Recordo esse tempo como quem olha para uma foto antiga que achou num baú velho.
Aquele ali sou eu, dizemos incrédulos por também termos sido crianças. Então temos a tendência irritante de dizer que fomos felizes nessa altura como nunca, desvalorizando tudo o que de bom aconteceu entretanto. Algumas pessoas, como se vê, chegam mesmo a escrever coisas sobre este assunto, como refúgio para as frustrações da idade madura.
Mas devo ter sido feliz, porque me lembro de estar deitado no chão a sentir o calor que parecia vir do próprio coração da Terra, e o cheiro da erva fresca acabada de pisar, e todo o azul que se pode imaginar, lá em cima; não como se tudo me pertencesse, mas como se eu pertencesse a tudo. E a voz da senhora do Porto a inventar histórias ali ao lado.
A senhora do Porto era uma velha, porque tinha mais de trinta anos, e era estrangeira porque tinha uma acentuada pronúncia do Norte; mas tinha o dom hipnótico de reunir à sua volta um bando de putos, que quando não jogavam à bola no Largo do Sobreirinho, todos contra todos para uma baliza só, entretinham-se a pôr em prática uma vertente extremista e ultra-radical do darwinismo, que consistia em matar cobras no Monte Grande, em pôr sapos a fumar com cigarros de barba de milho até estourarem, ou, quando tomavam banho na Lagoa do Olho, a fazer concursos de matar rãs à pedrada.
Devo ter sido mesmo feliz porque só me recordo de uma coisa que me ensombrou a infância, algo verdadeiramente incapacitante: não ser capaz de caminhar descalço.
– Olh'ó estapôr do cachopo que parece que vai todo engalicado. Pro qu'é que não calça o raça dos sapatos?
Aquele ali sou eu, a treinar a andar descalço pela estrada de Vale de Cide abaixo, duplamente envergonhado: por aquela figura ridícula de sapatos debaixo do braço, e por me dar a impressão que o chão eram só cacos de vidro, quando os meus amigos quase todos jogavam à bola descalços. Mas depois chegava a senhora do Porto e passávamos para outra dimensão. As histórias começavam ainda na estrada, connosco a enxamear à sua volta calcando o finíssimo pó, mil vezes moído pelos aros das rodas dos carros de bois; e depois pelos campos fora, no convívio da miríade de insectos e vermes, de que a sociedade, amante dos produtos e valores liofilizados, ainda não nos ensinara a sentir nojo.
Entretanto nos vinhedos do Solão a alquimia do Outonho transformava lentamente o verde das parras em cobre ou em ouro puro.
Depois da vindima em Aguim, colher uvas em vinha alheia deixava de ser roubo para ser rebusco, e os vindimadores deixavam de propósito algumas uvas de melhor qualidade para mais tarde as irem colher para si. Ora, toda a gente sabe que a necessidade que leva ao acto aguça normalmente o engenho, que por sua vez inspira a tolerância do julgador, mas nós antecipávamo-nos, sem respeito por esta regra da mais básica alquimia da justiça e pilhávamos os vinhedos em busca de um cacho ou ao menos de uma esgalha esquecida.
– Serafim, Serafim, s'eu achar é pra mim!
O Outono era o Verão cansado. Cada vez mais, a esturreira do sol dava lugar a um calor suportável, e ao fim da tarde o dia dava mostras de sonolência. E o calor que restava era um hálito morno que parecia vir mesmo das entranhas dos silvados e dos bosques. Até o canto nupcial das cega-regas se enchia de preguiça; ou então tinha sido bem sucedido, e por essa hora já tinham passado das palavras à acção.
E os camponeses com passadas largas e lentas de enxada às costas. O corpo a descambar de cansaço. Passavam por nós, tão cansados que só diziam:
–Tarde!
Deixando que a entoação do cumprimento fizesse subentender a frase completa. E as mulheres atrás. Derreadas. Com grandes feixes de erva à cabeça e com um ar tão triste. Sempre vestidas de negro. Porque tinham sempre um ar triste as mulheres da minha terra? Às vezes riam como riem as crianças com fome: um pequeno intervalo na desgraça apenas, para depois continuarem a ser tristes. Nunca pensei nisto antes. Devo ter sido feliz, sim, porque nunca pensei nisto antes.
Quando deixou de vir a senhora do Porto ou quando deixei eu de a acompanhar? Não tenho a menor ideia. Talvez tenha sido na mesma altura em que aprendi a ter nojo dos bichos e das coisas da terra; ou tal como de um sonho, devo ter acordado apenas, para entrar noutras fantasias: para a puberdade, tão hormonal e prosaica como estúpida.
Um dia na loja da senhora Idalina vi-a a comprar uns chinelos de pano, que se destinavam a aproximar-se da empregada doméstica para poder espiá-la sem os seus passos serem ouvidos, e sofri um desgosto.
Com a senhora do Porto aprendi a dar valor às coisas até aí dadas como garantidas por ter nascido no meio delas, mas que aos olhos de quem vê de fora são preciosidades; aprendi sobretudo a ver as coisas à minha volta para além da superfície, e, na falta de uma história convincente para cada uma delas, simplesmente imaginar uma, porque a fantasia é que torna a vida sublime. E isso colocava a senhora do Porto numa esfera do meu imaginário onde não se fazem canalhices, e tudo quanto recebi dela era demasiado valioso para ser posto em causa por causa daquele pecado.
Nunca consegui resolver esse conflito: era impossível condená-la e era impossível absolvê-la. E a ela devo isso também: ganhei a capacidade de conceber o indivíduo na sua multiplicidade, de aceitar o anjo e a besta coabitando dentro de todos nós, isto é, de assumir humildemente a consciência da humana mediocridade.
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