? Não tardava nada, estávamos todos lá fora a urinar contra o muro. Quem nunca mijou contra um muro sem deixar morrer a conversa não sabe o que é amizade. E depois de arranjar espaço para mais, voltávamos para a adega. Só, só mais um, e a noite não amanhecerá sem nós. "De que tanto falam vocês?" lá perguntava a minha avó de manhã.
Ainda hoje não sei. Será que trazíamos em nós a memória genética da Grande Fome da última guerra? Será que antecipávamos um tempo futuro onde outra guerra nos haveria de roubar a própria juventude? De que falávamos nós pela noite dentro?
Ah, que interessa isso agora? Esse era o tempo de todas as certezas. Não fazíamos perguntas à vida; nós tínhamos as respostas.
Hoje O Zé e a São, da minha idade, lembram-se de mil histórias como esta. Mas cada história que recordamos é única para cada um de nós. Como aquele momento, hoje, ao almoço, era ele único e irrepetível também.
Enquanto traziam comida para a mesa era como se celebrassem todas as virtudes da Terra. Desde o início da Humanidade que o Homem celebra à mesa as virtudes da Terra, e é nesse acto colectivo que forja as cadeias da amizade.
E um imenso consolo feito de afecto e respeito tomou conta de mim e sobrepôs-se à gula. Não eram géneros colhidos nas prateleiras multicolores do hipermercado, como produtos de uma linha de produção, repetíveis e idênticos como clones, eram legumes nascidos lá mesmo, no quintal, onde outros aguardam a sua vez, sob o olhar paternal de quem lhes deu vida, era uma boroa oferecida pelas próprias mãos que a amassaram, como um acto íntimo de ternura. Era o vinho, que é sempre o orgulho da casa.
Perdeu-se isto. Só quem nunca teve isto dia após dia, dia após dia, não sente que se perdeu para sempre; ou que está mesmo, mesmo, prestes a perder-se.
E eu a pensar outra vez na minha avó a trazer a boroa como se fosse um tesouro, e a colocá-la na mesa como se fosse a taça da eucaristia.
Pela festa da Nossa Senhora do Ó, quando o leitão assado pontificava a abastança do almoço melhorado, e os olhos de todos se enchiam de uma grande alegria; no olhar da minha avó, havia ainda uma sombra de mágoa, e baixava envergonhado por destoar dos olhares de festa em redor. "Que é isso vó?"
"Que Deus me perdoe, meu filho, que nunca como uma migalha de pão que não me lembre da Grande Fome." E esmagava as lágrimas com os polegares.

31.7.10

Uma História que não Aconteceu


Ela olha os catorze degraus da Sé Velha. Parece contá-los.
Agora o seu olhar está a subir devagar pela fachada. Parou e ficou muito tempo naquela posição, talvez admirando as ameias. Deve tê-las achado feias. Uma catedral com ameias não lhe deve ter parecido bem, nem a bela torre-lanterna do cruzeiro tão recuada. Que pena na Idade Média não construírem os templos a contarem com os turistas. Apeteceu-me ir dizer-lhe que subisse a rua Borges Carneiro para ter uma perspectiva melhor.
Eu folheava um livro de Lídia Jorge. Ainda não lia: folheava. Nunca mergulho num livro sem lhe avaliar a temperatura. Converso com ele. Leio trechos separados.
Reinicio várias vezes para me habituar ao paladar; deixo que o livro me domine. Só começo verdadeiramente a ler quando não penso em mais nada; e agora não me sai da cabeça o soldado Lourenço a fazer riscos no ferro da cama. Cortava um risco ao meio, com a ponta da faca do mato: mais um dia passado no inferno, menos um dia para o regresso a casa.
Depois ia dormir.
Ela deve ter quarenta anos, caminha com elegância apesar da calçada irregular. Olha sempre para a fachada do monumento. Parece afectada, artificial, como se estivesse a exibir-se para alguém.
O livro tira-me dali por instantes. Uma jovem. Um casamento. Um entardecer em África. Uma atmosfera de doce alienação. A guerra colonial começa a pairar sobre a história apenas como uma trovoada distante. A mulher olhando os degraus da Sé Velha numa pose estudada. O soldado Lourenço a fazer riscos no ferro da cama. Na rua da Ilha um aluno do conservatório tira sons angustiados de uma tuba. Ao mesmo tempo uma voz feminina parece fazer gargarejos.
A mulher ficou a observar os degraus novamente.
Um pé no primeiro, como que a ganhar coragem. Deve ter vindo pela rua íngreme do Quebra-costas. Começa aqui uma história. Uma mulher de quarenta anos parou exausta em frente da Sé Velha. Se subir aqueles catorze degraus e entrar, vai provavelmente passar por uma lápide que tem o meu nome.
Bem, a história não começa aqui. Na verdade, nós sabemos quando a história de alguém acabou, mas não sabemos quando começou. Esta história terá começado quando sepultaram aquele bispo com o meu nome? Quando erigiram a Sé Velha? Talvez as histórias devessem ser contadas do fim para o princípio. Por exemplo, o soldado Lourenço tinha a história da sua passagem pela guerra toda contada.
