A
minha cabeça é uma casa assombrada.
Dentro
de mim, um tumulto de almas penadas espiando culpas de que estão inocentes.
Caminho
por entre pessoas que não entendo, como se o riso fosse uma alucinação e a
alegria uma obscenidade.
As
minhas memórias são fantasmas que me acompanham para onde for. Amigos que
tombaram pelo caminho, que me recuso a esquecer. Juntos, rimos e lutámos, e
agora falamos em segredo, para não acordar a indiferença do mundo.
Querem
que a gente volte da guerra como se nada tivesse acontecido, porque não querem
ser assombrados com os pormenores. Nós falamos dos tiros e dos furos das balas
na pele. Das minas e do interior dos corpos que fica à vista. Dos sons da
guerra próximos do limite da frequência sonora audível, e que às vezes
ultrapassam esse limite e deixam de se ouvir, como se estivéssemos num filme
mudo. Falamos do cheiro do sangue fresco e da carne ainda pulsante. O osso
limpo, os tendões cortados e as fibras dos músculos rasgadas. Durante meses não
se pode ver uma coxa de frango; depois acabamos por falar disso como se fala de
um ofício a que nos dedicámos.
O
Manel até tirava fotografias. Eu: Ó furriel, essas fotos são pra não se
esquecer disto? E ele para mim: Ó Zé, nós nunca nos vamos esquecer disto até
morrer.
Acho
que ele, com o tempo, foi criando uma raiva contra aquilo tudo, enquanto eu ia
aceitando as coisas para poder aguentar, para poder sobreviver. Andámos ao
contrário para obter a mesma coisa. Depois, de repente, disseram-nos que tudo o
que dantes era inevitável, tinha de acabar, e deixámos de ser precisos. Só
servíamos para alimentar a guerra, como lenha para a fogueira, e decidiram
apagar a fogueira e deitar a lenha fora. Regressámos a um país diferente
daquele que nos enviou para lá, e tudo o que fizemos passou a estar errado, do
dia para a noite. Num país em que a ignorância é obrigatória por lei, podemos
ser apanhados com uma arma na mão como um bombeiro de mangueira em punho para
apagar um fogo onde há uma inundação.
O
Manel a tirar fotografias, como se quisesse reunir provas para demonstrar que a
estupidez humana realmente existe. E eu via-o como um turista que não levava
aquilo a sério para não ficar louco. Se não tivesse lerpado com uma mina,
estava agora pior do que eu, tenho a certeza.
Mas
eu não estou traumatizado, não, eu tenho é saudades da guerra. Deram-nos uma
missão importante para cumprir e nós demos a nossa vida por essa missão.
Ensinaram-nos desde sempre que isso era o nosso dever e ensinaram-nos também a
sentir orgulho por ele nos ter sido confiado. Há alguma coisa pior do que
descobrir que nos enganaram? Que a nossa missão era um crime e que o nosso
dever era uma maldição?
Que
fazer agora com os mortos? Como resgatar os inocentes sacrificados? Como
reverter a dor depois de sentida?
Tenho
saudades de me sentir do lado certo da História, de me sentir um soldado a
servir uma causa justa.
Anseio
por uma causa justa por que lutar.
Só
que me roubaram a fé. Roubaram-me Deus. Fiquei de mãos vazias e sujas de
guerra. Não se pode rezar com as mãos sujas de guerra e não se pode ser herói
numa ato criminoso.
Roubaram-me
Deus e roubaram-me o Diabo, por quem lutarei?
Esfrego
a pele para limpar a tatuagem do meu patriotismo e a tatuagem não sai. Amei o
meu país com um amor impúbere e fui abandonado por ele, prenhe de pesadelos. A
tatuagem das minhas memórias é um ferro em brasa que me não saí do pensamento.
Ninguém regressa do inferno inocente, ninguém regressa vivo do calvário.
O
que vês, Zulmira, quando fechas os olhos? Será que vês o que eu vejo?
Sou
uma homem-bomba pronto a explodir de memórias.
