Entrevista para o Jornal Elo da ADFA
O Dentinho tem 65 anos. O Dentinho é tetraplégico há 44, há uma vida inteira. Tanto que, durante toda a conversa connosco nunca reviveu uma única memória anterior ao acidente que em terras de Angola, durante a Guerra Colonial, o privou de quase todos os movimentos e o condenou à prisão perpétua dentro do próprio corpo, como se antes disso a vida que viveu já não fosse sua.
No quarto, para além de uma televisão, de uma aparelhagem estéreo e de algumas fotos nas paredes, um crucifixo e uma imagem da Virgem de Fátima.
Lá fora, na viagem para aqui, sob o sol de Maio, fiadas intermináveis de crentes que receberam a graça da Virgem de Fátima cruzaram connosco enquanto pagavam, passo a passo, cada milagre recebido. Mulheres pelos seus homens, homens pelas suas mulheres, mães pelos seus filhos, a caminho da Cova da Iria. E ali a dois passos de nós uma velhinha, que já não pode dar um passo sob o peso dos seus 81 anos, parece desmentir as virtudes da fé.
Que terá feito para não ter merecido a graça de receber o seu filho de volta como o conhecera? Não acredito que não tenha pedido fervorosamente, a julgar pela imagem da Virgem num lugar de destaque.
– A minha mãe sofreu muito, sofreu muito.
Que me desculpem os muitos religiosos mas eu recuso-me a aceitar que esta mãe tenha feito alguma coisa a menos ou a mais, que todas as outras que seguem hoje para Fátima, para ter merecido a indiferença da Virgem.
Mas não façam caso, é difícil evitar a ingenuidade dos lugares-comuns ou a blasfémia fácil perante os grandes dramas da vida. E a verdade é que estávamos ali perante um dos mais difíceis de tolerar.
Um jovem, que me atrevo a dizer que era bonito, a julgar pelas fotos na parede, num instante da sua vida, num átimo da sua existência, tem um acidente e perde o controlo do seu corpo para sempre, e passa por uma via-sacra de incompetências e de indiferenças que parecem não ter parado nunca; nem agora no Portugal que acrescentou a sua estrelinha à constelação da bandeira europeia.
– Primeiro mandaram-me para ortopedia onde eu me feri todo, e só mais tarde é que descobriram que o meu caso deveria ser tratado no serviço de Neurologia. Depois um braço caiu-me contra a parede, eu não sentia nada, que até estive algum tempo em coma, e apanhei uma artrose no cotovelo e fiquei sem poder mais mexer o braço. O outro braço que estava melhor, uma enfermeira ao virar-me fez-me outra artrose no outro cotovelo.
Passados uns anos fiz novamente exames à coluna e disseram-me que se eu tivesse sido logo operado que era capaz de ficar até, não se diz a andar pelo meu pé; mas ao menos a comer pela minha mão, poderia ficar.
E agora acabaram com o Hospital Militar de Coimbra aqui a 40 Kms e como faço quando precisar de ajuda? Vou ao Porto? Há dias tive que ir ali ao Hospital dos Covões e deixaram-me lá mais de 24 horas sem me fazerem nada. Nem ao menos me deram um copo de água.
Preciso de ser visto, por causa das dores que agora sinto no abdómen, não são dores, é uma coisa horrível, mas agora tenho que ir ao Porto ou a Lisboa.
O Dentinho tem uma carta escrita para mandar à Ministra da Saúde, ao Primeiro-ministro e ao Presidente da República a pedir-lhes que não lhe tirem o Hospital Militar de Coimbra que lhe tem valido toda a vida. Só esperava que lhe déssemos as moradas certas para a carta chegar aos seus destinatários.
– Depois do acidente, alguma vez tiveste algum médico, algum psicólogo, alguém que te explicasse o que iria ser a tua vida futura e te preparasse para as limitações da tua deficiência?
– Não, nunca.
– Então como ficaste a saber que irias ficar imobilizado para sempre?
– Quando estava no Serviço 6, por causa de outros colegas que já lá estavam e que me diziam"Ó pá, olha que tu prepara-te, que isso nunca mais, nunca mais."
– Mas apesar de teres estado em Alcoitão, onde me dizes que te trataram bem e onde recuperaste um pouco, e de já teres estado num lar, preferes viver aqui na tua casa e com a tua família, não é verdade?
