Ao abrir os olhos, os rebentos ainda tenros do capim, vistos
ao acordar, assim rente ao chão, parecem plantas enormes e o vulto em decúbito do
Nunes é uma montanha distante - as manchas do camuflado em cores vegetais e a sujidade
de dias ajudam à ilusão.
O planalto dos Macondes acorda sempre em hipotermia, com os
suores frios do cacimbo, mas a capacidade humana de habituação permite que estes
vinte soldados tenham achado conforto suficiente para dormir toda a noite, e
alguns ainda dormem, apesar da humidade e do frio; as fardas com o lustro das
gotículas do cacimbo sobre a capa impermeável da sujidade.
Rodo o corpo para ficar de costas e fico a olhar o cinzento
ceroso da atmosfera sobre mim, um enorme borrão em vez de céu.
A floresta começa a acordar num torpor de ressaca, as
árvores estremunhadas de pássaros inquietos com a luz da manhã, os ramos derreados
de preguiça que o ar pesado não sacode, as folhas deslavadas pelos suores do
cacimbo matinal e os troncos hirtos entorpecidos pela prostração noturna, ou,
afinal, apenas a eterna imobilidade das árvores, como é de sua condição vegetal.
O Nunes acordou numa série de espasmos, como se fosse
difícil sacudir o sono. Depois ficou imóvel, também de barriga para cima, a
olhar a nódoa gordurosa do céu. Um a um os homens vão despertando a custo, como
se dormir ao cacimbo da manhã fosse a coisa mais confortável do mundo, ou não
estivesse a guerra à sua espera.
O alferes já está sentado, consultando o mapa. Faz sinal a
alguém para se aproximar. Agora estão dois vultos esbatidos pela nódoa translúcida
do cacimbo a consultarem o mapa.
As silhuetas dos soldados de cócoras, arrumando os seus
parcos utensílios, parecem sacos de lixo abandonados na manhã embaciada.
Como se obedecessem a um mecanismo coordenador vão agora escoando
por uma fila para dentro da mata densa. Olhando de perto, os seus lugares mais
secos ficam marcados na humidade do capim derrubado onde dormiram, como se
tivessem sido almas do outro mundo que evaporaram. E eram.
Mas não evaporaram. Uma longa fila de almas do outro mundo
caminha agora floresta adentro, mas vão com uma missão deveras humana e deste
mundo, vão com a missão de matar.
A partir do momento em que um ser humano aceita que a sua
missão inclua a forte probabilidade de ter de matar, o valor da vida deixa de
ser uma referência suprema para passar a valer como moeda corrente, cuja cotação
depende de muitas variáveis. Agora o valor da vida desce a cada metro
percorrido por aquela fila de combatentes que se embrenha na mata
densa do planalto dos Macondes.
Olhando a muralha vegetal da floresta a limitar a clareira
de onde se escoaram os elementos da 3503, parecia impossível que alguém em seu
perfeito juízo decidisse escolher justamente esse lugar para enfiar vinte soldados,
e que estes aceitassem fazê-lo com o mesmo à-vontade com que dariam um passeio num
jardim público.
Mas os estrategas militares não são caraterizados por
escolherem as soluções mais simples, e os soldados não são reconhecidos por
questionarem as ordens que recebem. Basta convencê-los de que a sua missão letal
é moralmente justificável e que o sangue que lhes suja as mãos é o preço mínimo
a pagar por uma causa maior. Não raras vezes vêm a descobrir mais tarde que
foram vítimas de abuso moral; de exploração da sua genuína voluntariedade e coragem
e de profanação do seu verdadeiro espírito de sacrifício.
O farfalho vegetal da floresta virgem do planalto dos Macondes
deixou-se penetrar pela bicha de pirilau dos soldados do primeiro grupo de combate
da CART 3503 numa convulsão orgástica de vários minutos, e depois de envaginar
os vinte soldados, sossegou complacente e reconfortada.
