Do romance “Uma história
de amor com guerra ao fundo”.
Corpo de bronze, beijo de água , sexo de fogo. Todo o sol de
África no teu colo. Morro e ressuscito em ti. Tanto ódio em teu redor e tanto
amor à minha espera.
Que faço eu de arma na mão?
Olhar de orvalho pela manhã, quando parto; corpo esbraseado
ao sol pela tarde, quando regresso selvagem, torpe e sujo.
Sob a bênção do Cruzeiro do Sul glorificas-me a todos os
deuses de todas as Religiões, agora, que todos os demónios me possuem, e ainda
assim mantive-me ignorante. Queria ao
menos poder louvar a terra quente que te gerou, mas como eu não sei rezar contemplo-a
em puro silêncio, que o meu silêncio é a única coisa pura que resta em mim.
Não tenho perdão, a minha maior culpa é a de tentar
sobreviver; os corajosos fogem e os inocentes morrem, e eu caminho desafiando as
balas, para que o medo me faça sentir humano.
Mantenho-me acordado à noite para poder sonhar, eu que vivo
em pesadelo. A floresta mágica aguarda por que amanheça para me atrair. No seu
ventre rumina-se a guerra e eu participo da matança, mas não sei se sou
predador ou presa. No fim da digestão a floresta regurgita os sobreviventes e
eu venho procurar-te, carregado de culpa, derreado de guerra, coberto de
sombras, vestido de nojo. E tu recebes-me sempre. Lavo-me em ti,
desentristeço-me, destraumatizo-me e reinocento-me a cada manhã.
Que faço eu de arma na mão?
Que guerra é esta, em que somos inimigos dos homens e
amantes das mulheres? Que fizeram os nossos antepassados que nós temos que
desfazer? Porque lutamos, se parece não termos objetivo nenhum?
Talvez porque durante gerações e gerações o teu povo sempre tenha
sido humilhado pelo meu; talvez porque a humilhação humilha o humilhador; talvez
porque à minha reles lascívia tu respondes com a nobreza do teu amor, é que me
sinto morrer a cada tiro que dou.
O meu maior crime é saber-me culpado e manter-me criminoso. Dia
após dia sinto maior o abismo dos vãos e desvãos do teu corpo e maior a vertigem que me faz
mergulhar.
Ávido, quero embebedar-me de ti; faminto, quero cevar-me;
adicto quero drogar-me – e a ressaca é ainda mais inebriante que a bebedeira,
quando de manhã fico a vigiar o teu corpo extenuado, abandonado ao sono sobre a
enxerga, como seara ondulante cansada de se entregar ao vento toda a noite.
Já luz o janelo da palhota. A floresta já acordou estremunhada
num breve instante de silêncio — os animais da noite foram dormir e os do dia ainda
não despertaram. É a mudança de turno da Natureza, o momento que me traz mais aflição,
porque, vá-se lá saber, Deus pode existir e aproveitar este momento de descontração
da Natureza para se deixar de brincadeiras e começar a escrever por linhas
direitas, e o que será de nós se ele se lembra de fazer justiça?
Deixa-me, Yana, adormecer e acordar dentro de ti. Enquanto
estou no teu corpo todas as coisas boas são verdade. Fora de ti a realidade dói,
como a luz crua do sol nos olhos. Doce é a luz mansa do teu corpo.
Por um momento só, deixa que eu próprio não dê ouvidos à minha
consciência, porque às vezes a verdade é a última coisa que queremos ouvir.
Não quero acordar, não quero acordar, deixa-me ser criança mais um pouco, que
enquanto durmo sou inocente. E enquanto for inocente posso ser amado por ti sem
vergonha.
Fantasmas pairam sobre o aldeamento; espíritos dos teus
antepassados ofendidos pela rendição do teu corpo ao domínio canalha dos meus
instintos predatórios.
Cevo-me, alarve, em ti; alarvo-me, besta, no teu corpo;
bestializo-me, fauno, no teu sexo. E tu, ninfa, e tu deusa, sublimas-te sobre a
escória da minha luxúria.
Quanto mais turva a minha corrupção mais alva a tua pureza.
Ó doce, ó cândida, ó inocente, sinto em ti a pureza inexplorada da floresta virgem, a calma
hipnótica da savana, a miragem onírica
dos desertos. Sinto em ti o ventre desflorado da África, mãe de toda a
humanidade, que a Europa toda viola e sangra. E eu o explorador que rumou de
regresso às origens como um filho pródigo trazendo com ele a ingratidão, a
arrogância e o fracasso das aventuras inúteis.
É à luz mais forte que as sombras são mais escuras, e na doçura do teu afeto é que se gera a maior
agrura do meu remorso.
Ah, que pesam sobre mim todos os crimes da expansão marítima.
Pesa-me o promontório fálico de Sagres e a água desvirgada pelos
descobrimentos, pesam-me as caravelas seminais que espalharam a ganância pelo
mundo e toda a ignorância dos exploradores a procurarem em África o ouro que
foram encontrar no Brasil.
Ah, que pesam sobre mim quinhentos anos de escravidão. Todas
as mulheres violadas e todas as crianças renegadas. E mais do que isso ainda,
muito mais, pesa sobre mim tudo o que eu sei e o que eu não sei; e o que eu não sei é mar e vastidão dos desertos, é a rota
tenebrosa dos negreiros e as grilhetas dos escravos a sangrar.
Salva me da minha autorepulsa e rejeita-me. Eu vim para odiar
e matar e recebi o teu amor em troca, é humilhante ser amado com dignidade. Odeia-me
se realmente gostas um pouco de mim. Exorciza-me de ti. Põe fim à minha farsa
humana. Salva-me da impunidade.
Que faço eu, meu Deus, de arma na mão?
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