23.11.18

A história desconhecida do meu pé esquerdo

Esqueci-me do meu pé esquerdo. Sei que era como o direito mas ao contrário. Não me lembro muito bem, mas acho que não era um pé muito especial, porque para além de andar e correr não me servia de mais grande coisa. Bem vistas as coisas, para o futebol eu tinha até dois pés esquerdos, era, por assim dizer, ambissinistro. Mas dava-me muito jeito para nadar. O meu amigo Vasco acompanhava-me de barbatanas na dobragem do paredão Sul da barra de Aveiro e ria-se do meu estilo pouco ortodoxo, um misto de crawl e bruços, mas não me levava vantagem por muito tempo.
Na verdade, só me esqueci da imagem do meu pé esquerdo – se teria um sinal particular, ou alguma cicatriz que o tornasse especial – pois sinto-o agora melhor do que quando o podia ver. Chame-se “sensação do membro presente” esta sensação de ter um pé… que está ausente. É diferente da “dor fantasma” porque simplesmente não dói, e faz com que o ProFlex Foot XC fabricado na Islândia pareça mais real. Este cérebro humano acha estranho que dali não venha nenhum sinal de vida e aumenta a sua própria sensibilidade para ver o que acontece. E o que acontece é que se sente um pé onde apenas está uma engenhoca de duralumínio, titânio e fibra de carbono.
Para um espírito otimista, alguma coisa de bom haveria de ter um pé de metal, mas eu ainda não descobri nenhuma, mesmo quando o cão de um vizinho me tentou ferrar. Eu ofereci-lhe a prótese, mas o faro do bicho tramou-me.
No dia de Páscoa de 1972 tiraram-me uma fotografia em Mueda, onde ele aparece pela última vez, muito sossegado ao lado do seu irmão direito. Alguns meses depois pisou o chão de África pela última vez, despedindo-se deste mundo com muito estrondo, tanto quanto seria possível com o quarto de quilo de trotil de uma mina antipessoal, tendo acabado aí a sua missão de me transportar a meias com o seu irmão simétrico.
Para ser justo, não poderei subestimar as suas qualidades, tanto mais que as várias tentativas para o substituir condignamente falharam redondamente, a começar pelo trambolho tosco e mal-amanhado que rematava a perna de pau desequilibrada e rudimentar com que os nossos parceiros alemães da NATO queriam que eu voltasse a caminhar. Vim da Alemanha com um objeto de tortura medieval que deve ter chegado para espiar os meus mais escabrosos pecados. Tanto os já cometidos como os que eu venha a cometer até ao dia do juízo final.
Os meus netos parecem achar interessante que o avô se pareça com o cyborg dos seus jogos de vídeo quando anda de calções, e pensam que deve ter sido um ato de guerra heroico que esteve na origem da minha amputação. Aqui nasceu uma dificuldade didática, porque na verdade eu dei o que dão os heróis quando combati na guerra colonial, só que uma guerra é talvez o lugar menos provável para se praticar atos heroicos, e numa guerra criminosa como esta, se não tivermos muito cuidado arriscamo-nos até a cometer crimes.
Como se explica a uma criança da geração do Google que isso foi possível apenas por desinformação? E que o país onde a chateiam para aprender imensas coisas, é o mesmo país onde um dia a ignorância era obrigatória, onde as escolas tinham um livro único e os jornais um lápis azul para os ignorantes riscarem as coisas ditas por pessoas inteligentes.
É tão difícil explicar uma coisa estúpida a uma criança inteligente como uma coisa inteligente a um adulto estúpido.
Antes de eu partir para a guerra a minha mãe parece que fez um contrato com a Nossa Senhora de Fátima para garantir que eu vinha de lá são e salvo, cujo compromisso da sua parte era ir a pé de Aguim até à Cova da Iria todos os anos. Nunca percebi o que ganhava a santa com aquilo, mas desconfiei sempre que se tratava de uma tara originada pela vida sensaborona de uma virgindade eterna. Além disso, pareceu-me que tendo vindo eu sem um pé, a minha mãe não deveria pagar a promessa por inteiro, mas não consegui convencê-la a ir a pé, digamos, até Coimbra apenas.