Setecentos e trinta e um riscos; um para cada dia de comissão.
Maldito ano bissexto que o obrigaria a passar mais um dia na guerra. Depois cortava os riscos no ferro da cama com a ponta da faca do mato. Riscava mais um dia que não viveu.
Depois ia dormir. A mulher subiu os catorze degraus para poder entrar nesta história. Imagino-a a parar junto à lápide e a tentar ler o meu nome em latim. Os meus três nomes.
Aquela mulher vai dizer o meu nome completo. Durante um instante estaremos unidos por um equívoco.
Mas sem equívocos não há história. Se tudo se passar como é espectável – setecentos e trinta e um riscos no ferro da cama, nem mais um, nem menos um – não há história.
Mas a história de guerra do soldado Lourenço tinha demasiados equívocos. Se tivesse riscado todos os dias de comissão com a ponta da faca do mato, teria de acrescentar mais cinquenta e sete riscos, tantos quanto os dias que os seus camaradas cumpriram a mais em Mueda, para depois abatê-los com um traço; porque os dias na guerra não contam como dias de vida. Mas o soldado Lourenço tinha que morrer numa emboscada; e isso fez daquela história contada em riscos, como hieróglifos numa tumba egípcia, um equívoco total.
O livro começa a prender-me. Depois da história inicial, começa a revelar-se a vida por detrás da história. A vida é incomensuravelmente mais complicada do que a história.
A mulher desce já os degraus da Sé Velha, como uma modelo numa passerelle, elegante e sensual, fazendo com que as pernas se cruzem levemente à medida que desce.
Entretanto, passando à minha frente, um homem entradote na idade tenta fazer um traveling com uma câmara de vídeo compacta. Tarefa difícil numa calçada medieval.
– Ficou legal?
– Meio difícil né? Caminho irregular demais! Como é no interior?
– Oras… não deu nem pra ver. Um bocado escuro.
– Tão não dá pra filmar.
E sobem a rua da Ilha sem olharem para trás. Sem levarem nada. No entanto, aquele templo românico tem uma história em cada pedra. Levam um filme das escadas, a única parte que não pertence verdadeiramente ao monumento, construída muito recentemente em substituição de um antigo terraço ao nível da entrada.
Não há história sem equívocos, mas também não há história sem emoção. Como é possível estarem tão perto de entrar em contacto com a infinidade de histórias daquele templo, e ficarem satisfeitos com a escada de acesso? Tanta riqueza à mão e levam apenas umas imagens insípidas numa câmara compacta.
Confesso que gostaria de ter guardado apenas um vídeo do soldado Lourenço a riscar o ferro da cama. Fechava a sua história numa cassete, num DVD, e talvez a história dele não se intrometesse agora na minha leitura. Mas a história dele nunca mais me largou, porque não dei apenas os passos necessários para entrar nela e os passos necessários para sair dela, sem nada pelo meio. Ele a riscar o ferro da cama com a faca do mato. Setecentos e trinta e um riscos. Maldito ano bissexto. Ele contava a sua história de guerra ao contrário.
Em contagem decrescente. Setecentos e trinta; setecentos e vinte e nove. E depois ia dormir. Aos seiscentos e sessenta e um parou. Nessa altura, a trovoada da Guerra Colonial estalava mesmo por cima das nossas cabeças e um estilhaço de morteiro terminou-lhe o dia a meio.
Uma história com fim prematuro, quando o soldado Lourenço faleceu em Nampula dois dias depois. Eu deveria ter ido riscar esses dois dias no ferro da cama dele, porque se deve acabar a obra de um homem, nem que essa obra seja a contagem decrescente para a vida depois da guerra.
No Largo da Sé Velha a vida também avança sem esperar que alguma história aconteça. A tuba faz vibrar o ar fresco, para os lados do Conservatório. Às vezes ouvem-se os vocalizos da voz feminina, como gargarejos. O casal brasileiro há-de achar estranho aquele desconcerto musical.
Lá vão eles, rua da Ilha acima, talvez em busca do campus universitário. Devem colher algumas imagens em frente à Porta Férrea e pronto. Para quê perder mais tempo com detalhes?
Uma história que não aconteceu. O que mais há são histórias por acontecer. Há uma pedra tumular com o meu nome completo. Há muita gente que já leu aquele nome em voz alta como se falasse comigo, mas só a fantasia humana poderia ligar uma dessas pessoas a mim. O mundo não tem poesia nenhuma. Estética nenhuma. O mundo é um acumulado de ocorrências avulso. Somos nós que organizamos o divino caos universal na vã ilusão de criar beleza e de criá-la perene. Contamos histórias, erigimos catedrais e construímos universidades para que não se perca para sempre a beleza que um dia alguém sonhou. Nem que seja o belo sonho do impossível regresso a casa, quando a trovoada da guerra fazia estalar o céu mesmo por cima das nossas cabeças.