Quem quisesse assegurar uma esperança de vida de pelo menos
mais um dia, não deveria passar daqui, mas os homens da CART 3503 já aprenderam
há muito a viver com uma curta esperança de vida.
O cacimbo aliviou e o sol apressa-se a evaporar a humidade residual,
mas uma ténue neblina, como um hálito de fauce de predador abocanhando a presa,
envolve a coluna de combatentes.
Na clareira tudo regressou à normalidade após a saída da
3503, o próprio capim tombado à sua passagem reergueu-se um pouco, penteado
pela brisa já quente.
Daqui não se adivinha o que se passa com aquele grupo de combate,
uma simples coluna apeada de militares, as armas abraçadas junto ao corpo e a
enorme corcunda das mochilas a transfigurarem os seus corpos. Uma fila silenciosa
e sinistra de vultos que caminham curvados para se protegerem da fustigação do
capim. De certo modo, simples na aparência, uma lagarta coleando no capinzal,
mas deveras complicada na realidade, se conhecermos toda a azáfama interior na cabeça
de um soldado caminhando em direção ao local onde se definirá a cotação do dia
para a vida.
Desapareceu o último combatente, o camuflado a confundir-se
cada vez mais com a vegetação, até se tornar invisível. Ficou a imagem caótica da
floresta eterna e a sinfonia polifónica dos animais, eles também invisíveis no
meio da folhagem.
Os animais da floresta nunca permitem um momento de silêncio.
Uma tal quantidade de sons de todas as intensidades e frequências, que se
misturam de tal forma, que não é possível a identificação de nenhum. Para
contrariar isto um enorme inseto voa perto, fazendo lembrar o som de um motor, mas
logo mergulha na polifonia circundante desaparecendo, como desaparece a voz de
uma pessoa ao misturar-se numa multidão em alvoroço.
Cria uma certa serenidade este tumulto. A variedade de sons funciona
como um lenitivo sonoro, como acontece com o “ruído branco”, composto
pela mistura de todas as frequências audíveis.
O ar apenas povoado pela miríade de vozes dos animais da
floresta é subitamente estremecido pelos estampidos secos de uma vintena de G3,
entrecortados pelos estalidos metálicos de algumas Kalashs, a que se sobrepõem
os rugidos cavos de uma MG42. Não se ouvem vozes humanas em pânico, não se
ouvem gritos de criança, não se ouve o
sopro do fogo que varre o que resistiu às balas; não se ouvem os sons do
desespero, do terror e da devastação, porque as vozes das armas que destroem e
matam, falam mais alto e calam também as vítimas inocentes. E quando se deixam
de ouvir, fica um silêncio aterrador, até os animais emudecem; não é silêncio,
é surdez, a surdez total da morte. Para alguns a cotação da vida acabou de
atingir o valor zero da escala.
Depois de um intervalo em que a vida se suspendeu, em estado
de choque, na floresta do planalto dos Macondes, ouve-se ao longe o padejar de helicópteros
a aproximarem-se. São dois, e por isso não vêm transportar os soldados, ou
seriam mais, vem evacuar feridos.
Um dos helicópteros desceu e o outro descreve círculos em
torno do primeiro, como uma ave de rapina, depois, partiram tossindo e arfando,
em direção a Mueda.
O som dos helicópteros já não se ouve, e o som dos animais
em crescendo, traz de novo o bulício à floresta.
E a vida prevalece, mesmo onde a morte teve o seu momento de
glória. A Natureza parece querer apagar com a sua infinita capacidade de
regeneração o tremendo erro na evolução das espécies, que permitiu o
aparecimento da crueldade humana.
Sem a pérfida inteligência humana, todos os seres inocentes
da floresta retomam o equilíbrio da vida selvagem, regidos apenas pelos
instintos. E as árvores, acima de todos, imperturbáveis e monumentais.
A monumentalidade das árvores da floresta africana causa o
mesmo efeito em nós que as grandes obras arquitetónicas, sentimo-nos sempre
pequenos na sua presença. Mas somos tão insignificantes como perigosos. Não
somos deste mundo, viemos aqui só para o destruir.
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