Pouco mais do que o seu olhar regressou com ele de África.
Nem um gesto completo. O olhar, o movimento do rosto, um único dedo que
obedecia à sua vontade e dentro do pesado escafandro do corpo que o
aprisionava, um teimoso sopro de vida que aguentou 45 anos, e que ontem,
cansado de lutar, se apeou dessa viagem.
Quanto de um homem se pode tirar para que, ainda assim, o
sofrimento continue a ser possível? E quanto precisamos para valer a pena
viver? O Dentinho vivia nessa fronteira entre o sofrimento inútil e a vida possível,
mas acredito que se lhe tivessem feito essas perguntas, antes do seu ténue
sopro de vida se ter esgotado, ele não teria uma resposta categórica para dar.
Responderia com o seu último olhar, antes de partir; entre a revolta e a
resignação, entre a coragem e a desilusão, entre uma ténue mas persistente
vontade de continuar e a avassaladora impotência – esse seu olhar vindo desse
centro geométrico onde se gera a dúvida, que é a habitual reação dos sábios às
perguntas retóricas dos tolos. Esse olhar sobrevivente, que trouxe de África,
com que dizia o que as palavras não dizem. E quando regressávamos a casa depois
de o visitarmos, parecia que nos tinha dado uma lição sobre algo tão difícil de
entender que nem sabíamos bem o que era, mas que nos tinha modificado para
melhor, ou fosse lá o que fosse, que sentíamos no peito, como, às vezes, em
dias de chuva, quando um pouco de sol rompe as nuvens e nos faz sentir um ténue
afago de luz. Era o olhar do Dentinho. Um olhar de gratidão, de camaradagem,
tão genuíno que o afago de luz que sentíamos era a nossa gratidão por nos
sentirmos importantes na sua vida. Ontem esse olhar foi-lhe tirado também.
45 anos.
O corpo inerte, inútil, insensível sobre a cama, a não ser por uma dor permanente
que o atormentava. Um cérebro que guardava a cartografia íntegra do corpo que
já morrera há muito e que lho ressuscitava em forma de dor. Esse maravilhoso
cérebro humano que nos recria o mundo numa representação virtual cheia de
beleza, dando-nos a ilusão de que é o mundo real que conhecemos. O cérebro
teimoso a sobreviver ao próprio corpo e a dizer-lhe perversamente que o corpo
ainda estava lá, não para as coisas boas que um corpo nos pode dar mas apenas
para a dor. A dor fantasma dos amputados, em que o cérebro nem precisa do corpo
para gerar dor, a fazer crer que a dor é a derradeira consciência que temos de
nós.
Choraram na sua partida, mais porque as partidas fazem
sempre chorar, do que por esse desfecho ter constituído uma enorme tragédia para
alguém. De que nos apetecia chorar a todos? Do pesadelo que foi a sua vida ou
da morte que o libertou? Uma jovem ao meu lado perguntava não sei a quem,
talvez a Deus, o que teria feito ele para merecer a vida que viveu, depois deu
um suspiro, que deve ter sido a melhor resposta que conseguiu encontrar.
Perguntar ao Deus omnipotente uma coisa destas é quase uma
acusação. Se um cidadão pudesse e não tivesse salvo o Dentinho, poderia ter
sido acusado de omissão de auxílio à vítima. Se um pai negligenciasse os seus
deveres que estivessem assim ao seu alcance para acudir a um filho em
sofrimento atroz, seria decerto acusado de violência doméstica e a Segurança
Social retirar-lhe-ia o poder paternal.
É impossível resistir a esta filosofia barata quando nos
sentimos impotentes perante estes mistérios existenciais sem solução, mas
inventar um deus psicopata para os explicar é ainda o mais estúpido que podemos
fazer.
O seu funeral atrapalhava o trânsito na rua estreita do
Casal Novo de Meãs do Campo, o último incómodo que o Dentinho provocou a este
mundo, ele que, condenado à vida confinada a um corpo morto, teve o amor de uma
mulher prometido para o resto da sua vida vazia, e recusou. Pode oferecer-se
amor recusando-o, ensinou-nos assim o Dentinho, ao libertar a sua namorada da
prisão de que ninguém o libertou a ele.