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9.7.10

A Alquimia do Outono

Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho.
Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade madura.
Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.
A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos, que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, a fazer concursos de matar rãs à pedrada.
Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.
– Olh'ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu'é que não calça o raça dos sapatos?
Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço, e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços. Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.

Entretanto nos vinhedos do Solão a alquimia do Outonho transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.
Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco, e os vindimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si. Ora, toda a gente sabe que a necessidade que leva ao acto aguça normalmente o engenho, que por sua vez inspira a tolerância do julgador, mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça e pilhávamos os vinhedos em busca de um cacho ou ao menos de uma esgalha esquecida.
– Serafim, Serafim, s'eu achar é pra mim!
O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde o dia dava mostras de sonolência. E o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à acção.
E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:
–Tarde!
Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto antes. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto antes.
Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.
Um dia na loja da senhora Idalina vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada doméstica para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.
Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície, e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.
Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.

21.6.10

José Dentinho - Quando o corpo é uma prisão

Entrevista para o Jornal Elo da ADFA
O Dentinho tem 65 anos. O Dentinho é tetraplégico há 44, há uma vida inteira. Tanto que, durante toda a conversa connosco nunca reviveu uma única memória anterior ao acidente que em terras de Angola, durante a Guerra Colonial, o privou de quase todos os movimentos e o condenou à prisão perpétua dentro do próprio corpo, como se antes disso a vida que viveu já não fosse sua.
No quarto, para além de uma televisão, de uma aparelhagem estéreo e de algumas fotos nas paredes, um crucifixo e uma imagem da Virgem de Fátima.
Lá fora, na viagem para aqui, sob o sol de Maio, fiadas intermináveis de crentes que receberam a graça da Virgem de Fátima cruzaram connosco enquanto pagavam, passo a passo, cada milagre recebido. Mulheres pelos seus homens, homens pelas suas mulheres, mães pelos seus filhos, a caminho da Cova da Iria. E ali a dois passos de nós uma velhinha, que já não pode dar um passo sob o peso dos seus 81 anos, parece desmentir as virtudes da fé.
Que terá feito para não ter merecido a graça de receber o seu filho de volta como o conhecera? Não acredito que não tenha pedido fervorosamente, a julgar pela imagem da Virgem num lugar de destaque.
– A minha mãe sofreu muito, sofreu muito.
Que me desculpem os muitos religiosos mas eu recuso-me a aceitar que esta mãe tenha feito alguma coisa a menos ou a mais, que todas as outras que seguem hoje para Fátima, para ter merecido a indiferença da Virgem.
Mas não façam caso, é difícil evitar a ingenuidade dos lugares-comuns ou a blasfémia fácil perante os grandes dramas da vida. E a verdade é que estávamos ali perante um dos mais difíceis de tolerar.
Um jovem, que me atrevo a dizer que era bonito, a julgar pelas fotos na parede, num instante da sua vida, num átimo da sua existência, tem um acidente e perde o controlo do seu corpo para sempre, e passa por uma via-sacra de incompetências e de indiferenças que parecem não ter parado nunca; nem agora no Portugal que acrescentou a sua estrelinha à constelação da bandeira europeia.
– Primeiro mandaram-me para ortopedia onde eu me feri todo, e só mais tarde é que descobriram que o meu caso deveria ser tratado no serviço de Neurologia. Depois um braço caiu-me contra a parede, eu não sentia nada, que até estive algum tempo em coma, e apanhei uma artrose no cotovelo e fiquei sem poder mais mexer o braço. O outro braço que estava melhor, uma enfermeira ao virar-me fez-me outra artrose no outro cotovelo.
Passados uns anos fiz novamente exames à coluna e disseram-me que se eu tivesse sido logo operado que era capaz de ficar até, não se diz a andar pelo meu pé; mas ao menos a comer pela minha mão, poderia ficar.
E agora acabaram com o Hospital Militar de Coimbra aqui a 40 Kms e como faço quando precisar de ajuda? Vou ao Porto? Há dias tive que ir ali ao Hospital dos Covões e deixaram-me lá mais de 24 horas sem me fazerem nada. Nem ao menos me deram um copo de água.
Preciso de ser visto, por causa das dores que agora sinto no abdómen, não são dores, é uma coisa horrível, mas agora tenho que ir ao Porto ou a Lisboa.
O Dentinho tem uma carta escrita para mandar à Ministra da Saúde, ao Primeiro-ministro e ao Presidente da República a pedir-lhes que não lhe tirem o Hospital Militar de Coimbra que lhe tem valido toda a vida. Só esperava que lhe déssemos as moradas certas para a carta chegar aos seus destinatários.
– Depois do acidente, alguma vez tiveste algum médico, algum psicólogo, alguém que te explicasse o que iria ser a tua vida futura e te preparasse para as limitações da tua deficiência?
– Não, nunca.
– Então como ficaste a saber que irias ficar imobilizado para sempre?
– Quando estava no Serviço 6, por causa de outros colegas que já lá estavam e que me diziam"Ó pá, olha que tu prepara-te, que isso nunca mais, nunca mais."
– Mas apesar de teres estado em Alcoitão, onde me dizes que te trataram bem e onde recuperaste um pouco, e de já teres estado num lar, preferes viver aqui na tua casa e com a tua família, não é verdade?
– A minha família tem-me ajudado muito e não quer que eu saia daqui mas a minha mãe já não pode das pernas. Sofreu muito, muito, e eu tenho que ir para o lar da Cruz Vermelha.
Mais tarde, quando regressávamos a Coimbra perante a beleza do Paúl de Arzila e da planura calma e luminosa do vale do Mondego, como não sentir o desejo de ser ave e voar para abraçar no voo todo aquele espaço ao nosso alcance?
Mas aquele espaço vibrante de luz e aparentemente sem limites, ao contrário do que seria de esperar, oprime-nos agora. Talvez por sentirmos a frustração de sermos tão limitados e indefesos. Sobretudo, depois de termos visto como um homem pode ver reduzido o seu horizonte aos limites do seu corpo.
José Dentinho, prisioneiro do seu próprio corpo, reduzido aos movimentos da cabeça e de dois dedos da mão esquerda dirigiu da sua cadeira eléctrica um negócio de venda de produtos agrícolas e um mini-mercado, durante muitos anos, até as escaras provocadas pela imobilidade física o terem feito parar recentemente.
– Eu em Alcoitão era bem tratado. Não é que não gostasse de lá, mas sentia-me inútil, aqui tratava das minhas coisas. Mas foi lá que aprendi a escrever com a mão esquerda numa máquina eléctrica e a assinar o meu nome e a dirigir a cadeira eléctrica.
Até há um ano, mais coisa ou menos, eu movimentava uns milhares de contos por ano com o meu negócio, fora a loja. E na loja sempre falava com as pessoas, agora por causa das fístulas não posso sair daqui e como não uso a mão começo a perder o movimento da mão.
Às vezes ouvimos algumas frases bonitas proferidas por alguns imbecis com protagonismo, que dizem que a liberdade é uma atitude e que a vontade de um homem tudo supera. Não é isso que sinto no fim daquilo que pretendia ser uma entrevista e acabou sendo uma lição de humildade face à nossa impotência perante a brutalidade da vida.
Despeço-me do Dentinho junto à barra da cama dizendo banalidades, porque seria inútil um aperto de mão e impossível um abraço, enquanto o Zé Maria e o Álvaro, mais ágeis de entendimento, se despediam do Dentinho com uma carícia no rosto, a única parte sobreviva do corpo que pode ainda reconhecer o afecto de um amigo.
À saída diz-me o Girão: "E às vezes ainda nos queixamos…"
E lá seguimos nós para a carrinha, o Girão e eu, envergonhados por termos apenas falta de uma perna.

7.6.10

Estupidário

Darwinismo
Não há nada inteligente debaixo do Sol. Tudo o que se conhece surge sem saber. Todo o ser que ganha saber apenas reproduz o que aprendeu com a sua espécie ao longo de milénios de evolução.
Às vezes, algo de novo surge, não por um acto racional mas como fruto da mais pura aleatoriedade, ou seja, da estupidez.

Imaginação
Um sardão pasmado ao sol. Um gafanhoto a estrebuchar-lhe na boca. Parecem posar para uma foto. Parados. Só uma perna do gafanhoto a tremelicar no canto da boca.
Deve demorar pouco para o gafanhoto deixar de ser um gafanhoto. O sardão também vai deixar de ser um sardão qualquer dia. E a pedra onde estão esboroar-se-á e deixará de ser uma pedra.
Tudo deixa de ser o que era, mais cedo ou mais tarde. Depois outra coisa quase igual toma o seu lugar. Outro gafanhoto, não necessariamente melhor que este. Outro sardão. Até outra pedra como esta há-de surgir em algum lugar neste universo.
Pelo menos à escala humana isto é estúpido; ou, a sermos governados por um ser inteligente, falta-lhe imaginação.