– A minha família tem-me ajudado muito e não quer que eu saia daqui mas a minha mãe já não pode das pernas. Sofreu muito, muito, e eu tenho que ir para o lar da Cruz Vermelha.
No quarto, para além de uma televisão, de uma aparelhagem estéreo e de algumas fotos nas paredes, um crucifixo e uma imagem da Virgem de Fátima.
Lá fora, na viagem para aqui, sob o sol de Maio, fiadas intermináveis de crentes que receberam a graça da Virgem de Fátima cruzaram connosco enquanto pagavam, passo a passo, cada milagre recebido. Mulheres pelos seus homens, homens pelas suas mulheres, mães pelos seus filhos, a caminho da Cova da Iria. E ali a dois passos de nós uma velhinha, que já não pode dar um passo sob o peso dos seus 81 anos, parece desmentir as virtudes da fé.
Que terá feito para não ter merecido a graça de receber o seu filho de volta como o conhecera? Não acredito que não tenha pedido fervorosamente, a julgar pela imagem da Virgem num lugar de destaque.
– A minha mãe sofreu muito, sofreu muito.
Que me desculpem os muitos religiosos mas eu recuso-me a aceitar que esta mãe tenha feito alguma coisa a menos ou a mais, que todas as outras que seguem hoje para Fátima, para ter merecido a indiferença da Virgem.
Mas não façam caso, é difícil evitar a ingenuidade dos lugares-comuns ou a blasfémia fácil perante os grandes dramas da vida. E a verdade é que estávamos ali perante um dos mais difíceis de tolerar.
Um jovem, que me atrevo a dizer que era bonito, a julgar pelas fotos na parede, num instante da sua vida, num átimo da sua existência, tem um acidente e perde o controlo do seu corpo para sempre, e passa por uma via-sacra de incompetências e de indiferenças que parecem não ter parado nunca; nem agora no Portugal que acrescentou a sua estrelinha à constelação da bandeira europeia.
– Primeiro mandaram-me para ortopedia onde eu me feri todo, e só mais tarde é que descobriram que o meu caso deveria ser tratado no serviço de Neurologia. Depois um braço caiu-me contra a parede, eu não sentia nada, que até estive algum tempo em coma, e apanhei uma artrose no cotovelo e fiquei sem poder mais mexer o braço. O outro braço que estava melhor, uma enfermeira ao virar-me fez-me outra artrose no outro cotovelo.
Passados uns anos fiz novamente exames à coluna e disseram-me que se eu tivesse sido logo operado que era capaz de ficar até, não se diz a andar pelo meu pé; mas ao menos a comer pela minha mão, poderia ficar.
E agora acabaram com o Hospital Militar de Coimbra aqui a 40 Kms e como faço quando precisar de ajuda? Vou ao Porto? Há dias tive que ir ali ao Hospital dos Covões e deixaram-me lá mais de 24 horas sem me fazerem nada. Nem ao menos me deram um copo de água.
Preciso de ser visto, por causa das dores que agora sinto no abdómen, não são dores, é uma coisa horrível, mas agora tenho que ir ao Porto ou a Lisboa.
O Dentinho tem uma carta escrita para mandar à Ministra da Saúde, ao Primeiro-ministro e ao Presidente da República a pedir-lhes que não lhe tirem o Hospital Militar de Coimbra que lhe tem valido toda a vida. Só esperava que lhe déssemos as moradas certas para a carta chegar aos seus destinatários.
– Depois do acidente, alguma vez tiveste algum médico, algum psicólogo, alguém que te explicasse o que iria ser a tua vida futura e te preparasse para as limitações da tua deficiência?
– Não, nunca.
– Então como ficaste a saber que irias ficar imobilizado para sempre?
– Quando estava no Serviço 6, por causa de outros colegas que já lá estavam e que me diziam"Ó pá, olha que tu prepara-te, que isso nunca mais, nunca mais."
– Mas apesar de teres estado em Alcoitão, onde me dizes que te trataram bem e onde recuperaste um pouco, e de já teres estado num lar, preferes viver aqui na tua casa e com a tua família, não é verdade?
– A minha família tem-me ajudado muito e não quer que eu saia daqui mas a minha mãe já não pode das pernas. Sofreu muito, muito, e eu tenho que ir para o lar da Cruz Vermelha.