Hoje, descansou finalmente o Dentinho, se o sono que dele se
apossou não for, ele também, um sono povoado de pesadelos. Se a dor persiste
num corpo insensível, se persiste mesmo para além do corpo, será que sobrevive
algum tempo à própria morte?
Que um Deus piedoso exista, ao menos só por hoje, para ti,
camarada; e que seja um deus à altura da tua lição de amor, e que te liberte
definitivamente da vida de dor em que te manteve preso, ou então que se cumpra
a Natureza e que regresses ao lugar de onde vieste, a esse lugar nenhum de onde
viemos todos, e para onde inevitavelmente regressaremos todos um dia, e que a
vida não passe de um dramático pestanejar do infinito onde, por um maravilhoso
acaso se gerou a consciência humana, esta consciência que nos faz delirar de
prazer e horrorizar de dor.
Nós, os teus pares, cobrimos a cabeceira do teu caixão com a
bandeira do teu país, para termos uma última ilusão da sua gratidão por ti.
Quando um soldado morre não deviam chorar apenas os que dele terão saudades; alguém
devia, em nome do seu país, prestar-lhe homenagem pela dádiva de sangue que lhe
exigiram. Se se medisse a importância de um soldado pelo seu sofrimento, terias
honras de general, porque não conhecemos ninguém a quem a dor tivesse condecorado
com tão grande distinção.
Mas, não fosse a bandeira verde-rubra que te levámos e
ninguém se lembraria que um dia acreditaste que valia a pena lutar por este
país.
Lembrámo-lo nós que combatemos contigo. Na guerra, e depois
da guerra pela dignidade possível; e levámos-te também a nossa bandeira, que
criámos para esse combate do pós-guerra, para cobrir-te modestamente os pés e,
claro, a faixa rubra do teu clube, que ao menos na despedida é preciso
respeitar as paixões mais irracionais de um homem.
À noite, reparei na lua enorme e fui olhá-la do terraço.
Ali, sobre o Tovim, onde as ondas eletromagnéticas do Sol, a que chamamos luz,
traduzidas pelo meu cérebro, me faziam ver, não o enorme calhau redondo que
regula as marés e o ciclo menstrual das fêmeas dos mamíferos, mas sim a face
iluminada da deusa da noite aprisionada pelo abraço gravitacional da Terra, que
inspira os poetas e maravilha os tolos como eu.
É difícil conceber tudo isto sem um motivo transcendente, é
difícil aceitar este mundo – que hoje o nosso irmão de armas abandonou, vítima
de uma guerra já distante, por nada nem ninguém lhe merecer o seu sofrimento – é
difícil aceitar este mundo sem propósito nem poesia nenhuma, não fora o
maravilhoso cérebro humano que no-lo recria pleno de beleza para que a vida não
seja apenas um erro inútil do cosmos.
Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.
Para deficientes visuais, ouça a versão áudio em ADFA-Portugal.com, na rubrica Episódios, aqui.
1 comentário:
Caro Manuel Bastos,
Eu não conheci o Dentinho, mas soube da sua existência e do seu terrível drama através daquilo que o meu amigo (permita-me que o trate assim) sobre ele escreveu aqui neste seu blog. Mais tarde, vi imagens dele no filme "A Hospitalidade ao Fantasma", em que o meu amigo, aliás, também intervém: https://youtu.be/_8GiWycAdfs?t=3m19s.
Que posso eu dizer do falecimento do Dentinho? Eu não sou crente, nem mesmo debaixo de fogo senti a necessidade de ser crente, mas agora sinto uma vontade terrível de acreditar na existência de vida depois da morte, para que o Dentinho possa finalmente ser feliz, depois de tantos e tantos anos de atroz sofrimento tolhido numa cama. Devia ser proibido um ser humano sofrer tanto como o Dentinho sofreu. Não basta dizer «pelo menos ele agora já não sofre mais». Se existisse um mínimo de justiça neste mundo, nunca o Dentinho teria sofrido assim.
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