13.11.10

Dor sobrevivente


Tu que sabes como é ver morrer um ente querido; tu que sabes como é ver morrer um avô que te ensinou a viver, cujas rugas te pareciam eternas e, por julgares que sempre fora velho, não teria idade, e portanto jamais morreria; tu que sabes o que é ver morrer um pai, que era aquele que ia sempre à tua frente, aquele que abria o caminho, para quem olhavas quando tinhas medo, a quem te seguravas quando não confiavas nos teus próprios passos, e que agora finalmente te fez homem por te ter cedido o seu lugar; tu que viste morrer a tua mãe, e entendeste que perdeste o teu princípio, e que viste que ainda assim terias que seguir em frente, como um barco a que falta a ré; tu que até sabes o que é ver morrer um filho, algo que ninguém deveria saber por ser tão estupidamente cruel, e que ao sabê-lo, mais nada deve valer a pena querer saber-se, porque é a prova que Deus não ama suficientemente os seus; tu, tu que sabes tudo isso, não sabes, meu amigo, o que é ver morrer um irmão de armas, porque felizmente para ti nunca tiveste a sua vida nas tuas mãos, tendo ele a tua nas dele, numa reciprocidade inigualável em mais lugar nenhum; senão lá onde tudo parecia debater-se com os valores mais primordiais do Mundo; a carne e o ferro, a esperança e o desespero, o poder supremo de tirar uma vida e a miserável impotência de a perder; lá onde tu não foste a moeda com que se comprava a guerra e se vendia a paz, onde tu não foste o alimento lançado à metralha e o pasto das minas; onde valerias menos que uma arma; onde a tua vida, toda a tua história, e a memória de todas as coisas que aprendeste, e ainda o conjunto de todos os teus sentimentos e emoções, que fazem de ti a obra-prima de toda a Criação; tudo isso, tudo isso teria lá apenas o valor insignificante de uma bala certeira; e por isso, não podes saber o que é ver morrer um teu igual, amigo do peito, ou inimigo até, não importa, porque o que importa é que ele serias tu, porque morreu na tua vez, e tu não sabes o que é isso; se soubesses, saberias que todos os que morreram, num incontável número de vezes, eras sempre tu; mas não sabes, meu amigo, por isso não finjas que sabes, e não sejas estúpido ao ponto de desvalorizares a tua ignorância e de sorrires quando me vês uma saudade incompreensível no rosto, e de desdenhares quando a voz me atraiçoa, e me tenho que calar para não se ver que as minhas palavras choram, como só assim choram as palavras de quem combateu, ainda que por ter acreditado que era seu dever, ainda que para sobreviver a cada tiro que dava, mas sobretudo por desespero de julgar já ter morrido; e tu, tu se és homem e tens dignidade, põe-te em sentido, e respeita esta dor irrecuperável de eu ter morrido vezes sem conta.

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