Mais tarde, quando regressávamos a Coimbra perante a beleza do Paúl de Arzila e da planura calma e luminosa do vale do Mondego, como não sentir o desejo de ser ave e voar para abraçar no voo todo aquele espaço ao nosso alcance?
Mas aquele espaço vibrante de luz e aparentemente sem limites, ao contrário do que seria de esperar, oprime-nos agora. Talvez por sentirmos a frustração de sermos tão limitados e indefesos. Sobretudo, depois de termos visto como um homem pode ver reduzido o seu horizonte aos limites do seu corpo.
José Dentinho, prisioneiro do seu próprio corpo, reduzido aos movimentos da cabeça e de dois dedos da mão esquerda dirigiu da sua cadeira eléctrica um negócio de venda de produtos agrícolas e um mini-mercado, durante muitos anos, até as escaras provocadas pela imobilidade física o terem feito parar recentemente.
– Eu em Alcoitão era bem tratado. Não é que não gostasse de lá, mas sentia-me inútil, aqui tratava das minhas coisas. Mas foi lá que aprendi a escrever com a mão esquerda numa máquina eléctrica e a assinar o meu nome e a dirigir a cadeira eléctrica.
Até há um ano, mais coisa ou menos, eu movimentava uns milhares de contos por ano com o meu negócio, fora a loja. E na loja sempre falava com as pessoas, agora por causa das fístulas não posso sair daqui e como não uso a mão começo a perder o movimento da mão.
Às vezes ouvimos algumas frases bonitas proferidas por alguns imbecis com protagonismo, que dizem que a liberdade é uma atitude e que a vontade de um homem tudo supera. Não é isso que sinto no fim daquilo que pretendia ser uma entrevista e acabou sendo uma lição de humildade face à nossa impotência perante a brutalidade da vida.
Despeço-me do Dentinho junto à barra da cama dizendo banalidades, porque seria inútil um aperto de mão e impossível um abraço, enquanto o Zé Maria e o Álvaro, mais ágeis de entendimento, se despediam do Dentinho com uma carícia no rosto, a única parte sobreviva do corpo que pode ainda reconhecer o afecto de um amigo.
À saída diz-me o Girão: "E às vezes ainda nos queixamos…"
E lá seguimos nós para a carrinha, o Girão e eu, envergonhados por termos apenas falta de uma perna.
Mas aquele espaço vibrante de luz e aparentemente sem limites, ao contrário do que seria de esperar, oprime-nos agora. Talvez por sentirmos a frustração de sermos tão limitados e indefesos. Sobretudo, depois de termos visto como um homem pode ver reduzido o seu horizonte aos limites do seu corpo.
José Dentinho, prisioneiro do seu próprio corpo, reduzido aos movimentos da cabeça e de dois dedos da mão esquerda dirigiu da sua cadeira eléctrica um negócio de venda de produtos agrícolas e um mini-mercado, durante muitos anos, até as escaras provocadas pela imobilidade física o terem feito parar recentemente.
– Eu em Alcoitão era bem tratado. Não é que não gostasse de lá, mas sentia-me inútil, aqui tratava das minhas coisas. Mas foi lá que aprendi a escrever com a mão esquerda numa máquina eléctrica e a assinar o meu nome e a dirigir a cadeira eléctrica.
Até há um ano, mais coisa ou menos, eu movimentava uns milhares de contos por ano com o meu negócio, fora a loja. E na loja sempre falava com as pessoas, agora por causa das fístulas não posso sair daqui e como não uso a mão começo a perder o movimento da mão.
Às vezes ouvimos algumas frases bonitas proferidas por alguns imbecis com protagonismo, que dizem que a liberdade é uma atitude e que a vontade de um homem tudo supera. Não é isso que sinto no fim daquilo que pretendia ser uma entrevista e acabou sendo uma lição de humildade face à nossa impotência perante a brutalidade da vida.
Despeço-me do Dentinho junto à barra da cama dizendo banalidades, porque seria inútil um aperto de mão e impossível um abraço, enquanto o Zé Maria e o Álvaro, mais ágeis de entendimento, se despediam do Dentinho com uma carícia no rosto, a única parte sobreviva do corpo que pode ainda reconhecer o afecto de um amigo.
À saída diz-me o Girão: "E às vezes ainda nos queixamos…"
E lá seguimos nós para a carrinha, o Girão e eu, envergonhados por termos apenas falta de uma perna.
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