Calculismo
O matemático filósofo Blaise Pascal dizia-se crente por uma questão de inteligência.
Dado que se Deus não existisse nada lhe aconteceria, quer fosse crente quer fosse ateu; mas se Deus existisse ele seria punido se fosse ateu e seria recompensado se fosse crente.
Não há maior estupidez que evocar a inteligência partindo do princípio que Deus é estúpido.

Perfeição
Ela olha-se ao espelho e gosta do que vê, no entanto, demora-se em retoques de maquilhagem com as minúcias de uma restauradora de quadros antigos. O cabelo leva-lhe mais tempo. Quando se dá por satisfeita, ainda alinha uma madeixa sobre a arcada supraciliar direita com o cabo do pente para pronunciar um efeito de elegante negligência. Afasta-se dois passos para ter uma visão de conjunto e passa as mãos numa carícia sobre as ancas com o álibi de alisar o vestido.
Da cozinha o aroma do arroz de pato vem até à sala e ela aguarda o som da campainha da porta para acender as velas e baixar a luz ambiente.
Tudo perfeito, pensou.
Ele entrou. Passados alguns minutos a travessa do pato ficou reduzida a uns restos, as velas sujaram os candelabros, o vinho sujou os copos, algumas migalhas de pão sujaram a toalha.
Dois sapatos de salto alto à entrada do quarto.
Duas horas depois ele saiu. Ela olhou-se ao espelho de novo. O penteado desmanchado. A maquilhagem esborratada.
Depois, olhou languidamente pela porta a sala em desalinho.
Tudo perfeito, pensou.

Ignorância
Meu amor, amo-te porque não sei que te amo. Se soubesse, amar-te-ia por um motivo que me fosse grato e não por amor. O amor vive da ignorância de si.
Chegas, e as coisas perdem sentido à minha volta. Olho-te, e fico em êxtase como Narciso perante o espelho das águas. Falas, e toda a música se torna desnecessária. Ficas a meu lado, e o mundo já não poderá melhorar mais.
Mas não sei porquê.

Previsão
O meu modesto barbeiro antecipa-me todos os grandes fenómenos sociais enquanto me corta o cabelo. Não me lembro de alguma vez ter acertado nas suas previsões.
Chego a casa e ligo a TV em busca de alienação para a frustração de continuar a pagar o mesmo, e cada vez ter menos cabelo para cortar
Na TV um professor catedrático debita, mas com mais detalhes inúteis, as mesmas previsões falhadas do meu barbeiro.
Finalmente sinto um pouco de conforto, porque eu pago muito menos ao barbeiro que a televisão ao professor, para o mesmo resultado.
Será que ao menos o professor sabe cortar cabelo?

Senilidade
O Mondego ao fundo era uma cobra de prata. O sol mostra a realidade e a ilusão. Os nossos olhos aceitam ambos.
Ela sorriu com a tristeza que só um sorriso pode ter. Ele demorou a entender a tristeza vestida de sorriso.
Só a luz do meio-dia parecia entender tudo: o rio, a tristeza, o sorriso, e a mulher e o homem sorrindo um para o outro.
Todos os dias, como hoje, vinham à varanda, dir-se-ia que, para verem o rio fingir de cobra de prata transvestido de luz; mas ela vinha apenas ensaiar um sorriso e ele tentar entendê-lo.
Quando ao fim do dia, as empregadas do lar de Penacova lhes vieram mudar as algálias, o homem e a mulher sentiram uma ténue felicidade, com a memória, embora imprecisa, de terem tido uma história de amor.


O Zé da cadela, enquanto pôde, foi a Fátima a pé. Pagou a prestações anuais um empréstimo que contraiu com a Virgem. Ela concedeu-lhe a vida na Guerra da Guiné, e ele ia rezar meia dúzia de ave-marias no dia 13 de Maio em frente do santuário, sem juros nem spreads nem outras alcavalas. Ficou-lhe cada ano de vida à razão de 6 ave-marias e os 30 Quilómetros, palmilhados de Leiria à Cova-da-Iria.
Hoje morreu o Zé da cadela com todas as contas saldadas com a Virgem.
Porque me custa adormecer esta noite, não conformado com os mistérios da fé? Será que, não havendo um único resquício em mim, eu preferisse, intimamente, ser capaz de ignorar a quantidade de mortos que teriam pago mais ave-marias e ido de mais longe rezá-las e até com mais convicção, a troco de sentir no lastro da minha alma o dormente conforto de não pensar?

Estupidificação
O chefe avalia o subalterno, o subalterno bajula o chefe, o chefe recompensa o subalterno, o subalterno chega a chefe.
Nesta regressão natural das espécies premeia-se a prevalência do mais esperto e prepara-se o futuro para chegar à estupidez generalizada.
Finalmente, depois de quase um milénio de existência, Portugal terá condições para chegar em primeiro lugar.

Previsibilidade
Fortes convicções têm-nas os fracos. Certezas absolutas os tontos. Coerência de princípios os fanáticos previsíveis de todos os credos.
Abre os olhos só o necessário para não chocares com a liberdade de pensamento sem a reconheceres.
Não acredites demais em ti. A tua única manifestação de inteligência possível é a de questionares o rumo do rebanho de que fazes parte.
Destrói o GPS, rasga todos os mapas e fecha os olhos. Aprende com os cegos a ver na escuridão, e vai a corta-mato.
Depois sim, puxa da arma e dispara.
Vale mais atirar à sorte num inocente do que suicidares-te por impotência.

Heroísmo
Pegue-se num homem ainda novo.
Macere-se a sua carne e rale-se o seu espírito com uma educação alienante e manipuladora.
Junte-se em doses iguais: demagogia, religião e romantismo.
Tempere-se com patriotismo quanto baste.
Reserve-se a marinar durante alguns meses num quartel ou base militar para apurar do tempero e ganhar a consistência moral maleável típica de soldado.
Finalmente, leve-se a cozinhar numa guerra em lume alto, para reduzir rapidamente e ficar bem passado.
Serve-se em cadeira de rodas.

Agnosticismo
Há uma coisa muito estúpida: ter a certeza que deus existe e ser crente. Há uma coisa ainda mais estúpida: ter a certeza que deus não existe e ser ateu.
Mas se quer ser o mais estúpido que é possível, faça como eu: conforme-se com a sua própria estupidez e seja agnóstico.

