Portugal é um país de lonjuras, onde geograficamente tudo
está perto.
Olhas a extensão das águas à tua frente, e sentes a dor da
lonjura, como se alguém te tivesse morrido do outro lado do mar. Tu não sabes,
mas essa dor é a poesia em estado seminal. É isso que ficou guardado na palavra
saudade à espera de que os poetas o dessem à luz.
Caminhas na praia, com um ventinho de fim de outono desagradável
a ferir-te os olhos, e com as narinas dilatadas pela maresia. O mar calmo
parece uma coisa viva a desafiar o que houver nas pessoas de marinheiro. Em ti
há. Há algo que te inquieta, como um ímpeto para uma longa viagem. Soubesses tu
marear e não caminhavas agora, sairias em busca, fosse do que fosse que
estivesse longe, Índia ou Brasil, ou outra longínqua paragem qualquer, como o
objetivo único de uma vida, mas na verdade, apenas para poderes ter saudades de
casa.
Quem seguisse, agora, os teus passos, veria nas suas marcas irregulares
na areia uma guerra longínqua que trazes contigo, como um fardo que aumenta todo
o peso do teu ser. Tudo em ti é inquietude e pesar.
Os maus pensamentos são traiçoeiros, aguardam momentos como este
para nos assaltarem. Do nada, aparece, quase visível, uma arma na tua
mão. Sentes o metal frio. Sentes o leve cheiro a óleo. E de longe regressou o
sentimento de repulsa por aquele objeto feito com o único propósito de matar.
Tu não pegavas na G3 com mãos de soldado. Uma arma transforma
as mãos mais inocentes em mãos de soldado, mas nas tuas mãos uma G3 não parecia
uma coisa de matar. Olhávamos para ti e víamos um camponês de alfaia na mão.
E são essas mãos inocentes que levas ao rosto, como quem o quer
lavar de um mau pensamento, e depois olhas de novo o mar.
O mar repousa, o mar acalma, o mar, no seu contínuo marulhar,
transporta-nos para longe e afasta-nos dos maus pensamentos, e tu deixas-te
levar por essa doce alienação.
Nestes teus momentos de evasão, as boas memórias, porém,
duram pouco, e são as más que perduram. Caminhas na areia da praia da tua
infância, mas é a longa picada de Omar, que sentes a passar agoirenta debaixo
de ti. Ninguém entende porque no meio de uma confraternização deixas de ouvir
as pessoas, como se uma voz distante estivesse a falar contigo, ou então, como
agora, porque caminhas na tua praia de infância com medo que a picada de Omar
te expluda debaixo dos pés.
A fila de soldados avança como por castigo, com medo do
próprio chão, as Fox atrás deles fazem disparos preventivos como se quisessem
castigar o capim alto, e o sol sobrevoa a cena e castiga tudo e todos indiferenciadamente.
De repente um estrondo. Inesperado, como um trovão a meio de uma tarde calma de
verão. Depois, o silêncio. O silêncio que antecede a consciência da tragédia. É
este o silêncio que desde então te assalta e te interrompe a vida como uma visita
indesejável.
A que distância ocorreu tudo isto? – Longe, no espaço e no
tempo. Tu sentes essa lonjura — já nem tanto a memória vívida do perigo, do
medo e da morte, mas a distância entre isso tudo e este momento. Sentes em ti a
fundura do tempo, há no teu peito a vertigem de um poço que atrai o suicida.
É que, essa lonjura enorme separa-te
dum outro que foste. Não sobreviveste. Tu morreste do outro lado do mar. Esse que
voltou é um estranho dentro de ti.
À medida que o tempo passava, a alfaia que trazias na mão ia-se
transformando numa arma, e as tuas mãos de camponês em mãos de soldado. Bem-vindo
à metamorfose regressiva da guerra: qualquer sublime beleza do mundo é desfigurada
até à réptil fealdade de lagarta.
Trouxeram-te de volta a casa, como se devolve a garrafa
vazia depois de bebido o vinho. Mas tu não regressaste, porque um homem não é
só o que se pode mudar de sítio; muito de cada um de nós vive nas coisas que
fazem o nosso mundo, com as quais estruturamos afetos e caldeamos paixões, no
prazer e na dor, e que nos ancoraram ao sítio onde somos, embora sonhando, possamos
ter a vertigem do longe e do infinito. Somos o rio que é do leito onde corre, embora
corra irredutivelmente para o mar.
Mas que longe está o último dia em que os teus sonhos te fizeram
maior que o casulo do teu ser, pois que, um após outro, todos os sonhos que
sonhaste pereceram como nados mortos. Agora, com todos os sonhos sonhados em
vão, restam-te os pesadelos.
E a tua memória, cada vez menos te revive momentos felizes; porém,
quando isso acontece, pousa sobre ti como que um perfume, como que uma música antiga
desfrutada a dois, e que ficou impregnada da felicidade partilhada.
A memória, não tanto da música, mas do estado de alma que a
música encontrou em ti, resgata-te hoje a felicidade desse dia. A brisa do mar pela
janela entreaberta, refrescando o esbraseamento dos corpos abandonados sobre um
leito em desalinho, como se ali tivesse havido um crime, e não a partilha mais íntima
que a Natureza inventou, mostrando que se podem fazer maus juízos quando olhamos
só para a aparência das coisas.
Mas a felicidade é leve e efémera, e o pesar, com maior
densidade, apaga constantemente a luz e a música dos teus dias.
O Sol atingiu a linha do horizonte e começa a deformar-se
lentamente, logo, logo, as sombras estender-se-ão sobre o areal, e nada nem
ninguém poderá impedir que a noite desça sobre esta parte do mundo, ainda que
isso possa ser um grave problema para muita gente. Tu sabes o que é viver com
um problema que não tem solução, mas tu já nem procuras soluções, basta que te
permitam viver com os teus problemas.
Contudo, às vezes, nos momentos mais sombrios, o sorriso
dela ainda ilumina a tua noite.
mcbastos