Sou
um comboio em chamas rasgando a noite escura, exorcizando os fantasmas no meio
das trevas da indiferença dos que nunca fazendo perguntas estão sempre de bem
com Deus e com o Diabo.
Se
ao menos ainda te amasse, Zulmira, deitava-me ao teu lado e adormecia
ignorante, que o conhecimento incomoda, mas alguém me roubou também o meu amor
por ti.
Deixa,
ainda assim, meu amor passado, que me deite ao teu lado, deixa que arrefeça
esta acha ainda em chamas, tirada da fogueira em que arderam os meus sonhos de
criança. Eu, de mim dei o que dão os heróis, mas coube-me o papel errado. Sou
um personagem criado por uma história escrita por criminosos.
Esta
noite sonhei que era uma criança inocente brincando. Será que acordei para a
realidade ou agora sou um velho soldado com que uma criança inocente está a ter
um pesadelo?
Tanta
coisa acontece na vida de um homem e tanta coisa é esquecida, lembramo-nos
apenas de meia dúzia de coisas boas, mas das tragédias lembramo-nos bem.
Sei
que passei horas de convívio caloroso e camarada como nunca se consegue passar
em tempo de paz, porque as coisas escassas são mais preciosas, mas não me
recordo de quase nenhuma. E os amigos que fiz e que esqueci? É como se não
tivesse vivido esses momentos, porque o que ficou na memória foram sobretudo as
experiências dolorosas.
A
felicidade é o luxo da mente, e o luxo é uma fraude. Não é real, é um cenário
montado para exibir a opulência de uma minoria que ofusque o ruído e o
desconforto de que é feita a imperfeição da vida para a maioria. Resta o amor.
O amor é sempre possível, mas deveria haver mais do que uma palavra para dizer
amor. Há amor que mata e amor que salva, há amor que castiga e amor que redime,
há amor que revigora e amor por que se morre.
Dizem
que se o amor acaba, é porque não era amor de verdade, então quando um homem
morre é porque nunca viveu de verdade também? Que pensa um homem olhando o cano
da arma com que vai matar-se? Que nada na sua história merece mais um dia de
vida, ou que a sua história é tão preciosa que o futuro previsível não merece
ser vivido?
O
inflexível arco do tempo não sai nunca do mesmo lugar, nós é que somos
perecíveis.
Tudo
o que acontece é passado. O que fizemos no passado é que faz de nós o que somos
hoje, e o que somos hoje é que dá forma ao passado, que o passado só é passado
quando o vemos do presente. Igualmente, o que fazemos agora será passado
amanha; não preparamos o futuro, preparamos um passado que mereça os dias de
vida que temos para viver.
Sem
ti, Zulmira, para recuperar a ignorância original, recosto-me no sofá, vítima
do conhecimento do inferno imposto à minha juventude perdida.
O LP
no gira-discos entre estalidos. O cantor cantando o poeta. As lágrimas que não
seguro. E as palavras do poeta na voz do cantor, como facas:
Roubam-me
Deus, outros o Diabo.
Quem
cantarei?
Roubam-me
a pátria e a humanidade, outros ma roubam.
Quem
cantarei?
Um
dia cantarás a revolução. Nesse dia, cantor, as lágrimas serão de esperança.
2 comentários:
Parabéns Manel, pela lucidez, pela coragem e por essa vontade forte de te manteres vivo e actuante.
Quanto ao texto gostei muito.
Gostaria de continuar a ler.
Um abraço
Existem dias em que ficamos mais ricos, não de uma maneira material....mas espiritual. Eu, também vivi essas guerras, porque não foi só uma guerra de armas, mas de muitas outras que são tão bem descritas no seu texto. Não tenho vergonha em dizê-lo...chorei. Na verdade vivemos uma guerra, entre um deus e um diabo. Fomos abandonados, num caís qualquer de Lisboa, como mercadoria fora de prazo e tivemos de continuar as nossas guerras sozinhos, perante a indiferença de outros, de muitos outros. Continuamos a guerrear contra nós próprios. Muito obrigado. Um grande abraço.
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