31.5.10

Manif


Estava ameaçado o céu nublado mas o sol veio à manif.


Protestar com música porque a crise não é de inspiração.


Coimbra é uma canção, ou l'avril (oublié) au Portugal


O luto ainda não… A luta continua!


Defender… com afecto.


Até agora tudo bem… estamos só a cair. Será que acordamos antes de bater no chão?

12.5.10

Inquietações

Gato
Ontem saí de casa e havia um gato sentado à minha porta.
Pensei todo o dia nisto.
Não é expectável que um gato durma na soleira da porta de um prédio da minha cidade.
Por assim dizer, aquele gato tornou rural a minha urbanidade.
Hoje saí de casa e não havia gato nenhum, mas a cidade não voltou a ser a mesma. A reversibilidade do real não torna reversível uma metáfora.
A partir de hoje vivo numa aldeia onde falta um gato.

Punho
Ela dobrou a esquina e apareceu de repente.
Do muro rasteiro da rua um pedinte ergueu a cabeça para olhá-la. Ia estender a mão no seu hábito humilde de súplica, mas parou o gesto.
Do seu ponto de vista, rente aos pés de quem passa, todas as pessoas são altas. Porém, aquelas pernas de uma elegância interminável elevavam ao inatingível o seu ponto de confluência, onde o sexo seria uma inevitabilidade.
Isso aumentou o seu sentimento de exclusão, e a mão ainda parada a meio do gesto tremeu um pouco.
Por um curtíssimo instante deixou de ser um pedinte.
Foi quando uma foice de raiva lhe cortou o olhar e a mão parada a meio do gesto se ergueu num punho cerrado.

Música
Por entre os corpos dos seus entes queridos que lhe caíram em cima, a criança bijagó viu os soldados portugueses destruírem as tabancas da sua aldeia.
Se fosse um filme americano ouvir-se-ia uma música emocionante. Ouve-se sempre uma música emocionante com o intuito de transformar em arte as cenas de guerra mais obscenas. E os espectadores recostam-se em êxtase no sofá.
Mas o menino bijagó só ouvia o esguichar do sangue a sair do pescoço do seu pai como um javali ferido e o estertor da sua mãe como grunhidos de uma porca a morrer. Lá fora a guerra continuava sem mais estética nem humanidade.
Será que este menino, quando for grande, terá mais ódio aos soldados portugueses, aos sonoplastas americanos ou aos espectadores em êxtase com a matança?

Concavidades
À entrada do Fischmarkt em Hamburgo sentei-me cansado.
Uma canadiana de cada lado e à minha frente a pala côncava do saco da câmara. Do lado esquerdo o tocador de pianola, com o seu chapéu côncavo. Do lado direito os meus companheiros do Hospital Militar de sorriso côncavo adivinhando o desfecho da história.
Chegou uma senhora de alma côncava olhando-nos aos dois.
A senhora mediu a concavidade de cada um de nós: um perneta velho ou um jovem perneta?
Ia a decidir-se por mim quando a câmara reflex de lentes intermutáveis com uma zoom de 200 mm me escorregou para o regaço mal estiquei a mão.
Quando a moeda lhe retiniu na concavidade do chapéu, o velho tocador de pianola olhou-me vitorioso a julgar que levou a melhor por ser mais miserável do que eu.

Mozart
Na parede da sala o piano vertical tem a tampa levantada. Na pequena estante da tampa uma pasta de papel amarelado. Um jovem olha a cidade pela janela e faz estalar os dedos das mãos.
Na cabeça uma pequena confusão de pensamentos. À mistura com os restantes pensamentos, uma partitura de Mozart e uma decisão adiada.
A partitura vê-se bem mas a decisão não. Está adiada.
Ele faz correr as notas de abertura da peça pela memória. A decisão fica encoberta pela música.
Não olha a cidade, apenas dirige para lá o olhar. Quando dirigimos o nosso olhar para o infinito, habitualmente procuramos ver algo no nosso íntimo.
Depois, a réstia de um sorriso atravessa-lhe o rosto e ele senta-se decidido em frente do piano, esticando sempre os dedos. Abriu a pasta amarelada e passou para cima a folha de papel que dizia "Mozart Piano Sonata in C major, K. 309".
As mãos pairaram alguns segundos sobre o teclado.
Enquanto isso as notas de abertura da peça correram de novo pela memória, mas agora a decisão adiada via-se claramente em forma de rosto de mulher com olhar de súplica.
Quando os poderosos acordes se espalharam pela sala como um carrilhão de esperança, a réstia de sorriso abriu-se no rosto e o calor reconfortante do perdão encheu-lhe o peito.

Açucenas
Sei de um pequeno pedaço de terra na serra da Lousã onde nascem açucenas. Ao lado há um bosque que convida a intimidades.
Será que os líquenes sobre as pedras ainda guardam a ternura dos teus dedos? Será que o vento ainda viaja pela serra com as nossas palavras?
Lembro-me que pegaste numa açucena e a puseste no cabelo a lembrar-me que os amantes são sempre ingénuos e gostam de lugares-comuns.
Não fora o peso do Tempo e sentiria ainda o mesmo calor, apesar do vento frio que anunciava o Inverno prestes a chegar.
Porque pesa o Tempo? Porque murcham as açucenas?

Vento
Num canto do parque de estacionamento algumas folhas secas rodopiam. Um saco plástico aparece do nada e rodopia também.
O vento levanta-o e deixa-o cair, quase o faz dobrar a esquina e o liberta, mas volta a puxá-lo para o canto.
Eu fico a olhá-lo por não ter nada que fazer.
O bailado do saco plástico anima o canto árido do parque de estacionamento.
As folhas secas atrás dele marcando o movimento. O meu olhar embalado pelo movimento. O meu pensamento atraído pelo olhar.
Que música tocaria o vento para inspirar aquele bailado?
Tudo tão árido em meu redor, e um alento de poesia sobre o asfalto.
Quase vi o rosto de Deus sorrindo.

Tinto
Não fazes ideia do que estou a falar, pois não? Quando digo que me fazem pena as pessoas felizes, será que me entendes?
Eu sei que bebi de mais, eu sei que fiquei de repente com vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo. Mas tudo o que está conformado aos seus limites naturais me desgosta profundamente.
Não vês que do ponto de vista do quadrado, um cubo é uma quimera absurda. Não vês que do ponto de vista da baga bairradina, um Frei João tinto é uma utopia delirante?
E se eu fosse feliz, não estava sentado nesta caixa, de copo meio na mão, olhando o fogo em busca da minha transcendência.
É que, quando olho à minha volta, sinto a intransponibilidade dos meus limites perante a formidável incompreensão da tua ausência.