Um dia, no verão de 1965, na praia da Costa Nova, a Marisa sentou-se mesmo em cima do meu pé esquerdo. Com o peso da Marisa o meu pé esquerdo enterrou-se na areia e ela esteve bem meia hora naquela posição sem dar por nada. Passado um quarto de hora sem me mexer, para sentir todas as delícias da região sagrada da anatomia da Marisa, o meu pé esquerdo ficou dormente, depois acabou por ficar totalmente insensível. Foi a primeira vez que o meu pé esquerdo sofreu uma amputação, ainda que virtual, mas aquele primeiro quarto de hora teve os melhores 15 minutos que o meu pé esquerdo viveu.
No inverno de 1971, na casa de banho comunitária do quartel das Caldas da Rainha, o meu pé esquerdo, e apenas o meu pé esquerdo, desenvolveu uma infeção fúngica. O Capitão médico do quartel, num relance, garantiu com ar categórico - É pé de atleta! Soou-me, assim de repente, mais a uma distinção desportiva do que a um diagnóstico médico. O pior é que durante o resto da minha vida de militar vi-me obrigado a introduzir um gesto extra em todos os exercícios físicos: coçar o pé de atleta.
Esse martírio só terminou na picada do Chindorilho, na província de Cabo Delgado da colónia de Moçambique, exatamente às 14 horas e 12 minutos do dia 4 de Junho de 1972. Nem o antifúngico do capitão médico, nem as pomadas de todos os enfermeiros do meu batalhão resolveram o problema, só a mina antipessoal da FRELIMO lhe pôs fim.
Este desfecho fatal aconteceu ao meu pé esquerdo porque eu acreditei que era um dever humanitário ir matar terroristas para África e salvar o império. Pelo menos foi assim que eu entendi as coisas.
Sempre que precisam de mandar soldados matar alguém, convém convencê-los que são terroristas; e quando os professores, os livros e a imprensa dizem em coro que são terroristas, a gente acredita, não é verdade? O pior é quando se descobre que os terroristas são demasiado parecidos connosco, ou que estamos a rematar para a baliza errada. Cria-se-nos a confusão mental típica de quem aparece por engano num funeral vestido com uma fantasia de carnaval. Alguém se aproveitou da nossa ignorância, e o pior é que também nos mantiveram ignorantes compulsivamente desde início para melhor se aproveitarem de nós.
Se isto não é abuso moral por parte do Estado é de certo escravatura intelectual. Impediram-me o acesso ao conhecimento para poderem usar a minha ignorância.
Do Estado não exijo muito mais para mim, na reparação material da minha lesão física de guerra, ao contrário de muitos camaradas meus verdadeiramente injustiçados, mas exijo um condigno e honorável pedido de desculpas pela lesão moral, se não a mim pessoalmente, pelo menos, a título póstumo, ao meu pé esquerdo. 

3 comentários:

MARÍLIA CRUZ disse...

Escritor espetacular, nos faz sentir a dor da guerra. Fiz um trabalho sobre o Livro Cacimbados que mexeu muito comigo.
https://trabalhosleiturasinterpretacoes.blogspot.com/2019/01/cacimbados-uma-memoria-critica-guerra.html

António P. Almeida disse...

... só a tua ironia descreveria um acontecimento tão humano.
Um abraço do Cap-ex António Almeida, da 3503

António Silvestre disse...

Obrigado Manuel Bastos por mais um texto fabuloso sobre as vivências
da guerra em que nos obrigaram a participar.
Foi com grande emoção que fui procurar uma fotografia em que estamos os dois no Hospital Militar de LM, tu já sem a perna e eu com o pescoço ligado e sem saber se voltaria a falar normalmente.
Somos sobreviventes e temos obrigação de deixar o nosso testemunho, já que os governantes de antes do 25 de Abril nos utilizaram e os que vieram depois nos esqueceram.
Bem hajas Bastos por descreveres de forma tão real, tão crítica e tão emocionante aquilo que passámos.
Um abraço, António Silvestre.