Ela lançou o olhar sobre o mar como se fosse uma rede, como os pescadores costumam fazer num movimento circular, e que cai suavemente sobre as águas, só que mais lentamente, muito mais lentamente.
«Porque me passou a
chamar Zulmira se sabe que eu não gosto?»
Ela ali olhando o mar como se fosse uma rede, como se
quisesse agarrar a água que escoava entre as suas malhas enquanto se afundasse
lentamente, muito lentamente. Ele sentado no muro que ladeia a praia olhando
com ar assustado para os pinheiros raquíticos contorcidos sobre as dunas, que
lhe pediam socorro e se iam afogando na areia. Ela olhava-o com um véu de
sofrimento colado à cara. Ele olhava para coisa nenhuma mas via nitidamente os
pinheiros retorcidos a pedirem-lhe socorro. Havia uma animação nos pinheiros,
indefinida e lenta. Havia qualquer coisa lenta nos pinheiros. Muito lenta.
Um casal aproximou-se e dirigiu-se ao muro, entre eles.
Havia algo rápido no casal, algo muito diferente deles, algo
novo, ou ainda por acontecer. Vinham tão juntos que pareciam, não bem uma só
pessoa, mas duas em vias de se fundirem numa só a qualquer momento. Os olhos do
casal; cada par, ou olhava para o outro par de olhos ali perto, tão perto que
quem não conhecesse a anatomia humana, poderia de facto julgar que pertenciam
ao mesmo corpo, ou então olhavam o mar; mas mesmo quando olhavam para longe,
para o mar, partilhavam esse olhar como se um fio, um nervo, uma onda de rádio
os ligasse a um só cérebro.
Zulmira não entendeu logo que isso era paixão. Só passado
alguns segundos a palavra amor
aflorou à sua memória. Não como uma certeza, não como uma suspeita, mas apenas
como algo que não tinha a certeza de existir. Amor.
O casal dava risadas patetas. Ela dava-lhe palmadas sem o
magoar, ele pegava-lhe nos braços sem a dominar. Havia uma certa violência
subjacente à ternura. Um desafio, uma ameaça, uma luta iminente ainda apenas
adivinhada.
Zulmira
começou a sentir-se incomodada, como uma pessoa no meio de um grupo de
comensais sem ter sido convidada, como uma pessoa preparada para um funeral que
depara com um casamento. Uma mulher com um véu de amargura colado ao rosto no
meio de foliões na Terça-feira de Carnaval.
Não
há maior sofrimento que recordar os tempos felizes na desgraça.
Às
vezes o corpo esquece os obstáculos da mente, e há pouco, quando os veraneantes
iam abandonando a praia – nem reparando nas pequenas tarefas habituais de
fechar os grandes chapéus-de-sol, de enrolar os toldos, de sacudir a areia, com
ar de quem sabe que em breve os espera os prazeres que o recato da casa lhes
oferece – Zulmira sentiu o seu corpo, e apeteceu-lhe dizer "Vamos para
casa?" mas dizê-lo para quem? Não estava ali ninguém. O homem ali, olhando
o pânico dos pinheiros a afogarem-se, era a imagem da mais inevocável ausência.
O casal foi embora, como se se tivessem lembrado de algo
urgente que não poderia esperar mais. Quase corriam. De vez enquanto olhavam
para trás como se estivessem a ser perseguidos por almas penadas.
– Viste aqueles dois?
De repente tudo abrandou novamente. A rede do olhar a descer
lentamente, a afundar-se lentamente sem conseguir segurar-se na fluidez das
águas. Os pinheiros a pedirem socorro.
«Porque me passou a
chamar Zulmira se sabe que eu não gosto? Porque passou a odiar-me? Porque será
que imagina que o nosso João é filho do Adelino? Tivemos o que tivemos, mas
isso foi antes de ele se casar com aquela bruxa. Nunca mais me pôs um dedo em
cima. Aceitei o emprego lá na fábrica quando ele foi para África mas o Adelino
respeitou-me sempre, de mais a mais, a bruxa trá-lo à rédea curta.
O Dr. Josué diz que
eles não vão aceitar que foi a guerra que o pôs assim, que isto é fraqueza do
cérebro já de nascença.
Dá-me uma pena tão
grande ver o meu Zé naquela consumição. Ele nunca mais foi o mesmo. Eles
acharam-no bom para ir para a guerra, não acharam? E agora no fim é que dizem
que ele é fraco de nascença. Que país o nosso que leva um homem cheio de força
e coragem, com tudo no lugar; o manda para a guerra, e depois devolve à família
uma sombra? Devolveram-me apenas a sombra do meu homem, e os que governam isto
agora lavam as mãos.»
Ao longe o casal continuava com os seus jogos provocatórios
fazendo alongar tanto quanto as hormonas o permitissem, aquele momento de
vertigem, de ânsia mal controlada até que fosse impossível de suster.
Como são parecidos o desespero e a paixão. Só que caminham
em sentido oposto. O desespero começa no íntimo de nós e alastra até tomar
conta de todo o nosso ser, e a paixão começa no olhar, na ponta dos dedos, na
pele, e caminha para o nosso íntimo, como todos os rios do mundo correm para o
mar.
Quando saíram dali, deixaram um espaço enorme entre aquelas
duas figuras sentadas no muro da praia, como se a sua alegria tivesse feito
dilatar o espaço. Aquele homem e aquela mulher pareciam agora duas pessoas
afastadas por uma fronteira que embora invisível os obrigasse a viver em dois
mundos diferentes.
«Porque se põe ele
assim às vezes? Que foi que lhe fizeram por lá? Que o obrigaram a fazer?»
O casal ao longe leva a única centelha de sanidade e
esperança de todo aquele cenário, como uma lanterna que se vai afastando na
noite e deixa para trás a escuridão cerrada.
«Os mortos não tinham
valor. E os vivos eram tratados como gado. Nós éramos gado. Como os porcos que
a gente alimenta mas que vai matar e comer. E o furriel a tirar fotografias
àquilo tudo. Que fará o furriel com as fotografias? Será que precisa das
fotografias para se lembrar daquilo? Será que gosta de se lembrar daquilo? Mas
que gente é esta?
E agora ninguém quer
saber. Estes agora não estão à frente disto? Então, e não pagam as dívidas que
herdaram? Mas que gente é esta?»
José Casimiro de Sousa olhou ao comprido, estendeu o olhar
pela estrada fora, como se se estivesse a espreguiçar, e viu ao fundo o casal a
caminhar. Tão juntos que pareciam um corpo com duas cabeças. Ao olhá-los, o seu
olhar iluminou-se como se tivesse visto alguém conhecido no meio de uma
multidão de estranhos, como se tivesse olhado para um espelho e se tivesse
reconhecido.
As imagens que não paravam de se sobrepor a tudo, em que os
mortos eram substituídos por vivos, como se substitui o porco morto por outro
porco que também há de morrer; essas imagens cessaram. Os pinheiros sossegaram
igualmente, como se o perigo de se afogarem naquela areia movediça tivesse passado.
E depois de muito tempo sem ter sorrido uma só vez, sorriu
muito ligeiramente e chamou a mulher sentada no mesmo muro, três metros abaixo,
como já a não chamava há tanto tempo.
– Mira!
Do lado da Ria alguém abre uma janela e a luz do sol fica a
refletir-se na vidraça. Alguém que quer deixar entrar o ar fresco. Alguém que
procura o ar fresco como tantos procuram a esperança.
Uma metáfora do sol a enobrecer a tarde. Um plágio da
natureza a um poema de Paul Eluard:
"No limite da dor
Uma janela aberta
Uma janela
iluminada."
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