Inquietude
Há uma vantagem em estar acordado: podemos sempre ir dormir. A vantagem de estar a dormir é que não precisamos de grande esforço para sonhar. Já estando acordado, só alguns o conseguem fazer. Porém, só um número ainda mais pequeno é que consegue estar suficientemente acordado para se inquietar com o drama de estar vivo e pensar.

18.4.10

Dor Fantasma - LISBOA - Cartaz



teatromosca
DOR FANTASMA, na Casa Conveniente [Lisboa]

de 26 de Abril a 2 de Maio de segunda a domingo 21.30h Casa Conveniente (Cais do Sodré - Lisboa)

bilhetes à venda no local e nas Estações de Correio ou em CTT-Online


Depois de ter estreado "Dor Fantasma", com textos de Manuel Bastos e direcção de Mário Trigo, no Porto, no Estúdio Zero, em Novembro do ano passado, depois da apresentação em Sintra, na Casa de Teatro de Sintra, em Janeiro deste ano, o espectáculo é reposto, agora em Lisboa, na Casa Conveniente, em Lisboa (Cais do Sodré), de 26 de Abril a 2 de Maio, de segunda-feira a domingo, sempre às 21.30h.


textos MANUEL BASTOS

direcção MÁRIO TRIGO

co-produção teatromosca e Teatro Focus

acolhimento Casa Conveniente


PONTO DE PARTIDA

Desde 2007, o teatromosca tem vindo a desenvolver um ciclo de pequenos projectos dedicado ao tema da guerra (colonial ou de independência) nas ex-colónias portuguesas. Entre 2007 e 2008, foram apresentadas três “fases preparatórias” do projecto teatral IGNARA#GUERRA COLONIAL, que culminará, em 2012, com a apresentação do espectáculo final homónimo. No início de 2009, o teatromosca associou-se ao Teatro Focus para levar a cena uma nova versão, em formato reduzido, do espectáculo INFA72, com texto de Fernando Sousa e direcção de Mário Trigo. Agora, apresentamos uma nova produção com textos de Manuel Bastos, ex-combatente, um espectáculo que visa dar voz ao que, regularmente, não é dito e revelar o que, usualmente, permanece camuflado. Com Dor Fantasma, tentamos dar plano às histórias particulares, aos relatos pessoais e, de certa forma, íntimos daqueles que viveram/ ainda vivem a guerra, procurando fazer uma reflexão em torno da História, numa dialéctica entre a memória individual e a relevância e incorporação da mesma na memória colectiva.


SINOPSE

Este espectáculo constitui-se como um «monólogo a duas vozes», no qual duas personagens – um combatente e uma mulher - relatam episódios da «sua guerra», avaliando-a até às suas ínfimas, imponderáveis consequências.

Os «fait-divers» do teatro de guerra - entenda-se, o conjunto de acontecimentos que, em meio do caos, instituem essa espécie de perverso «padrão de normalidade» - são permanentemente desmontados pelo olhar lúcido, clínico, distanciado das personagens, apostadas em transmutar o horror da guerra em material de reflexão política (apartidária) ou em exercício extremo de auto-conhecimento.

A deliberada inclusão da personagem feminina na colagem de que o guião resulta- caucionada pela tematização que Manuel Bastos, atentamente, lhe vota - corresponde à candente necessidade de reconhecimento do papel (ainda hoje secundado) que a mulher portuguesa desempenhou antes, durante e depois do conflito armado aduzido.


SOBRE O AUTOR

Manuel Correia de Bastos nasceu na vila de Aguim, no concelho de Anadia, em 1950.

Foi mobilizado para ex-colónia de Moçambique com o posto de furriel miliciano, no cumprimento do serviço militar obrigatório, onde chegou no dia 12 de Fevereiro de 1972 até ser gravemente ferido em combate no dia 4 de Junho de 1972, devido à deflagração de uma mina anti-pessoal.

Tem escrito crónicas sobre a guerra colonial especialmente no Jornal da Associação dos Deficientes das Forças Armadas, e mantém desde 2003 um dos mais antigos Blogs sobre a Guerra Colonial, O Cacimbo, em http://cacimbo.blogspot.com/.

Embora a crítica especializada ainda não tenha «descoberto» este autor seminal, trata-se, sem dúvida, do ponto de vista literário, uma das vozes mais surpreendentes que têm, nos últimos anos, riscado a oferta editorial sobre o tema, ombreando, sem dúvida, com nomes tão fundamentais como António Lobo Antunes, Lídia Jorge, Manuel Alegre, Fernando Assis Pacheco, entre outros.

Da sua escrita pode destacar-se o modo como, glosando um tema tão «obsceno» como é a guerra (a sua, de um modo muito particular), consegue, munindo-se de metáforas límpidas e eficazes, atingir um lirismo de profundo fôlego filosófico de pendor filantrópico.


SOBRE O ENCENADOR

Mário Trigo, fundador e Director Artístico da Associação Cultural Teatro Focus, tem vindo a trabalhar, de há seis anos a esta parte, textos sobre a guerra colonial. Em 2006, com efeito, fechou - com Companhia de Caçadores, em cena na Casa dos Dias da Água, em Lisboa (espectáculo contemplado com um apoio pontual do Instituto das Artes) - um ciclo de três encenações subordinadas ao tema (as outras duas foram Violeta- Puta de Guerra, em cena na Sala-Estúdio do Teatro da Trindade, em 2004; e Infa 72, no Teatro Taborda, 2002) todas em colaboração com o dramaturgo (e ex-combatente) Fernando Sousa. As suas encenações têm merecido a aclamação da crítica, pelo rigor, qualidade e coerência demonstrados.


Ficha artística e técnica

Designação do espectáculo«Dor Fantasma» - a partir de textos de Manuel Bastos DirecçãoMário Trigo DramaturgiaPaulo Campos dos Reis InterpretaçãoFilipe Araújo e Susana Gaspar Assistência de encenaçãoDiana Alves Desenho de luzCarlos Arroja GrafismoAlex Gozblau Direcção de produçãoPedro Alves Produçãoteatromosca e Teatro Focus Co-produçãoFábrica da Pólvora - Clube Português de Artes e Ideias AcolhimentoAssociação Terra na Boca, As Boas Raparigas, Casa de Teatro de Sintra e Casa Conveniente ApoioCâmara Municipal de Sintra, Junta de Freguesia de Santa Maria e S. Miguel, Junta de Freguesia de Mira Sintra, Artistas Unidos, 5àSEC [Rio de Mouro], Relevo Branco, Jornal de Sintra, Jornal Actual Sintra, Jornal O Correio da Cidade, CTT, Rádio Clube de Sintra e Sporting Club de Lourel


de 26 de Abril a 2 de Maio

de segunda a domingo 21.30h

Casa Conveniente (Cais do Sodré - Lisboa)

bilhetes 5€ (preço único)


bilhetes à venda no local e nas Estações de Correio ou em CTT-Online

6.4.10

Relâmpagos


Café
A minha avó sopra uma brasa. A brasa numa cama de caruma. Sopra.
Depois acende-se uma chama na caruma e nos olhos da minha avó.
Em breve o aroma do café da manhã atraía todos em redor da mesa da cozinha do forno.
Desde aquela brasa até à máquina de cápsulas de café passou tanto tempo que eu já não devia lembrar-me disto, mas sempre que tomo a bica sinto que me falta qualquer coisa.
E não é café.

Cansaço
À hora em que o sol preguiçoso de Outono se servia da erva alta para desenhar longas pestanas de sombra sobre o pó da estrada de Vale de Cide, eu olhava os jornaleiros, cansado só de ver os corpos estomagados pelo martírio do farpão nas leivas barrentas dos vinhedos do Solão.
A minha doce lassidão perante a tortura.
Eles, talvez interpretando a inclinação da luz, pousavam o farpão. E a tarde morria.
Endireitavam a custo o dorso, com ambas as mãos apoiando as cruzes. Quase se ouviam os gonzos perros daquelas costas a ranger.
E espreguiçavam o olhar pela estrada fora, por onde se faria o caminho para o descanso.

Setembro
Quando o Verão era mais barato apanhávamos a camioneta para a Costa Nova.
Passávamos a ponte de madeira a pé. Ao longe cones de sal.
Se só os cones eram brancos, porque é que aquelas manhãs de Setembro da minha infância passaram para os meus sonhos?

Cão
Uma árvore caída sobre um rio.
A água passando alheia a este drama.
A impressão que longe daqui me morreu alguém. Muito longe daqui.
Quem se importa?
Um cão ladra ao longe só para aumentar este desalento.

Guerra
O vento soprava vindo de Sueste. Uma farripa de cabelo passava-me à frente dos olhos entrecortando a paisagem. Claro, escuro. Claro, escuro.
As palavras do Dr. Diógenes a falar do dever e da honra. As palavras do meu pai a falar de afectos. A guerra à espera.
Como se podem tomar decisões com o cabelo à frente dos olhos?

Mina
A fila de soldados deixava marcas de pés no chão. À medida que as marcas eram feitas ouvia-se um pequeno ruído como se o chão gemesse ao ser pisado pelos pés dos soldados.
Às vezes o chão fazia um ruído muito maior ao ser pisado.
Nunca devemos pousar os pés num chão que não nos queira bem.

Misses
O médico olhou para o Lemos e concluiu que, ainda assim, muito do Lemos se tinha salvo, e perguntou a pergunta que perguntava sempre:
– Sente-se bem?
E o Lemos:
– Sr. Doutor, tenho a impressão que o meu pénis está a modos que sem acção.
No Domingo à tarde, as vencedoras do concurso das misses de Nampula vieram visitar o Lemos.
O médico, satisfeito com o resultado, passou a sorrir pela cama do Lemos, na Segunda-feira de manhã.
Não há dúvida que a Medicina é uma ciência humana.

Dormidas
No Cais do Sodré um sem-abrigo dormita de mão estendida. O braço direito esticado e apoiado sobre o joelho.
Um boné sebento na mão diz a quem passa: "Dêem qualquer coisinha".
Dormita, porque é difícil manter os olhos abertos à indiferença humana.
Na esquina da rua, uma porta diz a quem passa: "Dormidas".
Em frente da porta, uma mulher anda de um lado para o outro como uma sentinela à entrada de um quartel.
Quando passa um homem sem ouvir o que diz o boné mas conseguindo ler o que diz a porta, ela entra com ele, e depois a janela do primeiro andar fecha-se.
Passados alguns minutos ela vem depositar uma moeda no boné.
E por uns segundos o sem-abrigo abre os olhos para uma réstia de humanidade.

Milagre
No hospital de Hamburgo havia muita gente que acreditava em milagres, mas nem todos os pernetas que foram a Lourdes tinham fé. Porém o Giló andava em silêncio a matutar naquilo.
Pelo sim pelo não, mais valia acreditar. E nós, cínicos, encorajávamo-lo.
No regresso, o Giló vinha envergonhado por ainda estar perneta.
Apesar de cínicos, nenhum de nós se riu.
Só deus se aproveita dos ingénuos.

Coragem
Os generais da junta médica militar mediram-me de alto a baixo e fizeram o que lhes mandaram fazer: deram-me alta porque a minha cama fazia falta para tanto ferido que a guerra fabricava.
E ficou deliberado que ao sair dali eu estaria restabelecido.
– Assine aqui.
– Não assino nada.
– É uma ordem.
Não assinei.
Um acto de coragem, mesmo inútil, faz mais pelo nosso amor-próprio do que a cobardia proveitosa.

Abril
Felizmente, a 25 de Abril de 1974 tudo mudou ao nascer do dia. Tudo, menos as pessoas com certezas.
Nós, os que temos dúvidas, temos também a honestidade de mudar frequentemente de opinião.
Eles são desonestos porque quando mudam, mudam de uma certeza para outra.

Paz
Durante anos e anos esqueci a guerra.
Esqueci, não – escondi-a no fundo da memória onde não se ouvissem os tiros. Só às vezes em sonhos o chão rebentava todo debaixo de mim.
Mas de manhã os teus olhos inventavam a paz no mundo.

Palco
Um homem triste. Um veterano pegando numa câmara fotográfica como se fosse uma arma.
Uma mulher muito bela imagina-se uma mariposa sob a luz.
Uma cadeira. Uma mesa. Parecem abandonadas sobre o palco.
Uma sala vazia leva mais solidão.
O homem aponta a câmara ao público. Dispara.
Cada pessoa ao sair para a rua, ainda levava um pouco de dor no peito.

Titanic
A crise é um barco a naufragar sem salva-vidas para todos.
O governo pede que sejamos patriotas e fiquemos no porão enquanto os passageiros da primeira classe se salvam.
Os sindicatos dizem que se não há salvação para todos, que vá tudo ao fundo.
Os políticos da orquestra de câmara continuam a fazer o que sabem e dão-nos música.
Aposto que neste filme os responsáveis não têm dignidade para se afogarem com o barco.

Relâmpagos
Quem faz a história é o leitor. Por isso nem tudo deve ser descrito, para que os silêncios entre as palavras deixem espaço à sua imaginação.
Eu só apanhei estas palavras por aí e pouco mais fiz com elas.
Um pouco mais de poesia e seriam música, um pouco menos e seriam preces. Não te iluminam o caminho, são breves relâmpagos apenas. Se te ajudar, fecha os olhos e lê.

30.3.10

Dor Fantasma em LISBOA


textos MANUEL BASTOS

direcção MÁRIO TRIGO

co-produção teatromosca e Teatro Focus

interpretações de Filipe Araújo e Susana Gaspar.




Casa Conveniente
Rua Nova do Carvalho n. 11
1200-291 Cais do Sodré
(em frente ao Jamaica)

Depois de ter estreado no Porto, no Estúdio Zero, em Novembro do ano passado, depois da apresentação em Sintra, na Casa de Teatro de Sintra, em Janeiro deste ano, o espectáculo "Dor Fantasma" é reposto, agora em Lisboa, de 26 de Abril a 2 de Maio, de segunda-feira a domingo, sempre às 21.30h, na Casa Conveniente, no Cais do Sodré. Partindo de textos do ex-combatente Manuel Bastos, com direcção de Mário Trigo, o espectáculo conta com interpretações de Filipe Araújo e Susana Gaspar.

15.3.10

O Contágio da Felicidade

Ler o texto completo aqui

[...]
Como eu nunca mais lhe olhei para as fuças, ele um dia destes no trabalho todo daimoso: "Em acabando isso vem falar comigo que te enganaste nesta venda-a-dinheiro." E eu: "Se tens alguma reclamação, fala com o patrão." E aquele javardo ao depois passou por mim e resmordeu: "Tu és boa é a encher pipas ao alto." Aquele untuoso, aquele filho duma cadela, que Deus me perdoe, que a Ti Adelaide que Deus tem era uma santa.
Acho que não devia estar a escrever estas coisas no meu diário, alguém pode um dia ler isto, e de mais a mais, agora o que eu faço de melhor é pôr tudo para trás das costas, que remédio.
Eu queria esquecer tudo o que se passou mas parece-me que toda a gente sabe. Em primeiro achei que ninguém sabia mas ao depois fiquei desconfiada que ele se gabou aos amigos do copo, que parece que têm visco no olhar e estão sempre na caçoada quando passam por mim e que até parece que me comem com os olhos. Aqueles moinantes hão-de futurar lindas coisas a meu respeito. Um botou-me uns olhos manhosos e disse para eu ouvir: “Será q’anda esponque?” Que ele é um bêbado sempiterno, um boca de favas que não dá uma para caixa; que o que ele queria dizer era "suponha que", que é como se diz pranha em Aguim. Aquele labrego. Para salvação da minha alma eu andava prevenida, senão tinha-me desgraçado.
Ainda se se dissesse: Ah, ela tinha falta de sexo e queria era deboche, mas não, eu namorava com o Adelino e tinha tudo o que queria dele; fui é apanhada de surpresa no meu ponto fraco. Mas não é o ponto fraco de todas as mulheres? Mas sabe Deus e eu em como eu antes preferia morrer do que ter prazer, só nojo e dor; que ainda sinto raiva por ter deixado perceber que gozei com as brutidades daquele porco roncolho, mas as forças foram-se-me não sei para onde, e eu fiquei de joelhos a ganir sem fôlego à frente do carro.
Na Terça e na Quarta fiquei em casa, mas na Quinta voltei à festa e foi nesse dia que reparei no Zé. Aqueles olhos ternurentos postos em mim, e eu deixei-me sorrir para ele – que ainda estou para saber porquê.
O Adelino a atazanar-me a paciência e eu a dizer-lhe: "Deslarga-me, vai fazer companhia àquela delambida com quem estiveste na Segunda-feira, e eu à tua espera." Ele a desfazer-se em desculpas e eu cá para mim: "Está bem deixa, daqui não levas mais nada." Que eu até andei embeiçada com ele, e ó mais, nunca me faltou com nada, e até é filho do patrão e tudo, mas não é homem de uma mulher só.
E fui-me achegando para o Zé, um passinho de cada vez. E ele a ficar corado, sem saber onde por as mãos, mas a dar passinhos no meu endireito também. Quando estávamos ao lado um do outro, ele para mim: "Está uma noite primorosa." Ó meu Deus, onde vai ele buscar aquelas palavras?
Mas eu senti uma alegria dentro de mim como se me tivessem dado uma prenda, um ramo de flores; nem sei explicar bem. O tratos que ele não deve ter dado à cabeça para se sair com aquela palavra ali do pé para a mão, só para me impressionar, e eu disse-lhe: "Está uma noite linda para começar um romance."
E assim Deus me dê saúde em como aquela noite foi a primeira noite do nosso romance.
Olhei para ele e perguntei-lhe se queria dançar comigo. Ele ficou tão atarantado que me apeteceu rir. Pegava na minha mão com as pontas dos dedos como se tivesse medo de me magoar, então eu agarrei a mão dele com a minha mão toda, e ele todo envergonhado. Envergonhado só por pegar na minha mão.
Fui-me encostando a ele devagarinho para não o assustar, e ele tão feliz, tão feliz, que até parece que me pegou a felicidade.
Aquela foi mesmo a primeira noite do nosso romance. Que o que eu senti, tive logo a certeza que era amor.
Amor é quando a felicidade se pega.


Ler o texto completo aqui

in "Pressistência da Memória"